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A CONFUSÃO DE DOUTRINAS NA QUIMBANDA


Por Táta Nganga Kilumbu

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Sabemos que até pouco tempo, o que tínhamos de material escrito e público sobre o culto dos Exus e Pombagiras da Quimbanda eram os livros Kiwanda, do Muloji sobre a Quimbanda Malê, o livro Kimbanda: Origens e Fundamentos de Quimbanda Mussurumim da Bruxa Fernanda e o livro, talvez o mais popular entre todos eles, Quimbanda: O Culto da Chama Vermelha e Preta escrito pelo Danilo Coppini da Corrente 49 e, assim, a literatura da Quimbanda e suas vertentes se concentravam principalmente sobre essas três obras, tirando os antigos escritos de Fontenelle, Molina, Lourenço Braga, Bittencourt e Antônio de Alva, é claro. 

Nos últimos dez anos a literatura da Quimbanda Luciferiana se sobressaiu sobre os outros autores, tanto por questões de qualidade editorial e coesão textual, quanto por uma estruturação melhor elaborada sobre o culto. Isso levou muitos kimbandas de longa data, buscando por conhecimento e fundamentação, a se debruçarem sobre a literatura da Quimbanda Luciferiana e, por extensão, adaptando e retificando seus fundamentos mais antigos segundo os postulados dessa nova vertente. O problema disso é que muito do material encontrado na literatura da Quimbanda Luciferiana não vem da Quimbanda, de fato, mas do luciferianismo e satanismo anticósmico modernos. Essas correntes mágico-filosóficas de inclinação anticlerical e ideologicamente alinhadas à esquerda, só chegaram no Brasil em meados da década de 1990 e início da década de 2000, período onde começaram a se proliferar as vertentes de terceira onda. Umas das características da Quimbanda Luciferiana, e que dá a ela sua identidade, é a forte e combatente abordagem contra o cristianismo e as ortodoxias da sociedade. Por exemplo, é somente na Quimbanda Luciferiana que se costuma utilizar os famosos pontos cantados de blasfêmia, inexistentes nas vertentes de primeira e segunda ondas (1950 e 1970 respectivamente). Como é da natureza do satanismo e do luciferianismo uma abordagem descentralizadora, inúmeros bandas de casa começaram a se autointitular Quimbanda Luciferiana, misturando tudo e qualquer tipo de coisa, criando sistemas anômalos. Muito embora isso seja mais velho que a memória da cultura ocidental, porque é da natureza religiosa do homem e sempre ocorreu no contexto de religiões, cultos e ordens mágicas modernas, as cópias mal feitas sempre borram o nome do trabalho original. 

Por um lado, pela abrangência literária da Quimbanda Luciferiana, por outro lado, por algumas vertentes tradicionais carecerem de fundamentação – por muitos motivos como falta de acesso ao mais velhos e, portanto, aos segredos do culto – hoje podemos ver vertentes tradicionais de primeira onda como a Nàgô, uma das, senão a mais influente do Brasil, e vertentes de segunda onda como a Kirumbo, com ritos, práticas, posicionamentos filosóficos e ideológicos derivados da literatura da Quimbanda Luciferiana. 

É importante dizer que nosso papel aqui não é o de fiscalizar o culto de ninguém. Todos nós sabemos que cada Reinado de Quimbanda tem a sua própria identidade. Não defendemos, também, qualquer pureza de culto, porque a própria Quimbanda nasce de um caudaloso caldeirão de miscigenação cultural. Mas no contexto da Quimbanda Nàgô, dentro do fundamento do lastro ancestral, o que buscamos é preservar a estrutura de nosso culto, que vem sendo transmitido de mestre a discípulo por gerações. É assim que se estabelece e se perpetua uma tradição. No texto Tradição x Inovação, Danilo Coppini diz: 

[…] juntam fundamentos de vários troncos para justificar aquilo que nunca aprenderam, enfim, o empobrecimento da Quimbanda começa quando os argumentos se iniciam com teses catedráticas soltas. Palavras bonitas JAMAIS fizeram a Quimbanda.

 

Sendo assim, não há de se falar nada, não é mesmo? Vemos aí kimbandas oriundos de vertentes de primeira onda que, influenciados por adeptos de vertentes da terceira onda, renegando e destituindo antigas práticas tradicionais numa busca falsa de pureza afro-indígena, em contraposição à cultura europeia no culto de Quimbanda. Quando você adora o Opositor, você precisa do fundamento para estar em oposição, logo, precisa do confronto. Diabo em Deus, fica difícil explicar. Tirar os símbolos cristãos ou dos brancos europeus, como queiram chamar, da Quimbanda, de dentro da Cafua de Quimbanda? 

Oras, vejamos tudo que traz um simbolismo de origem católica, do catolicismo popular e da feitiçaria ibérica: tiremos os cruzeiros das almas, grandes símbolos de santificação dos locais fúnebres e dos amaldiçoados, que eram erguidos sobre antigos templos de deuses romanos ou bárbaros para impor a supremacia do Império, da Igreja e de Cristo. Já temos que começar por aqui. Afinal, inverter a Cruz só torna opositor do mesmo, e reverenciador da mesma força pelo caminho oposto. Mas se não tiver o ícone de Jesus na Cruz, só o faz um devoto de São Pedro e do Bispo de Roma. Não busquemos explicar a cruz por outros sentidos, você estará sendo equivocado, se esquivando da realidade da cruz no imaginário brasileiro, de que os Cruzeiros das Almas são marcos dos domínios da Cristandade. Seguiremos ainda retirando o tridente da mão dos Exus, de seus pontos riscados também, afinal, não adianta afirmar que o tridente é símbolo de Poseidon ou Netuno, porque quando ele chegou aqui e o macumbeiro o conheceu, foi como a arma do Inimigo de Deus, o Diabo, que foi furtado de Netuno e entregue nas mãos do Diabo pela Igreja Medieval. Atribuído a Exu pelo fato do próprio Èṣú já ser nomeado anos antes pelo bispo anglicano como o diabo yorùbá. Esqueça de usar as famosas favas, head bat, que são conhecidas aqui como Garra de Pombagira, que possuem origem estrangeira. 

Para ser mais oposto ao branco europeu, tiraremos também as roupas dos mestres: o estilo do lorde de capa, cartola e bengala, demonstrando sua importância social, oriunda dos costumes ingleses, assim como as roupas de Pombagira baseadas nas formatações francesas da Belle Époque. Cabaré para que? Isso também é europeu. Chamemos Exu do prostíbulo ou do puteiro. Sejamos mais puros, não? Usar designação francesa (branca, europeia) para que, já que buscam purismo afro-indígena? Porque arvorar um purismo banto contra-eurocentrista e assentar Exu Lúcifer não é só uma incoerência, mas desonestidade e, senão, charlatanismo. 

Não se revoltem! Não foi isso que aprendi com os antigos, aprendi que você pode até tocar Quimbanda num templo de Umbanda, mas cubra o Congá primeiro, uma cortina nem que seja de rendas, vamos respeitar, ali a imagem do santo está mesmo na sua expressão pura do catolicismo popular, quem dirá devoto de òrìṣà com Jesus no lugar de Óṣàálà, complexo mas… se toca Umbanda, vamos respeitar e cobrir o Congá, afinal, isso não é novidade, já foi até relatado por pesquisadores do passado de como a Umbanda e a Quimbanda conseguiam coexistir num mesmos espaço, como falam Marco Aurélio e Lapassades. E mesmo tocando no mesmo espaço, vamos respeitar né, Quimbanda não é gira de esquerda que se toca em 20 minutos antes da sessão terminar: ela abre só com ela e se finda só com ela. Se toca Candomblé? Já está mais tranquilo, pois os ojubó dos òrìṣà já estão resguardados do espaço. O espaço tem que estar neutro. Isso sim aprendi com os antigos, aqueles que quando adentro a casa e olho pra tronqueira, vejo de um lado Ògún e do outro Exu Tranca Ruas, firmado, com sua imagem e uma imagem menor do Santo Antônio e São Miguel, que agora estão sendo renegados por aqueles que estão se influenciando pelo satanismo e luciferianismo modernos. Ou quando não, encontrava os santos replicados na cafua dos Exus, lá, realizando os propósitos mágicos e bruxedos dentro da banda, sob o aspecto de santidade e bondade, sendo que não é bem assim para quem conhece. Mas o que fazer? Se os antigos kimbandas faziam assim e os novos não? E se não era só um símbolo de aceitação de Cristo, mas um símbolo de magia, que está ali à disposição do Exu? Eu prefiro me apegar as práticas dos antigos, porque elas já foram testadas e comprovadas. Receitas novas podem dar certo, como podem dar errado. 

Aprendemos que a Quimbanda é um culto individual, com uma estrutura própria, que descende de outro, porque não surgiu do nada pelas mãos do Maioral; e aprendemos que não é a Umbanda, nem o Candomblé, nem o Iṣéṣé Làgbà e nem o Catimbó de Jurema quem vai determinar o universo de conhecimento das vertentes de Quimbanda, afinal, cada um na sua, e a Quimbanda constrói o seu universo próprio. Agora, se para você ela é apenas uma ferramenta mágica e não um culto religioso, tudo bem, mas não imponha regras de outros cultos como sendo dela, pois aí se torna desonestidade religiosa e intelectual. Hoje alguns pontos já não se cantam, porque falam em nome de òrìṣà diferentes de Èṣú, mas cada vez que um kimbanda louva Exu, ele remete ao arquétipo pátrio de Èṣú, aceitando ou não. Simples assim. De igual modo o próprio Diabo europeu, cristão. Oras, as operações mágicas, toda sorte de demônios que atuam dentro de muitas vertentes cruzadas de Quimbanda com magia, tal como Bechard, Hael, Frutimiere, Baal, Andras etc., não tem nada de africano nisso, e nem tem Deus pagão purinho, mas sim muitas egrégoras construídas em cima de nomes de entidades populares maculadas (ou não) pelos padres ortodoxos e católicos os quais escreveram os mais antigos grimórios de evocação infernal. Para algo mais diabólico, afastado de Deus e de Jesus Cristo, melhor seria assimilar as ideias de Lavey, e se tornar um cristão às avessas... 

Em verdade, vai chegar uma hora que vão surtar e querer adentrar a casa dos antigos mandando no que devem ou não fazer; vai chegar a hora que vão ter que parar de cantar a dona da catacumba que sem mistério, que mora no cemitério, mas que é loira, de olhos azuis, a Pombagira filha de Omolu, de certo porque é branquela-europeia. De origem africana ou indígena pura, acho difícil achar dentro de uma ancestralidade tão miscigenada. Mas quem sabe? Vamos pensar. Vou fechar como aprendi com os meus mais velhos: 

Eu não tenho Pemba, não tenho nada

Segura a Corimba Santo Antonio

Está na hora de Exu

Segura a Corimba Santo Antônio

 

Cada um com sua caminhada, enquanto a caravana passa, alguns quebram, outros perdem seus cavalos, o pneu do carro fura, mas ela não para. Só prossegue. O antigo não é ultrapassado e nem errado para quem tem a sabedoria e o conhecimento de que Exu não é guardião ou porteiro de viver em quartinho ou casinha de cachorro, mas quem sabe que Exu é Rei e digno de viver num Reinado. 




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