Por Táta Nganga Kamuxinzela
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Um dos temas que mais me fascinam é a arte do sacrifício. Ele está dentre as matérias de estudo (e quando me refiro a estudo incluo a prática, porque quem é feiticeiro de verdade sabe que o estudo faz parte condicional da prática) que mais ocupam meu tempo. Um dos meus ofícios sacerdotais é o sacrifício animal para os Gangas da Quimbanda, òrìṣà, égúngún e outros espíritos como Hermes, Lúcifer, Beelzebuth e Ashtaroth. No livro Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia, dediquei um capítulo introdutório a arte do sacrifício animal na perspectiva da Quimbanda, da cultura yorùbá e no mundo greco-romano. Eu pretendo ampliar esse estudo no futuro para artigos na Revista Nganga e livros que pretendo publicar.
Poucos dias atrás eu recebi uma crítica feita por um covarde. Covarde porque partiu de um perfil fake no Instagram, cujo dono muito provavelmente é um kimbanda ou pai de santo frustrado, por não conseguir oferecer o trabalho de qualidade que nós oferecemos na Cova de Cipriano Feiticeiro. A crítica me acusava de açougueiro, por causa da técnica de limpeza e extração dos àṣẹ dos animais de quatro patas que ficam pendurados durante o curso da cerimônia. Outro ponto da crítica me acusava de cometer violência contra os animais, que morriam com sofrimento. Como ele sabe? Só de ver nossa publicidade? O indivíduo que fala de algo que ele não sabe, não conhece e não viveu, não é um homem, mas um imbecil com uma opinião idiota: a terceira pessoa depois de ninguém! E hoje uma seguidora me perguntou se em nossas cerimônias os animais são sacrificados de forma humanizada, ela explicou: sem sofrimento. Essas duas questões me levaram a escrever essa breve nota sobre a violência e o sofrimento no contexto do sacrifício religioso, abordando também a ideia de partilha e de higiene.
Esse é um dos tópicos mais antigos entre os acadêmicos que escrevem sobre o sacrifício pelo menos desde a década de 1920.[1] Os estudos acadêmicos sobre o sacrifício a partir dessa época em sua grande maioria focaram em avaliar a necessidade da violência e do sofrimento do animal na catarse da ansiedade de culpas de inúmeros tipos: usar os ossos e a pele dos animais, elevar seus crânios no momento do ritual em honra aos ancestrais, honrar todas as partes da carcaça do animal para alimento, vestimenta, remédios e magia, aliviava a ansiedade da comunidade inteira, principalmente da culpa por ter de caçar e matar os animais pela sobrevivência de todos. E a partir destes primeiros estudos, nasceram àqueles relacionados a psicologia do sacrifício nas mãos de Freud (1856-1939), que inferiu que o sacrifício estaria conectado diretamente a um tipo de neurose, enraizada na repressão de desejos incestuosos. Para Freud o sacrifício emulava a morte primordial do pai-ancestral, então substituído pela vítima do sacrifício, que era abatida e consumida por seus filhos distantes.
Os acadêmicos desta linha de raciocínio então concluíram que o sacrifício animal era uma prática que havia começado no período paleolítico e servia, fundamentalmente, para aliviar o estresse e a ansiedade decorrentes de um estilo de vida violento. O homem matava o animal para não matar outros homens da comunidade. Dessa forma, através deste rito sacrifical, mantinha-se ordem e coesão social. Nessa perspectiva acadêmica sobre o tema, violência e sofrimento são as peças fundamentais pelas quais o ritual de sacrifício opera seus resultados na vida e na própria estrutura do tecido social.[2]
O nosso grande problema atual é olhar para as antigas culturas com as lentes do humanismo moderno! Pior que isso, visto como a prática religiosa primitiva de um estágio primitivo na vida humana, alguns têm o classificado como dispensável na contemporaneidade. Nessa linha de pensamento, acadêmicos têm argumentado que, na medida em que o homem se civiliza, gradualmente ele deixa o antigo exercício do sacrifício religioso por métodos mais higiênicos. Nessa abordagem eles dizem também que o sacrifício servia como um presente as divindades, para que elas pudessem ajudar os homens em troca desses sacrifícios. E muito embora essa abordagem não seja boa, é exatamente isso: o homem primitivo imolou aos deuses porque descobriu que o sacrifício era a maneira mais eficaz de se comunicar com eles.[3]
Na arte do sacrifício animal, a imolação ritual depende de alguns cuidados, passos que devem ser executados antes do momento sacrifical. J.O. Awolalu[4] enumera muitos dos cuidados pertinentes a cada tipo de animal: aves, caprinos, suínos, bovinos etc. É interessante notar que muitos destes cuidados – como venho demonstrando em textos anteriores – foram preservados e aperfeiçoados pela Quimbanda. Esses cuidados envolvem consagrações, purificações e encantamentos que prepararão o corpo e a alma do animal a ser imolado. Imediatamente antes da imolação, o animal é acariciado, apaziguado e encantado, para que esteja voluntariamente entregue no momento da imolação. Isso, no entanto, não evita sua dor ou sofrimento. Muitos chegam a enebriar o animal para evitar seu sofrimento, mas nós repudiamos esse tipo de ação, porque não é auspicioso que o animal esteja enebriado antes do sacrifício.
No momento da imolação, quando a lâmina da faca corta a pele do pescoço do animal, imediatamente uma torrente de adrenalina é acionada em seu cérebro, e é por isso que suas pupilas se dilatam. Nesse processo o animal sofre, menor que seja pelas precauções que tomamos. Além disso, quando a vida se desloca de seu corpo, iniciam-se os espasmos, típicos da maioria das mortes por motivos outros. Nesse processo de espasmos corporais, quando a vida deixa o corpo, o animal sofre. É importante que se entenda que morte e sofrimento caminham juntos; é importante que se entenda que em um culto de morte como a Quimbanda, exige-se que o adepto aprenda a lidar com a dor e com o sofrimento da existência corporificada. Assim como ocorre o sofrimento inerente quando a alma se desconecta do corpo no momento da morte, qualquer tipo de desprendimento que necessite ocorrer na vida causará dor e sofrimento. O sofrimento é uma lei imperial da experiência corporificada: nós entramos e saímos deste mundo sofrendo! Um ditado da Quimbanda diz: se no momento do sacrifício algo dentro de você não morre também, então você não entendeu essa arte direito, porque toda morte faz sofrer.
Na Quimbanda (e também nas culturas tradicionais africanas) nós aprendemos que absolutamente tudo no animal imolado possui àṣẹ (força de vida). Por esse motivo nós utilizamos todas as partes dos animais sacrificados. A técnica de pendurá-los, que inclusive é citada por J.O. Awolalu em seu livro, serve para facilitar a retirada desses àṣẹ, principalmente àqueles que serão consumidos como alimento compartilhado entre nós e os Gangas. Fundamentalmente, a técnica está conectada a higiene requerida para que não haja nenhum tipo de intoxicação alimentar nos adeptos do culto e seus parentes, porque esse àṣẹ pode ser levado para casa e consumido pelos familiares.
Um dos fundamentos
conectados ao sacrifício, é a alimentação da comunidade. Desde tempos
imemoriais na cultura greco-romana e em inúmeras culturas aborígenes até os
dias atuais, o alimento sacrifical é distribuído para todos os integrantes da
comunidade, para que todos, em maior ou menor grau, comunguem com os próprios
deuses e ancestrais. Porque ao ingerir um alimento consagrado a uma deidade,
traz-se a força dessa deidade para dentro do corpo, enriquecendo as potências
da alma.
[1] Veja uma retrospectiva dos
estudos acadêmicos sobre o sacrifício animal na introdução de Jennifer Wright
Knust e Zsuzsanna Várhelyi. Ancient Mediterranean Sacrifice. Oxford
University Press, 2011, pp. 3-31.
[2] Veja um resumo
interessante em C.A. Faraone e F.S. Naiden. Greek and Roman Animal
Sacrifice: Ancient Victims, Modern Observers. Cambridge University Press,
pp. 13-31.
[3] Uma das melhores
abordagens sobre o tema na cultura yorùbá, que tratará do sacrifício
como inserção, participação e atuação na ordem do Cosmos, veja Yẹmí Ẹlẹbuobọn.
The Healing Power of Sacrifice. Athelia Henrietia Press, Inc., 2000.
[4] J.O. Awolalu. Yoruba Beliefs
and Sacrifical Rites. Longman, 1979, pp. 371-426.