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QUIMBANDA: DISCIPLINA & LIBERDADE

 

Por Táta Nganga Kamuxinzela 

@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago

 

Um dos muitos temas que envolvem a Quimbanda é o da liberdade do Mestre de Quimbanda. Até pouco tempo atrás escutava-se o bordão de que todo mestre de Quimbanda é independente. A independência aqui é sinônimo de liberdade magística criativa, ou seja, na prática, após concluir seu processo de treinamento e desenvolvimento e tornar-se um Mestre de Quimbanda, o indivíduo tem a liberdade de tocar seu culto fazendo as atualizações e reconfigurações de seus fundamentos segundo as instruções do Exu tutelar. Então é aqui que entra a disciplina. Muitos são levados ao erro por fazerem atualizações e reconfigurações da própria cabeça, se esquecendo de que quem é o Táta do templo, domínio, terreiro, tronco ou cabula de Quimbanda é o Exu. A disciplina requerida no processo de desenvolvimento espiritual na Quimbanda, treinará o adepto a se comunicar e escutar o Exu, seguir suas orientações, sem inventar nada da cabeça. 

Quando cheguei na Quimbanda, meu primeiro mestre me orientou dizendo: para que você conquiste a liberdade mágica dentro da Quimbanda, você tem que se disciplinar rigorosamente, porque é dessa disciplina cultivada que nascerá a liberdade. E o Táta Kilumbu sempre está a nos lembrar: Quimbanda é liberdade, não libertinagem, porque liberdade sem disciplina caminha de mãos dadas com a libertinagem. Frisvold menciona: a Quimbanda não possui dogmas, embora ela esteja baseada na doutrina recebida por meio da tradição, em situações iniciáticas, mas o seu legado é transformado em harmonia com os espíritos tutelares [i.e. Exus e Pombagiras] que guiam e informam o trabalho. Esse ponto é quem sabe muito importante de se observar, porque é aqui que muita coisa pode dar errado nessa linha tênue entre o que os espíritos querem e precisam e o que o táta quer.[1] 

Até que essa linha seja perfeitamente distinguível e as instruções do Exu tutelar sejam rigorosamente implantadas sem a intromissão das ideias do próprio adepto, a tão sonhada independência magística no contexto da Quimbanda não passará de devaneio. Desde os dois volumes do Daemonium (2022, 2023), eu venho demonstrando que a Quimbanda opera por meio da fórmula mágica do espírito tutelar. Demonstrei também que, no escopo dessa fórmula mágica, quatro passos delineiam universalmente a jornada iniciática de um mago: i. o indivíduo se prepara, através do estudo, para chegada do mestre; ii. uma vez que tenha sido aceitado por um mestre, este lhe irá ensinar o segredo da magia; iii. de posse do segredo da magia, ele começará a oferecer seus serviços mágicos; iv. Com o tempo ele assumirá o lugar de seu mestre, e começará a ensinar o segredo da magia a novos discípulos interessados. 

Esse é exatamente o caminho percorrido pelos adeptos da Quimbanda. Esses quatro passos são divididos em graus dentro da estrutura do culto e, disciplinadamente, o adepto vai galgando níveis hierárquicos dentro desta estrutura, começando como Noviço e terminando como Mestre, um Táta ou Mameto de Quimbanda. A Quimbanda só começa de verdade quando o Noviço se torna um Táta. Até lá ele estará se preparando para praticar a Quimbanda com independência. Até que ele conquiste esse grau hierárquico na estrutura do culto, essa independência não ocorre, e ele seguirá disciplinadamente as orientações de seu Mestre, sem alterá-las em hipótese alguma. A disciplina consiste, portanto, no treinamento magístico adequado a capacitação das funções de um Mestre de Quimbanda. 

Costumo ensinar que dentro da estrutura do culto existem escolas distintas: i. a escola do noviço; ii. a escola do adepto; iii. a escola do sacerdote; iv. a escola do mestre. São escolas distintas, com fundamentos distintos para cada uma. Na escola do Mestre de Quimbanda, ele aprenderá que a independência e a liberdade no culto consistem em ver e tomar posse do poder, onde quer que ele esteja, porque Quimbanda se trata de apoderar-se do poder, do potencial de força mágica, e manipulá-lo para quaisquer fins desejados. E aqui entramos em um dos temas mais fascinantes que envolvem a Quimbanda e sobre o qual eu propus dissertação na Revista Nganga No. 10: a nova síntese da magia. 

A Quimbanda é a filha mais bem sucedida da nova síntese da magia. Neste contexto, no livro Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia, tive a oportunidade de apresentar um conceito magístico da Quimbanda Mussurumin conhecido como cabalá francesa ou cabalá europeia, que trata de apoderar-se da força mágica dos espíritos dos grimórios, anjos e demônios, e comandá-los por meio da autoridade do Exu tutelar e dos mecanismos de feitiçaria da Quimbanda. A Quimbanda Mussurumin desenvolveu um intricado sistema oracular que proporciona ao adepto acessar qualquer sistema mágico. Assim, por exemplo, caso o adepto deseje operar com os Espíritos Olímpicos, por meio do oráculo é possível acessa-los, inferir-lhes oferendas, sacrifícios e até assentamentos. Esse tipo de trabalho é para Mestres de Quimbanda apenas, porque de posse dos fundamentos e treinados na disciplina do culto, conquistaram liberdade, independência e autonomia para fazê-lo.



[1] Nicholaj de Mattos Frisvold. Seven Crossroads of Night. Hadean Press, 2023, pp. 93.




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