Por Táta Nganga Kamuxinzela
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Tem crescido no Brasil um tabu que subverte e degrada a prática religiosa, tanto no que se refere aos cultos tradicionais africanos e, fundamentalmente, aos cultos afro-diaspóricos como a Quimbanda e o Candomblé: é a questão do sangue na cabeça!
Uma grande massa de indivíduos tem espalhado falácias como essas: i. sangue na cabeça atrai espíritos obsessores (ajògúns, kiumbas e égún diversos) para vida da pessoa; ii. sangue na cabeça atrai azar e fecha os caminhos da pessoa; iii. sangue na cabeça fecha as conexões mediúnicas da pessoa; iv. Sangue na cabeça atrai a morte (ikù) etc. Uma miríade de sandices e crendices espalhadas aos quatro cantos a revelia do bom senso, do esclarecimento e da fundamentação religiosa.
No contexto da Quimbanda, primeiro esclareço um fato: as vertentes tradicionais de Quimbanda como a Nàgô, Mussurumim e Malê, não operam em hipótese alguma com sangue na cabeça no momento da iniciação; mas algumas vertentes como a Nàgô possuem, por outro lado, inúmeros fundamentos de medicinas mágicas onde o sangue pode ir ou não na cabeça, assim como ocorre no Culto Tradicional Yorùbá, i.e. o culto africano aos òrìṣà, o Iṣéṣé Làgbà.
Segundo, no que envolve essa discussão nas dimensões da Quimbanda, o tabu que tem se tentado estabelecer é esse: em culto de Exu e Pombagira não vai sangue na cabeça. Esse tabu é resquício dos antigos Candomblés, ainda do tempo em que não se costumava fazer iniciações para Èṣú òrìṣà, porque ele era associado ao Diabo: não se planta o Diabo no Orí de ninguém, assim pensavam. Assim, é apenas na contemporaneidade – após a chegada de Ifá no Brasil – que nasce o costume nos Candomblés de se fazer iniciações para Èṣú, já desassociado do imaginário sincrético do Diabo. Mas desse tempo deriva a criação deste tabu, de que quando se trata com Exu e Pombagira, não vai sangue no Orí.
Entende que é um tabu criado? Um dogma que vem do Candomblé seguido cegamente por um séquito de incautos da cultura da Macumba. Se sangue no Orí fizesse mal, como disseminam os apocalípticos de algumas vertentes da Quimbanda no Brasil, então Ifá, Iṣéṣé Làgbà e o Candomblé – que plantam a força de òrìṣà no Orí de seus adeptos, carregado pelo poder mágico do eje (sangue) – atrapalhariam a vida de todos, levando-os a morte. Quando ao contrário, são tradições que promovem um profundo processo de cura ancestral e progresso em todas as áreas da vida.
Outra origem para este tabu, assim tem sido estabelecido por alguns sacerdotes, é a herança de Èṣú òrìṣà como o bara do Candomblé, i.e. o corpo! Nem todo Èṣú no Candomblé é bara e o Exu de Quimbanda não é corpo! Isso tem de ficar muito claro porque essa é uma associação que tentam estabelecer forçadamente; por mais que o Exu-Diabo da Quimbanda seja inspirado e receba influência de Èṣú òrìṣà, como demonstrei no livro Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia, ele não é o bara do Candomblé, ou seja, Exu-Diabo da Quimbanda não é dono do corpo de ninguém.
Se atente aqui: Èṣú bara no Candomblé não apresenta transe/possessão; diferente de Èṣú olórí, i.e. o Èṣú dono do Orí, que apresenta transe. Então pensa: Se no Candomblé o Èṣú bara (do corpo) não se apresenta em transe, porque o Exu-Diabo da Quimbanda, supostamente corpo, se manifesta em terra. Essa conexão que tentam estabelecer entre o bara do Candomblé e o Exu-Diabo da Quimbanda como corpo, simplesmente não faz sentido nenhum.
Entenda que na Quimbanda, Exu-Diabo é o dono da Coroa. Essa coroa não é o Orí, como muitos pensam, mas o adorno de realeza, a Coroa dos três Exus que cobrem o Orí. Então existe uma conexão entre os Exus de Coroa e o Orí. É através do Orí que os Exus-Diabos da Quimbanda se manifesta em seus médiuns.
Na Quimbanda consideramos que tanto Exu-Diabo quanto òrìṣà são divindades, almas deificadas, não havendo diferença alguma entre eles. Em outras palavras: alguns òrìṣà, da mesma forma que o Exu-Diabo da Quimbanda, são ancestrais divinizados, como por exemplo o Rei Odùdwà e o Rei Òṣàlùfàn.
Voltando ao tema central, no Candomblé banha-se o Orí e o corpo com o sangue consagrado ao òrìṣà que está sendo plantado no Orí; no culto dos caboclos do Candomblé de Angola, vai sangue no Orí. O Caboclo aqui, assim como o Exu-Diabo da Quimbanda, é um homem divinizado, uma alma deificada. Consegue ver as conexões intrínsecas? Sendo o Caboclo uma alma deificada onde o eje é sobreposto ao Orí em seu culto, por que haveria de ter impedimentos quanto a isso na Quimbanda? Quando nós falamos que Quimbanda é liberdade, que fique claro, é a liberdade de se desprender desse tipo de crendice ridícula e que não faz sentido algum, baseada em devaneios ao invés de fundamentos. Para ser um kimbanda genuíno há de se quebrar os vínculos com estruturas de pensamento que limitam o nosso potencial magístico.
E é interessante notar que o bàbáláwo Yẹmí Ẹlẹbuibọn em seu livro The Healing Power of Sacrifice (Athelia Press, 2000), em três seções (pps. 37, 85 e 95 na sequência), joga por terra completamente essas sandices que delineei no segundo parágrafo acima: diferente do que propalam os apocalípticos desesperados, segundo Yẹmí Ẹlẹbuibọn, o eje em conexão com a cabeça e com o corpo tem o poder de (fora os odùs particulares que o proíbem em casos específicos): i. alimentar/plantar no Orí a força de òrìṣà carregada no sangue; ii. purificar o corpo e banir ajògúns; iii. promover longevidade (àìkú); iv. Harmonizar-se com a ordem do cosmos; v. apaziguar ancestrais etc. Quer dizer, inúmeros benefícios para a vida!
Outro tema interessante
tratado pelo bàbáláwo Yẹmí Ẹlẹbuibọn neste livro, é o poder castrador que o
tabu opera na sociedade. É como um programa inserido no tecido social,
que tanto condicionará a vida de todos na sociedade, quanto delineará seu norte
religioso. Em outras palavras, quando assumimos um tabu religioso, ele passa a
reger e nortear nossa jornada, o percurso iniciático que trilhamos. Dessa
maneira, devemos ser cautelosos ao assumirmos certos tabus sem raciocinar
lucidamente sobre eles.