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A QUIMBANDA GOÉCIA

 

Por Táta Nganga Kamuxinzela 

@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago

 

No fim da Antiguidade, durante o período apostólico, a presença de demônios era inferida muitas vezes através do mau comportamento das pessoas. Os ritos sacrificais e a piedade aos antigos deuses greco-romanos foram considerados, já nesse período, como sacrifícios oferecidos aos demônios. Tratava-se, portanto, de um comportamento inadequado, indevido e desviado fazer sacrifícios aos antigos deuses,[1] porque subordinava o homem aos caprichos das hostes do mal.[2] Nesse período construiu-se a ideia de que a prática da magia estava diretamente associada ao sacrifício aos antigos deuses; logo, qualquer tipo de prática mágica que ousou se valer de sacrifícios a partir desse período recebeu a alcunha de magia demoníaca porque envolve o exercício de ritos e sacrifícios aos demônios. 

A partir da Idade Média e se estendendo por todo o período da Idade Moderna, um conjunto de manuscritos mágicos de feitiçaria demonológica europeia (nigromancia), conhecidos como grimórios, traziam informações práticas acerca da convocação de espíritos ctônicos, telúricos e aéreos, os demônios. Dentre eles existe um manuscrito da família de textos atribuídos a Salomão do Séc. XVIII chamado Grimorium Verum, que foi associado à feitiçaria tradicional brasileira, i.e. a Quimbanda, na década de 1950.[3] Essa associação transformou definitivamente a Quimbanda em i. uma cultura de goécia brasileira e;[4] ii. nigromancia brasileira.[5] 

Na década de 1950, Aluízio Fontenelle (1913-1952) estabeleceu definitivamente Exu-Diabo no imaginário brasileiro. Ele conectou os Exus mais conhecidos da época a demônios do Grimorium Verum. O trabalho de Fontenelle proveu os rabiscos iniciais da Quimbanda como praticamos hoje, sua iconografia e estética diabólica. É em Fontenelle que pela primeira vez a ideia de reinos começa a se estabelecer na Quimbanda, apresentando o Reino das Encruzilhadas e o Reino do Cemitério. 

Ao divulgar a Chancela Imperial de Maioral, Fontenelle codificou os símbolos fundamentais da Quimbanda, associando-a ao esoterismo ocidental, inserindo no contexto do culto conceitos alquímicos e astrológicos derivados da magia cerimonial, a cabalá europeia. Foi Fontenelle também que delineou a ideia dos Maiorais ou os Chefes do Inferno no Grimorium Verum na Quimbanda (Lúcifer,[6] Beelzebuth[7] e Ashtaroth[8]), e elegeu o Baphomet de Eliphas Levi (1810-1875) como ícone central do culto, conectando o trabalho e as ações de Exu a Luz Astral ou Agente Mágico Universal de Levi, que em tradições platônicas e mágicas anteriores era identificada como a alma do mundo.[9] Aluízio Fontenelle estabeleceu uma ponte concreta entre a feitiçaria brasileira e o Ocultismo francês do fim do Séc. XIX. O Mestre de Quimbanda Muloji em seu livro Kiwanda: Raízes perdidas da Kimbanda Malei, diz: 

A Kimbanda Nago sempre foi a mais difundida, forte e conhecida em todo território do Brasil e se não foi a primordial. [...] Com o tempo alguns feiticeiros aderiram a mesclagem da Kimbanda Nago com a cabala goética dos demônios formando assim um submundo oculto para as práticas proíbidas. [...] Esta é a linha mais propagada e tradicional de Kimbanda existente no Brasil. Cultuada com imagens trevosas de gesso. [...] Apesar de Exu Gererê ser o comandante supremo, tornou-se comum o uso sincrético da estatueta de Baphometh.[10]

 

A Quimbanda Nàgô absorveu muitas influências demonológicas e diabólicas do Grimorium Verum e muitos a conhecem pelo termo Quimbanda Raiz ou Quimbanda Goécia, porque seguindo o caminho estabelecido por Fontenelle que sincretiza os Exus aos demônios do Grimorium Verum, a Quimbanda Nàgô desenvolveu seus fundamentos práticos nessa direção, onde o Exu tutelar do kimbanda comanda uma miríade de demônios, não só do Grimorium Verum, mas de todos estes classificados como nigromancia. 

Aqui nos encontramos com a fórmula mágica universal do espírito tutelar. Assim como na Magia de Abramelin o Sagrado Anjo Guardião é o agente de comando, poder e autoridade sobre os demônios; assim como na feitiçaria dos papiros gregos o paredros auxilia o feiticeiro a conjurar espíritos diversos e deificar sua alma; assim como Salomão fez do demônio Ornias seu espírito assistente; assim como Cipriano e Fausto conjuraram o Diabo para aprenderem os segredos da magia para comandar espíritos, obter conhecimento, poder e notoriedade, de igual modo o kimbanda tem acesso a uma miríade de demônios sob a autoridade e poder de seu Exu tutelar. 

Na Quimbanda Nàgô os Exus e demônios comem e atuam juntos;[11] o demônio potencializa a força e atuação do Exu. Trata-se, portanto, de um poder utilizado por Exu, um poder que está sob seu comando. Assim como o mago salomânico entendeu que poderia utilizar o poder dos demônios para servir aos seus propósitos, pelo simples fato deles estarem disponíveis na Natureza, de igual modo e através de seu Exu tutelar, o kimbanda tem acesso a esse mesmo poder disponível nos reinos fundamentais da Natureza: submundo, terra e ar. 

Como veremos na Seção III a frente, os símbolos hieráticos que compõem o Brasão Imperial de Maioral codificam, ou pelo menos demonstram a codificação estrutural da Quimbanda, onde uma força superior, um Mistério sem Nome, cresce a partir da junção dos poderes de Ògún, Èṣú, São Miguel e o Diabo. Dessa miscigenação mágico-cultural nasce o Chefe Império Maioral e com ele, a Quimbanda com suas hordas de Exus-Diabos. 

É essa força inominável, é este Mistério sem Nome, que chamamos de Maioral o Diabo, a fonte do poder dos Exus sobre os demônios do submundo, terra e ar. 

No trato com demônios na Quimbanda Nàgô não são utilizadas nenhuma das tecnologias mágicas tradicionais da magia cerimonial: círculo, triângulo, baqueta, robe etc. Outras, no entanto, são necessárias como a assinatura (cabalá) dos demônios. A metalinguagem hebraica da magia salomônica pode ser utilizada se o kimbanda tiver um bom nível de hebraico e souber manipular, por meio do Exu tutelar, a força ou assinatura espiritual por trás de cada letra e nome utilizado. 

Os espíritos que se apresentam dentro desta linha são denominados vulgarmente de bruxos ancestrais.[12] Existe um entendimento de que a maioria dos Gangas que se apresentam para trabalhar na Quimbanda Nàgô são feiticeiros, bruxos, religiosos e místicos de muitas tradições espirituais distintas, tanto de um passado distante quanto dos dias de hoje. Os espíritos que são os componentes desta linha são exímios entendidos na prática da magia, seja astral, ou natural, ou de qualquer outra forma ou modalidade a eles requisitados.[13] Isso indica que os Gangas da Quimbanda Nàgô têm a capacidade de atuar dentro da prática mágica de muitos sistemas distintos, assimilando-os e adaptando-os a Quimbanda. Isso abre uma dimensão magística gigantesca, dando ao kimbanda a liberdade de adaptar qualquer tipo de sistema magístico: Abordam facilidade em sua fundamentação permitindo ao mestre criador as mais diferentes e poderosas formas de fundamentação.[14] E a Quimbanda Nàgô é conhecida como linha cruzada quando mesclam duas ou mais linhas com a nagô. Quando esta linha é cruzada com rituais de outros cultos.[15] 

Os demônios são convocados pelo poder do Exu tutelar e a autoridade da Trindade Maioral, seguindo o sistema tradicional de convocação demoníaca em nome de demônios chefes de falange. Aos demônios são oferecidos sacrifícios e oferendas. No primeiro volume do Daemonium[16] eu resumi: 

Na história de Fausto, Mefistófeles lhe confere uma acurada descrição de como se organiza a hierarquia espiritual, muito similar a descrições que encontramos nas famílias de espíritos de diversas tradições de cabala crioula:[17] espíritos menores são governados por espíritos maiores e mais poderosos. Tudo funciona como uma longa cadeia de transmissão onde o mago pede ao espírito e ele leva a seu superior o pedido do mago. E essa é a ideia central por trás da arte da goécia desde a Antiguidade clássica: o espírito ajuda o mago com a autorização de um poder superior, muitas vezes uma divindade. Na recessão cristã da hierarquia infernal, é o Diabo que assume a posição de espírito superior,[18] da mesma maneira que os deuses nas culturas gregas e romanas.

 

A Quimbanda Nàgô é a derivada mais flexível da demonologia sincrética de O Livro de São Cipriano (e toda corrente cipriânica-fáustica ibérica),[19] assim como da diabologia do Grimorium Verum franco-italiano assimiladas por Aluízio Fontenelle, porque ela é muito rica em fundamentos, o que lhe confere uma abordagem magística abrangente. Um Mestre de Quimbanda Nàgô é capaz de operar com qualquer tipo de demônio derivado dos grimórios salomônicos, associando-o aos Gangas da Quimbanda.



[1] Diferente das culturas anteriores ao cristianismo, o sacrifício aos deuses nas sociedades tradicionais antigas era considerado uma boa conduta, um bom comportamento. Veja o opúsculo O Sacrificio Animal: Mundo Antigo, Cultura Africana & Quimbanda.

[2] Valerie Flint. Ensaio Demonizando a magia e a feitiçaria na Antiguidade Clássica: redefinições cristãs das religiões pagãs. Publicado em Bruxaria e Magia na Europa. Madras, 2004.

[3] Na Parte I do livro Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia, me esforcei por demonstrar tendências higienístas que hoje são propagadas na Quimbanda, cuja intenção é invalidar o trabalho das vertentes tradicionais de Quimbanda, fundamentalmente a Quimbanda Nàgô, e sua hibridização com a demonologia europeia, classificando inúmeras famílias de Quimbanda Nàgô como dissidências ilegítimas.

[4] Como demonstrei nos dois volumes do Daemonium, a goécia é uma prática de necromancia grega que data do Séc. V a.C. É somente com a interpretatio romana por volta dos Sécs. III-V d.C. que a goécia grega assumiu a forma salomônica e, desde então, associada a convocação de demônios. Veja Humberto Maggi. Goetia: História & Prática. Clube de Autores, 2020. Para uma introdução ao tema da Quimbanda como goécia brasileira, veja Revista Nganga No. 10.

[5] A nigromancia é uma expressão medieval pejorativa derivada do termo grego necromanteia, i.e. necromancia, a comunicação com os espíritos dos mortos para fins de divinação e de magia (quando ganha também o epíteto de necrurgia). A nigromancia na Idade Média foi associada à prática de magia negra demoníaca e a todo tipo de tabu mágico-religioso da sociedade europeia do período. O termo nasce para i. condenar os sacrifícios a antigos deuses pagãos, reclassificados como demônios e; ii. condenar o exercício ritual de grimórios noturnos, i.e. que lidam com todo tipo de espírito sublunar, geralmente classificados como demônios também. Veja os livros Daemonium Vol. 2 (Clube de Autores, 2022) e Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia (Clube de Autores, 2023). A Quimbanda é, declaradamente, o único culto nigromântico genuinamente brasileiro.

[6] Sincretizado com Exu Lúcifer.

[7] Sincretizado com Exu Beelzebuth.

[8] Sincretizado com Exu Rei das Sete Encruzilhadas. Na nossa família Cova de Cipriano Feiticeiro, Astaroth é sincretizada com Pombagira Rainha das Sete Encruzilhadas. Essa Trindade Infernal

[9] Veja Cornélio Agrippa. Três Livros de Filosofia Oculta. Madras, 2008. Veja também Revista Nganga No. 8.

[10] Muloji. Kiwanda: Raízes da Kimbanda Malei. Edição do Autor, 2023, pp. 118-125.

[11] Eles podem, no entanto, comer separados e terem moradas de poder (assentamentos) distintos. Tudo dependerá da natureza do Exu e do demônio.

[12] Muloji. Kiwanda: Raízes da Kimbanda Malei. Edição do Autor, 2023, pp. 120.

[13] Ibidem.

[14] Ibidem.

[15] Ibidem.

[16] Fernando Liguori. Daemonium. Vol. I. Clube de Autores, 2019, pp. 239.

[17] Aqui, especificamente, eu me referia a Quimbanda.

[18] Assim como na Quimbanda.




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