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OSSADA HUMNANA NA QUIMBANDA

  

Por Táta Nganga Kamuxinzela

@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago


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Contextualização

Este texto é uma continuação do vídeo sobre o mesmo tema que disponibilizei no Instagram e no YouTube. Como o Instagram só permite vídeos de um minuto, muitos detalhes importantes foram omitidos; o presente opúsculo, portanto, irá pautar alguns detalhes importantes para o entendimento leigo ou secular daqueles que estão fora da Quimbanda. Contextualizando, dias antes desse vídeo eu havia feito outro vídeo, sobre o mesmo tema, onde afirmei categoricamente: as vertentes tradicionais de Quimbanda não utilizam ossada humana em fundamento de Exus, mas sim de kiumbas. Na ocasião, a resposta foi dada a um seguidor que, nas suas próprias palavras, disse: vejo muitos fundamentos de Exu na internet com ossos humanos.

Nos dias que seguiram estes dois vídeos, uma série de respostas feitas pelos bandas de casa foram postadas. Algumas grotescas e execráveis como: foda-se, resposta digna de um imbecil desfundamentado; e teve uma outra onde o banda de casa afirmou que minha intenção é regular o culto. É impressionante a desonestidade intelectual e a paralaxe cognitiva da maioria dos indivíduos que se dizem kimbandas na internet e que fazem algum tipo de trabalho público.

Em tempo algum a nossa banda – os três domínios dos Exus Marabô e Maria Padilha, Pantera Negra e Dama da Noite, Tiriri da Calunga e Maria Padilha da Praia – tenta regular a Quimbanda em sua grande heterogeneidade nas três ondas de manifestação das vertentes. O que nós fazemos é trazer luz, quer dizer, propor esclarecimento, sobre as técnicas de feitiçaria e fundamentos das vertentes tradicionais, as quais temos acesso e somos iniciados. Não nos importa, dessa forma declaramos, os métodos e sistemas adotados por outras famílias no universo da Quimbanda, mas apenas falar de nosso culto e divulga-lo, com a intensão genuína da expansão do reinado do Chefe Império Maioral, o Diabo.


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Quimbanda, Necromancia e Nigromancia

A Quimbanda é tanto necromancia como nigromancia.

A nigromancia é uma expressão medieval pejorativa derivada do termo grego necromanteia, i.e. necromancia, a comunicação com os espíritos dos mortos para fins de divinação[1] (sciomancia) e de magia (necrurgia). A necrurgia no Brasil é conhecida como defuntaria e tem como uso padrão partes da ossada humana. A nigromancia na Idade Média foi associada à prática de magia negra demoníaca e a todo tipo de tabu mágico-religioso da sociedade europeia do período. O termo nasce para i. condenar os sacrifícios a antigos deuses pagãos, reclassificados como demônios e; ii. condenar o exercício ritual de grimórios noturnos, i.e. que lidam com todo tipo de espírito sublunar, geralmente classificados como demônios e o pacto que se estabelece com eles. A Quimbanda é, declaradamente, o único culto nigromântico genuinamente brasileiro.

A Quimbanda como culto nigromântico tradicional brasileiro opera com três tipos de espíritos, classificados de modo geral como: i. almas divinizadas; ii. almas de modo geral e; iii. espíritos encantados do bioma em que se encontram os kimbandas. Estes três tipos de espíritos habitam os três éteres sublunares, ar, terra e submundo, e na cosmovisão do cristianismo que se estabeleceu no Ocidente, foram considerados demônios, os anjos caídos da teologia cristã. No meu livro Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia, eu demonstro que é pelo fato dos Exus da Quimbanda operarem nestes mesmos éteres sublunares, os éteres em que habitam os demônios ou anjos caídos, é que foi possível associá-los na síntese estabelecida por Aluízio Fontenelle (1913-1952), e que deu origem a Quimbanda como a conhecemos hoje. Todos os espíritos que se enquadram nessas três classes são elencados como exus, égún e kiumbas.

Os Gangas da Quimbanda, i.e. os Exus e Pombagiras, são as almas deificadas do culto, os heróis aos quais propiciamos reverência piedosa. Almas deificadas (i.e. glorificadas, iluminadas, emancipadas) são àquelas que conquistaram a apoteose de superar os danos da segunda morte, transcendendo-a e mantendo intacta, coesa, a consciência individual. Como expliquei no segundo volume do Daemonium, almas deificadas são encontradas em todos os cultos antigos, modernos e contemporâneos: os heróis míticos da Grécia, os santos católicos,[2] os mestres ascensionados da teosofia, os poderosos mortos da wicca e os chefes secretos de thelema.

Uma das características fundamentais de uma alma deificada é a sua emancipação total e, portanto, independência e desconexão, com a matéria e a corporeidade. A ideia de transcendência da corporeidade começa com Platão (428-348 a.C.), adaptada de um conhecimento que ele extraiu dos órficos, e que influenciou toda religiosidade que se estabeleceu no Ocidente. Uma alma deificada que transcendeu a materialidade não precisa, portanto, de partes de seu corpo (a ossada) para ser cultuada e reverenciada. É por causa disso que não utilizamos, nas vertentes tradicionais de Quimbanda, ossada humana em fundamento de Exu, i.e. os assentamentos.

Hoje é comum visualizarmos na Internet fundamentos de Exu e Pombagira com ossada humana. Na perspectiva tradicional da Quimbanda, derivada das vertentes fundantes, isso se trata de fundamento de kiumba e, sob essa mesma perspectiva, um fundamento construído de forma equivocada, porque não se trata de extrair do cemitério qualquer parte do corpo de qualquer morto. Essa prática, de subtrair do cemitério partes dos corpos de mortos, existe, e é realizada com intuito de colocar o égún de uma cova especifica sob a autoridade do Exu tutelar, já devidamente assentado.

Um kiumba é um tipo diferente de égún. Trata-se da alma de um feiticeiro que não conseguiu a deificação e, portanto, é considerado um égún poderoso e perigoso. Alguns tátas antigos costumam dizer que os kiumbas, por terem conhecimento de manipulação de energia mágica, são tão poderosos quanto Exus recém-admitidos na Armada do Chefe Império Maioral, o Diabo. Estes kiumbas têm uma natureza irascível e maligna, e têm também o poder de arregimentar égún de todos os tipos para trabalhar sob sua autoridade. Muitos kiumbas operam sob o comando dos Exus da Quimbanda. Na antiga formação das Sete Linhas, eles eram alocados na Linha Mista, sob o regimento de Exu dos Rios, e recebiam também o título de exu. E é dentro do contexto deste trabalho que existe na Quimbanda Nágô o fundamento de kiumba. Por se tratar de uma alma que não conseguiu sua deificação e, assim, não transcendeu a corporeidade, o kiumba necessita de sua ossada no seu fundamento.

Outros fundamentos que exigem a conexão direta com égún diversos é o assentamento de Cruzeiro das Almas e o assentamento de Égún Capataz, que não costumam utilizar ossada humana. 

 



[1] A divinação em grego é manteia; portanto, o sufixo -mancia é usado em descrições técnicas de divinação, por exemplo, oneiromancia (divinação onírica), hidromancia (divinação por meio de uma bacia de água) etc. A necromancia, é a antiga arte grega de exumar cadáveres para fazer com que eles profetizem, e foi compreensivelmente considerada como o aspecto mais sinistro da divinação. No latim medieval, a raiz grega original (nekros, i.e. cadáver) foi corrompida para o latim niger (negro), quando surge a nigromancia, a arte negra. É em grande parte dessa confusão etimológica que o termo magia negra deriva. A divinação abrindo livros, muitas vezes a Bíblia aleatoriamente, era chamada em latim de sortilegium, significando literalmente leitura de destino, mas muitas vezes aplicada à magia em geral ou até mesmo à bruxaria. Veja o terceiro volume do Daemonium (no prelo).

[2] Importante destacar que, embora almas deificadas, o culto dos santos se estabelece sobre as bases da antiga religião tradicional romana, e não da religião tradicional grega, porque são diferentes em inúmeros aspectos.




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