Por Táta Nganga Kamuxinzela
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Eu sempre retorno a essa questão, porque ela é essencial ao entendimento da mecânica de trabalho e da cultura da Quimbanda: muitos que chegam a Quimbanda trazem ideias que vêm da cultura da Umbanda, sobrepondo esses valores, cosmovisão, técnicas e fundamentos sobre o culto da Quimbanda. Isso dificulta a compreensão dos processos iniciáticos da Quimbanda e às vezes, como veremos a seguir, leva muitos anos para que as ideias e os valores da Umbanda sejam purificados completamente para um exercício genuíno e fidedigno de Quimbanda. E muito embora haja semelhanças entre essas duas correntes da feitiçaria brasileira, como já havia demonstrado Lourenço Braga (1900-1963) em sua obra de 1942, Umbanda & Quimbanda, se tratam de sistemas distintos e na visão de umbandistas do quilate deste autor, diametralmente opostos, porque diferente da Umbanda, a Quimbanda i. opera dentro de um sistema visceral de nigromancia; ii. troca energética diretamente vinculada a valores monetários e; iii. uma técnica de comunicação com os espíritos muito singular, um sistema desenvolvido unicamente pela Quimbanda.
Ponto 1. A nigromancia é uma expressão medieval pejorativa derivada do termo grego necromanteia, i.e. necromancia, a comunicação com os espíritos dos mortos para fins de divinação (sciomancia) e de magia (necrurgia). A necrurgia no Brasil é conhecida como defuntaria e tem como uso padrão partes da ossada humana. A nigromancia na Idade Média foi associada à prática de magia negra demoníaca e a todo tipo de tabu mágico-religioso da sociedade europeia do período. O termo nasce para i. condenar os sacrifícios a antigos deuses pagãos, reclassificados como demônios e; ii. condenar o exercício ritual de grimórios noturnos, i.e. que lidam com todo tipo de espírito sublunar, geralmente classificados como demônios e o pacto que se estabelece com eles. A Quimbanda é, declaradamente, o único culto nigromântico genuinamente brasileiro.
Ponto 2. O Grimorium Verum, que transmitiu a Quimbanda sua corrente mágica de goécia nigromântica, e cujos valores foram fundamentais na estruturação do sistema da Quimbanda, inicia com essa passagem:
Aqui começa o Sanctum Regum, chamado o rei dos Espíritos, ou as Clavículas de Salomão, mui sábio Nigromante, ou Rabino, hebreu. Na primeira parte estão contidas diversas disposições de caracteres, pelos quais são invocadas as Potências, os Espíritos, ou melhor dizendo, os Diabos, para os fazer vir quando vos agradar, cada um de acordo com sua potência, e para lhes constranger a fazer tudo que tu lhes ordenar, e sem jamais se aquietar por qualquer coisa, desde que eles estejam satisfeitos com sua parte, porque esse tipo de criatura não faz nada por nada.[1]
Como demonstrei no terceiro volume do Daemonium (ainda no prelo), essa passagem esclarece o pano de fundo da síntese estabelecida por Aluízio Fontenelle em seu livro «Exu», de 1952, do qual derivou a ideia moderna de Quimbanda: Exus e demônios associados, sincretizados. Essa parte final do excerto acima é importantíssima para a compreensão desse aspecto de troca energética vinculada a valores monetários na Quimbanda: desde que eles estejam satisfeitos com sua parte, porque esse tipo de criatura não faz nada por nada.
É do Grimorium Verum que a Quimbanda herda a paga de Exu, e dessa prática nasceu um ditado comum da Quimbanda: Exu responde no caminho do dinheiro e o dinheiro responde no caminho de Exu. O Grimorium Verum foi considerado por muitos ocultistas de alto calibre como o mais fiel e genuíno grimório diabólico já escrito. Ele é efetivamente a influência por trás do culto do Diabo que existe na Quimbanda. E como todos sabemos, o Diabo com toda sua corte de demônios trata-se de opulência, grandeza, realeza, domínio e satisfação material.
Ponto 3. A Quimbanda desenvolveu um apurado e refinado método de comunicação com os Gangas do culto, e aqui entra a questão fundamental deste opúsculo. Em linhas gerais o método da Quimbanda pode ser resumido da seguinte maneira: Em um primeiro momento, o kimbanda (adepto) desenvolve uma profunda conexão com seu Exu tutelar por meio de um oráculo usado para i. a comunicação direta e efetiva com o Exu tutelar e; ii. aferição de oferendas, medicinas, sacrifícios etc. dentro da linha de trabalho do Exu, exclusivamente (mantenha essa palavra em mente). Em um segundo momento, agora não mais um kimbanda, mas um nganga (sacerdote), ele estará apto e preparado – uma vez que conquistou proficiência na comunicação com seu Exu tutelar – a estabelecer conexões com outros Gangas da Quimbanda e a operar magicamente dentro de suas diversas linhas de trabalho.
A Umbanda opera por meio de um método diferente, e aqui, é claro, não me refiro a um todo homogêneo, respeitando a imensa diversidade deste culto. Mas em linhas gerais e na grande maioria dos casos que chegam até a mim e meu sacerdócio, a Umbanda incentiva a ofertar o desconhecido, que ocorre assim: se você não sabe quem é seu Exu, através de sua intuição, suas emoções e seus sentimentos, você pode ofertar a ele sem saber efetivamente quem é. Para nós da Quimbanda esse tipo de abordagem é de um amadorismo pueril, além de muito perigoso. Quando você faz uma oferenda a um espírito desconhecido, por mais dignas e verdadeiras que sejam as suas intensões, qualquer um pode comer ali: égún diversos e, principalmente, kiumbas, que adoram esse tipo de situação, porque passarão a atuar como um Exu tutelar, assumindo seu lugar. Então de Umbanda você passou diretamente a Kiumbanda, não tecnicamente, mas simbolicamente.
Os kiumbas são égún poderosos, porque eles têm conhecimento de feitiçaria e é isso que os capacita a i. trabalhar para os Exus; ii. fazerem se passar por Exus ou; iii. guerrear às vezes em pé de igualdade com os Exus.
Quando você oferta ao desconhecido, muitas vezes em qualquer lugar, sem saber ou possuir meios efetivos para comunicação com os espíritos, não há como saber se quem se apresentou e recebeu a oferenda tem afeição ou irá querer destruir quem oferendou. Quando você coloca um desconhecido dentro de sua casa ele pode fazer qualquer coisa com você: te ajudar a crescer e a prosperar, ou te destruir completamente. É importante dizer, muito embora isso possa ser embaraçoso para muitos que irão ler, que nem todo mundo que busca a Quimbanda tem efetivamente ancestralidade conectada a Quimbanda. Muitos que chegam aos portões infernais da Quimbanda solicitando admissão no culto, não têm em sua ancestralidade nenhum Ganga da Quimbanda. Quando isso ocorre, busca-se nos Reinos da Quimbanda um Exu que queira tutelar aquele indivíduo, para que dali em diante ele possa seguir no culto.
Irei descrever uma situação que ocorreu dentro da família Cova de Cipriano Feiticeiro para ilustrar tudo o que foi dito acima. Uma iniciada no culto recebeu uma incumbência especial para se comunicar e para oferendar o Exu tutelar de seu irmão, impossibilitado de cultuar por si mesmo. Esse iniciada herda valores e ideias que vêm da Umbanda. Em uma ocasião particular, por intuição e sentimentos, decidiu também oferendar a Pombagira do irmão, que ela não sabia quem era. Em decorrência de tal displicência, o irmão passou por terríveis complicações. Soldo: sentimentos, intuições, emoções e boas intenções, por mais que genuínas e verdadeiras, não garantem o acesso ou o sucesso, e pior, podem propiciar as oportunidades ideais para que kiumbas assumam a identidade do espirito que se deseja oferendar e a partir disso, criar um caos na vida de quem oferenda.
Na Quimbanda nós nunca
ofertamos ao desconhecido. A Quimbanda desenvolveu tecnologias mágicas de
acesso aos espíritos, tecnologias essas transmitidas como fundamentos dentro de
uma estrutura organizada de desenvolvimento magístico e mediúnico.
[1] Grimorium Verum, 1817. Tradução em
Humberto Maggi. Thesaurus Magicus, Vol. I. Clube de Autores, 2010, pp.
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