Carregando...
A GOÉCIA COMO ESTILO DE VIDA DAEMÔNICO

 

Por Táta Nganga Kamuxinzela

@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago 

 

Esse é um livro sobre goécia. Por volta de 2019 eu gravei um vídeo para o meu canal no YouTube onde mencionei que a goécia em seu cerne mais primitivo não se trata de uma prática espiritual de convocação de demônios, mas contrario disso, de um estilo de vida daemônico, quer dizer, um estilo de vida de comunicação com os espíritos: mortos e encantados diversos da natureza, daí o nome desses volumes serem daemonium, fazendo referência a um estilo de vida magístico de comunicação com os espíritos, fundamentalmente àqueles do orbe sublunar: aéreos, telúricos e ctonianos. São esses espíritos que comumente são agrupados sob a alcunha de goécia.

Mas para muito além de um estilo de vida daemônico e, portanto, de visão encantada de Cosmos, a goécia se trata de uma tradição mágica viva, do mesmo calibre das tradições afro-diaspóricas do Novo Mundo, também consideradas culturas mágicas vivas, como o Palo, o Vodu ou a Quimbanda. Sob o olhar mais primitivo da goécia, essas tradições afro-diaspóricas são tipos ou culturas de goécia. A goécia como ficará demonstrado neste volume, está no cerne da cultura mágica ocidental, provendo vitalidade a todas as correntes mágicas do que se conveniou chamar de esoterismo ocidental, principalmente àquelas dedicadas ao estudo e aplicação da magia. A origem primordial da magia, xamânica, animista, fetichista, vitalista e totêmica, é goécia. O conhecimento mais primitivo acerca do uso da magia em sociedades e culturas aborígenes na África, na Austrália ou nas Américas, é goécia.

Então muito antes de goécia ser considerada uma prática necromântica para fins de oráculo e magia na Grécia no período da pólis, ou um sistema salomônico de magia demonológica judaico-cristã no fim da Antiguidade e Idade Média, a goécia era o estilo de vida de um feiticeiro, o goēs. O termo grego goēteia, portanto, nasce do exercício magístico de um goēs, refletindo uma piedade mágico-religiosa proscrita e banida pela aristocracia grega. Frater Archer faz uma contribuição deslumbrante sobre o tema: 

As características previamente descobertas que caracterizavam um goês como tal assumem o risco de serem profundamente enganosas. No âmago deste feiticeiro-charlatão demoníaco estava uma ambiguidade indiscutível. Nenhuma ferramenta específica ou ornamento de artesanato era necessário para que alguém fosse percebido como um goês. Pode-se argumentar a natureza espontânea e errática de seu trabalho espiritual transferido para o termo que visava descrevê-los - e que escapou de qualquer categorização fixa ou ordem feita pelo homem. [...] Como Jake Stratton-Kent apontou [...], o nome do ofício goêteia é derivado da personalidade de seu praticante, o goês, e não o contrário. [...] Podemos ver que a definição de um goês é muito mais voltada para um estado de ser do que para uma prática específica.[1] 

Em algum momento entre os Sécs. VII e V a.C., Apolônio de Rodes (295-215 a.C.) foi o primeiro a mencionar o termo goētes na citação abaixo retirada de seu Phoronis, uma obra que hoje só existe em fragmentos. Ele usa o termo para se referir a três irmãos demoníacos – Kelmis (bigorna), Damnameneus (martelo) e Akmon (ferro), que vivem no mítico monte Ida. 

Onde os goêtes de Ida, homens frígios, tinham suas casas na montanha: Kelmis o grande, Damnameneus, e o altuoso Akmon, servos habilidosos de Adrastea da montanha, eles que primeiro, pelas artes do astuto Hefaesto, descobriram o ferro escuro nos montes da montanha, e o trouxeram para o fogo, e promulgaram uma bela conquista.[2] 

A primeira menção a goēteia é, portanto, mítica, identificando-a com a própria descoberta do ferro e a arte de manipulá-lo através do fogo. No monte Ida neste período havia uma intensa atividade de mineração e a goécia foi relacionada a habilidade de manipular este poder. Então goécia estava associada as cavernas profundas e escuras, ao ferro de suas profundezas, a sua fundição e o domínio da forja. Os espíritos associados a esse mito eram guardiões do limiar entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos.

Estes primeiros goēs capturados pela literatura refletem as características-chave do ofício da goēteia: ao invés de se tratar de uma prática, exercício magístico ou sacerdotal, ferramenta mágica ou função social – até porque posteriormente tudo isso foi associado a goécia – tratava-se de um estado daemônico de ser, um estado de intensa emergência espiritual e conexão com o Espírito da Natureza e os daimones (espíritos) que nela habitam. Toda a chave do enigma está nessa citação de Apolônio de Rodes: substância (ferro), potência/força (martelo) e o meio ou ambiente mágico (bigorna) manipulados, permite a ação mágica. Não se tratam apenas das forças mágicas através das quais a magia irá funcionar, mas as forças reais espirituais que qualquer goēs (feiticeiro), i.e. um manipulador de forças mágicas, precisa subjugar para que o ferro, a prima materia, precisa ser fundida, forjada e polida.

A goécia, portanto, se trata de um estado de espírito daemônico requerido para viver um estilo de vida de comunicação com espíritos diversos da Natureza a fim de manipular suas forças mais primordiais. Trata-se de uma arte de manipulação de forças mágicas conectadas a terra e suas profundezas. Frater Archer completa: 

Aqui agora encontramos o contrapeso essencial para a performance espontânea e selvagem do goês: não há aleatoriedade em algum ritmo e nenhum desvio de coreografia. Não há segunda ideia para a chama que derrete o ferro e não há misericórdia para o martelo que atinge a bigorna. O trabalho do goês incute medo no coração humano, porque cruzar o limiar entre os vivos e os mortos não é para os fracos de coração. Para emergir como um goês – marcado para a vida e além – precisamos enfrentar nossos próprios medos primeiro.

As forças vivas que nos levam para dentro e através deste processo são tanto goêteia quanto o ser que emergirá dela. Nós essencialmente nos tornamos um com os espíritos. É por isso que o termo goês sempre permanecerá radicalmente ambíguo para o estranho: significa espíritos demoníacos tanto quanto o calor da forja do fogo que derrete o ferro. É também por isso que uma tradução mais liberal e ainda literal do ofício chamado goêtia seria «homens que brincam com fogo».[3] 

E não é isso exatamente que o kimbanda brasileiro faz: manipular o fogo do Submundo sem queimar as mãos? Como será demonstrado nesse livro, o estilo de vida de um kimbanda é goécia: o exercício de comunicação com os espíritos, mortos e encantados diversos da Natureza, na intenção de manipular suas forças mais primordiais. Como ficará claro, não há nada que o antigo goēs fizesse que seja muito diferente do que nós kimbandas fazemos na Quimbanda. A Quimbanda é goécia brasileira! As técnicas de feitiçaria e acesso aos espíritos são universais e mudam pouca coisa de uma cultura para outra.

Eu sempre declaro este bordão: a Quimbanda é um culto mágico; é o exercício de se aprimorar a arte de fazer magia. E acrescento mais: a Quimbanda é a arte de manipular a potência e a força do fogo no Submundo. O fogo da forja emula o fogo das profundezas, a potência ígnea do centro da Terra, que é a própria força de Exu; o ferro, extraído da terra matter, a petra genitrix, sagrado em muitas sociedades da Idade do Ferro, também é um metal-símbolo sagrado da Quimbanda, a matéria prima de nossas facas, as armas mágicas de nosso culto, e tem uma relação íntima com o Ògún de Quimbanda,[4] o mestre da guerra e arauto civilizatório. Esses três espíritos demoníacos citados por Apolônio de Rodes, o ferro, o martelo e a bigorna, como referência a goēteia, também são sagrados na Quimbanda, porque são símbolos de guerra, domínio e expansão territorial. Mircea Eliade (1907-1986) cita que nas sociedades antigas, acreditava-se que aqueles que tinham domínio sobre estas forças da Natureza poderiam vencer qualquer guerra.[5]

E para encerrar essa seção, Nicholaj de Mattos Frisvold diz que a Quimbanda é goécia, na medida em que é ctônica e telúrica. E enfatiza que neste caso, não se trata da goécia como convocação de demônios, mas no sentido em que define a linha entre a vida e a morte.[6] Para validar seu argumento ele cita Frater Archer: 

A feitiçaria primordial dos primeiros goêtes: estabelecer e manter fronteiras entre o reino dos mortos e dos vivos, para manter o limiar entre o mundo ctônico e o mundo humano. Igualmente, eles eram as forças através das quais os sacerdotes humanos também cruzariam esses limiares – e interagiriam com forças e seres do outro lado. Os Idaian Dactyls [ferro, martelo e bigorna] representavam a porta, a chave e o limiar, bem como os guardiões que cuidavam dela.[7]

 



[1] Frater Archer & José Gabriel Alegría Sabogal. Clavis Goêtica: Keys to Chthonic Sorcery. Hadean Press, 2021, pp. 21-2.

[2] Apolônio de Rodes. Citado em Frater Archer & José Gabriel Alegría Sabogal. Clavis Goêtica: Keys to Chthonic Sorcery. Hadean Press, 2021, pp. 22. Referência aos servos de Adrasteia, uma ninfa da montanha associada à própria Rhea, que deu à luz uma série de daimones machos nascidos na montanha e encarregados de manter o limiar entre o reino ctônico e o mundo dos vivos.

[3] Frater Archer & José Gabriel Alegría Sabogal. Clavis Goêtica: Keys to Chthonic Sorcery. Hadean Press, 2021, pp. 23.

[4] Para contextualização sobre Ògún na Quimbanda, veja Fernando Liguori. Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia. Clube de Autores, 2023.

[5] Mircea Eliade. Ferreiros & Alquimistas. Relógio D’água, 1989, pp. 23. Este livro é altamente indicado para compreensão deste estudo.

[6] Nicholaj de Mattos Frisvold. Seven Crossroads of Night: Quimbanda in Theory and Practice. Hadean Press, 2023, pp. 88.

[7] Frater Archer & José Gabriel Alegría Sabogal. Clavis Goêtica: Keys to Chthonic Sorcery. Hadean Press, 2021. Citado em Nicholaj de Mattos Frisvold. Seven Crossroads of Night: Quimbanda in Theory and Practice. Hadean Press, 2023, pp. 88-9.

 




VOLTAR