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A QUIMBANDA NO ESOTERISMO OCIDENTAL



Por Táta Nganga Kamuxinzela

@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago

Para localizarmos a Quimbanda dentro do esoterismo ocidental, primeiro temos de definir o que é o esoterismo ocidental. Desde o segundo volume do Daemonium eu apresento a Quimbanda como uma genuína tradição viva dentro do que se conveniou chamar de Ocultismo, que hora é confundido com o próprio esoterismo ocidental, hora representa as suas últimas fases, ou hora trata-se apenas de uma matéria de estudo do esoterismo o ocidental. Como apresentarei nessa seção do livro, o Ocultismo nasce na escola francesa da magia; ele é citado pela primeira vez em 1842 por Jean Baptiste Richard, e em seguida utilizado amplamente por Eliphas Levi (1810-1875),[1] personagem importante e de muito prestígio na Quimbanda, tamanha sua influência na obra e síntese de Aluízio Fontenelle (1913-1952). É o Baphomet de Eliphas Levi a imagem iconográfica do Chefe Império Maioral, o Diabo, a deidade regente da Quimbanda.[2] E como vimos na Parte I, a goécia é uma corrente mágica que vivifica todo esoterismo ocidental, muito embora tenha sido rejeitada no renascer da magia que começou com Arthur Edward Waite (1857-1942) no fim dom Séc. XIX e foi continuado por MacGregor Mathers (1854-1918) e Aleister Crowley (1875-1947). O primeiro elo de conexão entre a Quimbanda e o esoterismo ocidental é o fato dela ser vivificada ou permeada pela goécia como a feitiçaria que subjaz todos os cultos verdadeiramente mágicos – e necromantes – do Ocidente:[3] A tradição da goécia hoje é revelada àqueles que têm olhos para ver – como uma tradição venerável que antecede até mesmo os fundamentos da civilização e da filosofia, que muitas vezes a restringem.[4] Jake Stratton-Kent (1956-2023) completa: 

Minha apreciação pelas Religiões Tradicionais Africanas envolve o reconhecimento – como um magista ocidental – de que, por várias razões, nossa tradição [i.e. a magia ctônica de grimórios como o Grimorium Verum] permanece atualmente em um processo de reavivamento.[5] Como tal, temos muito a aprender com as tradições vivas, das quais as Religiões Tradicionais Africanas são grandes exemplos dignos de nosso maior respeito.

O objetivo deste diálogo é elevar nosso reavivamento oculto[6] ao status de uma tradição viva; servir e ser servido por nossos próprios deuses e espíritos. Eu não defendo a apropriação de elementos de outras culturas em uma mistura mal informada; em vez disso, pelo contrário, a apreciação respeitosa deles como uma influência revitalizante em nossas próprias tradições. Isso eu abordo como um diálogo, entre a goécia como minha herança cultural legítima e as tradições do Novo Mundo[7] como a de outra pessoa. A adoção dos espíritos do Grimorium Verum na Quimbanda, como contrapartes sincréticas dos Exus, tem sido extremamente útil a esse respeito. Essa síntese espetacular, ao envolver espíritos do meu próprio trabalho no contexto de uma tradição do Novo Mundo, me permitiu comparar notas e abordagens em pé de igualdade, com Houngans, Paleros e Quimbandeiros.

[...] O que eu advogo é formar um relacionamento similar [como o dos Exus com os demônios do Grimorium Verum na Quimbanda] entre os espíritos de nossas tradições mágicas com suas contrapartes em outras culturas. Essa é a maneira mais substancial, significativa e disponível de revitalizar a magia ocidental. Isso é infinitamente preferível do que os procedimentos desprezíveis de A Goécia de Salomão, que é um simples reflexo das atitudes negativas dos espíritos a uma teologia desatualizada [daí demônios].[8] 

Para Antoine Faivre (1934-2021),[9] o Ocultismo do Séc. XIX é uma derivação direta da filosofia oculta de Cornélio Agrippa (1486-1535) e serve para designar um conjunto de pesquisas práticas relativas as ciências ocultas: magia ritual, astrologia, alquimia, cabalá etc. Em comparação ao esoterismo, que configura as formas de cognição das quais essas ciências dependem, o Ocultismo trata-se do conjunto de práticas a elas associadas, e legitimadas pelo próprio esoterismo ocidental. No meu livro Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia, eu demonstro que a Quimbanda se origina como o efeito colateral derivado da busca da Umbanda por legitimidade social, e que conduziu nesse processo um expurgo de todas as características fetichistas africanas que a Macumba carioca possuía, como o uso de oráculos, amuletos e os sacrifícios animais. Isso foi chamado de expurgo negro ou embranquecimento da macumba. Em seu livro O Espiritismo no Conceito das Religiões e a Lei de Umbanda, sobre a herança crioula da Quimbanda e seu nascimento, Fontenelle diz: 

A Quimbanda continua no firme propósito de manter as antigas tradições de seus descendentes africanos, ao passo que a Umbanda procura pelo contrário, afastar completamente este sentido incivilizado das suas práticas, devendo-se à influência do homem branco, cujo grau de instrução, já não as admite. [...] É por todos sabido que a Quimbanda teve seu princípio no Brasil com o advento da escravatura, pois, os antigos colonizadores portugueses, trazendo das suas possessões na África, os escravos negros; estes traziam dentro do coração a mágoa, o ódio e o rancor pelos homens de raça branca que os escravizaram. E, assim, procuram por todos os meios trabalhar com entidades diabólicas, contra os seus senhores.

Aconteceu entretanto que, esses escravos, imiscuindo-se com nossa gente, insto é: com os nossos índios ou caboclos, foram aos poucos ensinando-lhes essa crença, que ao fim de algum tempo foi de tal maneira expandindo-se, e tantos foram os seus adeptos, que nos dias atuais, já é bem grande o número de núcleos que professam essa religião.[10]

Com a abolição da escravatura, devido ao contato mais íntimo entre homens brancos e negros, essa crença tomou novos rumos e daí, surgindo certas divergências desta mesma comunhão, criou-se a Umbanda Brasileira, ou Umbanda Branca, nos mesmos moldes da Umbanda Preta ou Quimbanda. [...] Costuma-se chamar hoje em dia de MACUMBA os rituais praticados na Quimbanda, e esses termos infundem nas pessoas um grande receio ou medo, pelo fato de que a prática dessa crença, espalhou pelo Brasil inteiro, um mito de que todos os malefícios se conseguem por meio dos trabalhos nela pratricados.[11] 

Em seu livro A Umbanda Através dos Séculos, Aluízio Fontenelle fala da falsa umbanda, referência que faz a Macumba como praticada na época, mas que agora aparece rebatizada de Quimbanda. Ele diz: 

Certos rituais utilizados nessa falsa Umbanda de hoje, estão em completo contraste com nossa evolução moral, material e espiritual. O que se faz é misturar rituais bárbaros provindos do africanismo, com práticas católicas e concepções kardecistas, o que não conduz absolutamente com uma Umbanda cem por cento divina. [...] Deve-se em grande parte esta tremenda confusão, ao fato dos médiuns que deram início a essas práticas, nenhuma cultura possuíam, e nem tão pouco se inclinaram a elucidar certos fenômenos espirituais. Criando nos seus subconscientes, a mentalidade de que, as entidades, pretos-velhos, caboclos etc. tinham de se sujeitar a linguagem e práticas observadas nos terreiros de Quimbanda. [...] O fato de a Umbanda lidar com espíritos desta natureza, não quer dizer que se mantenham certas tradições africanas, e nem tão-pouco sejamos induzidos a seguir certos preceitos que bradam contra a opinião pública, em completo desacordo com as normas que se deveriam seguir, cultuando uma Umbanda melhor conceituada e perfeita.[12] 

Neste capítulo do livro Fontenelle disserta sobre o uso de amuletos, talismãs e imagens, dizendo serem uma herança de antigos cultos pagãos caldeus, egípcios, persas e judeus, já superados pela evolução espiritual-moral do ser humano, associando tudo o que se fazia nas Macumbas ao primitivismo e a barbárie.[13] Fontenelle fazia parte daquele grupo de autores umbandistas que buscavam legitimar a Umbanda como uma religião brasileira completamente alinhada a constituição e o código penal da época, que criminalizava o curandeirismo e as práticas mágico-religiosas afro-brasileiras. Na década de 1950, quando Fontenelle escrevia, houve um frenesi nacional contra os despachos deixados nas ruas e encruzilhadas, incentivando a perseguição policial contra os terreiros, sacerdotes e afiliados. A coleção História da Umbanda no Brasil de dez volumes pela Editora do Conhecimento, de autoria de Diamantino Fernandes Trindade, traz inúmeras reportagens jornalísticas deste período, demonstrando as invasões policiais nos terreiros, a prisão de sacerdotes e a apreensão dos objetos utilizados no culto. A Umbanda embranquecida nascia para fugir dessas perseguições e ser aceita pela sociedade brasileira como um culto distinto, superior, esclarecido e moralmente evoluído, diferente do que faziam na Macumba, i.e. a Quimbanda. E muitas casas de Macumba, com o tempo, começaram a utilizar o nome da Umbanda em suas fachadas apenas para fugirem das perseguições do Estado, e Fontenelle as critica: 

A evocação de entidades e certas práticas destinadas a este fim, não precisam absolutamente de fantasias nem tão-pouco de grandes malabarismos, que se apreciam em certas sessões espíritas. A não ser na Quimbanda, não havia a necessidade de tanto espalhafato, de tanta mistificação. Que o culto da magia negra [i.e. a Quimbanda] conceba certas práticas não condizentes com o nosso adiantado grau de civilização, ainda é concebível; no entanto, numa Umbanda cem por cento verdadeira, certas palhaçadas podiam ser perfeitamente abolidas, por se tratar somente de uma cópia fiel dos nossos confrades «macumbeiros».[14] 

E é muito interessante notar no contexto da Quimbanda no esoterismo ocidental, que todo o fetichismo e animismo africanos, o uso do oráculo, amuletos, talismãs, patuás, o sacrifício animal etc., elementos associados a antigos cultos pagãos as divindades, como postula Fontenelle, foram guardados e aperfeiçoados pela Quimbanda. O autor estabelece então, nas entrelinhas, uma conexão entre a Quimbanda e a herança mágico-cultural do Mundo Antigo. E o termo que ele escolhe usar, divindades, fala muito dos espíritos que vieram a ser associados aos Exus: deidades, espíritos dos mortos e da Natureza rebatizados de demônios, os anjos caídos. O precedente para a influência mágica dos cultos do Mundo Antigo na Quimbanda já estava estabelecido com a Linha do Oriente, dirigida pelos mestres da ciência oculta, e toda a legião de sábios, que se dedicaram ao estudo da cartomancia, astrologia, grafologia, ciências ocultas etc. [...] manobrando as legiões dos hindus, de Zartu, dos discípulos de José de Arimatéia, dos Incas, Chineses, Mongóis, Rabis, Egípcios, Mulçumanos [...].[15] Ao compararmos a Quimbanda com os cultos de mistérios e populares da Antiguidade, buscamos estabelecer pontes que esclarecem tudo o que fazemos hoje, como os primeiros autores de Quimbanda o fizeram.

Nesse processo de erradicação do fetichismo e animismo africanos para sua aceitação social, a Umbanda buscou se associar a todo tipo de correntes esotéricas vigentes na época; isso coincidiu, no entanto, com um período que ficou conhecido como o renascer da magia no Ocultismo moderno, que ocorreu entre 1875 e 1975, alinhando a Umbanda a espiritualidade cientificista, materialista e positivista típicas do período, a exemplo do Espiritismo de Allan Kardec (1804-1869), da Teosofia de H.P. Blavatsky (1831-1891) e do Iluminismo Científico de Aleister Crowley. Foi quando a Umbanda começou receber uma enxurrada de enxertos do Ocultismo francês, muito influente e disseminado pelas ordens esotéricas secretas daquele período no Brasil,[16] e não foi diferente com a Quimbanda, que começava a se projetar a partir das décadas de 1940 e 1950, recebendo profunda influência das percepções ocultistas de Eliphas Levi sobre muitos temas, um deles a alta e baixa magia. Nos três livros de Aluízio Fontenele esse termo, alta magia, associado ao exercício da Quimbanda, é citado mais de duzentas vezes. 

Ao penetrarmos em um terreiro de alta magia [...] depararemos na maioria das vezes, colocado a esquerda ou à direita de quem entra, com algo de estranho, que logo nos desperta a atenção. Trata-se do ponto de saudação ao Povo de Exu.[17]

Não é qualquer um, entretanto, que pode usar os poderes da alta magia. É preciso que conheça perfeitamente a entidade do mal com quem vai lidar, e ainda mais: necessário se torna que possua poderes sobrenaturais para evocação destas entidades, nas diversas modalidades de seu culto.[18] 

Na Parte II deste livro pudemos observar no contexto histórico que todo imaginário europeu que envolveu o fenômeno da bruxaria e que configurou o diabolismo de grimórios modernos como o Grimorium Verum, foi herdado pela Quimbanda. As inúmeras distinções entre alta e baixa magia nas obras de Fontenelle derivam diretamente deste imaginário medieval, já muito bem desenvolvido no trabalho de Eliphas Levi no fim do Séc. XIX, principal inspiração por trás do trabalho de Fontenelle.

A alta e baixa magia eram temas de intensos debates na Idade Média. Teólogos como Alexandre de Hales (1185-1245) distinguiam entre divinatio, o aspecto central da alta magia, e maleficium, o aspecto central da baixa magia. A baixa magia, assim se entendia no período, era prática e visava obtenção de efeitos imediatos, como espetar com alfinetes uma efígie de cera para causar dor. A alta magia, por outro lado, era considerada semelhante à especulação religiosa, científica e filosófica, e se estende por meio das ciências ocultas para entender e, finalmente, controlar o Cosmos.

A alta magia na Europa Ocidental tem suas fontes finais na ciência, particularmente numerológica e astrológica da Babilônia, nas especulações filosóficas de Pitágoras e dos gregos, e nas tradições religiosas da Pérsia, de onde vieram os Magos (magoi: sábios e videntes). Entrou na tradição judaico-cristã e foi um elemento impo rtante do hermetismo neo-alexandrino renascentista. O Corpus Hermeticum, uma coleção de escritos mágicos supostamente de imensa antiguidade, mas que na verdade foram escritos nos Sécs. II e III d.C., foi composto no contexto do gnosticismo cristão da época. Mas ele tornou-se, no entanto, a base da kabbalah mágica dos judeus medievais e, por sua vez, da magia cristã medieval e moderna. A alta magia sofreu um duro golpe quando, no Séc. XVII, Isaac Casaubon (1559-1614) descobriu a relativa modernidade dos escritos herméticos, mas foi artificialmente revivida nos Sécs. XIX e XX na panóplia interminável do Ocultismo moderno. No seu melhor, a alta magia buscou a união com o divino: Jâmblico (245-325 d.C.) escreveu que a comunhão com os deuses era obtida através da alta magia, e no Renascimento Pico della Mirandola (1469-1494) afirmou que nenhuma ciência dá maior prova da divindade de Cristo do que a alta magia e a cabala. Em sua versão imoral, mas com aspirações igualmente elevadas, a alta magia procurou dominar o Cosmos para fins egoístas: esta é a tradição fáustica que inspirou o Grimorium Verum e chegou até a Quimbanda.

Todas as variedades de alta magia compartilharam a visão de que o Mundo é controlado pelo Destino. Nada é acidental; tudo no macrocosmo foi projetado para o homem, o microcosmo. Uma função característica da alta magia era, portanto, a divinação através do exame de entranhas, sonhos, livros, espelhos, ossos, números, água, vinho, cera e outras substâncias. De outro modo, a investigação do universo natural, em um esforço para entender seu funcionamento sobre o homem, promoveu o estudo de favas e plantas, rochas, animais, céus (astrologia) e metais (alquimia). Na alquimia, onde magia, ciência e religião estavam talvez mais intimamente conectadas, a suposição era que o homem pode mudar sua natureza espiritual mudando a composição química das coisas. À medida que o alquimista fazia com que os metais básicos fossem refinados em ouro em um processo de sete etapas, sua alma avançava concomitantemente para a purificação. A terceira função da alta magia era tentar convocar e concentrar a força dos poderes cósmicos, contendo-os em pantáculos ou outro recipiente magicamente definido, ou restringindo-os usando os nomes divinos de Deus em encantamentos. Incantatio, originalmente um canto, veio a significar um feitiço e rendeu a palavra encantamento. A magia das palavras sempre foi um elemento poderoso na alta e baixa magia no medievo e modernidade; a crença de que o poder sobre o nome de uma coisa é poder sobre a própria coisa é universal e, na magia, como o ocultista Eliphas Levi observou corretamente, ter dito é ter feito.

Em seu livro O Espiritismo no Conceito das Religiões e a Lei de Umbanda, Fontenelle compara a Umbanda a prática do bem e a Quimbanda a prática do mal. No Brasil, por causa da grande assimilação da cultura afro-brasileira as ideias do Ocultismo e diabolismo francês,[19] a Umbanda ganha tons de teurgia e a Quimbanda ganha tons de goécia salomônica, i.e. diabolizada. A discussão acerca da distinção ente a teurgia e a goécia foi tratada com profundidade no primeiro volume do Daemonium e não precisamos retomá-la aqui. Na Idade Média a baixa magia estava muitas vezes associada direta ou indiretamente ao fenômeno da bruxaria. A concentração do poder e o controle das forças cósmicas muitas vezes implicavam na convocação de criaturas espirituais dos éteres sublunares definidas como demônios por aqueles que os convocavam, ou pelo menos por cristãos condenando a prática. A cabalá, por exemplo, contém uma demonologia detalhada, e os estudos cabalísticos foram considerados heréticos tanto por judeus ortodoxos quanto por cristãos. A bruxaria se insere neste contexto e ocorreu como um fenômeno, possuindo uma herança mágica que envolvia encantamentos, sacrifícios, recitação de orações ao contrário, a cópula sexual com íncubos e súcubos, e uma conexão direta com a baixa magia.

Na Idade Média, a magia maligna era subsumida sob o termo maleficium, que poderia também significar qualquer tipo de crime ou maldade cometida contra alguém, e os aderentes deste tipo de magia eram geralmente tratados como qualquer criminoso. Quer eu quebre sua perna lhe empurrando escada abaixo ou quebrando uma efígie de tabatinga lhe representando, meu crime é semelhante e minha responsabilidade é, portanto, comparável. Na Europa, essas práticas derivaram de apelos aos deuses antigos ou a espíritos locais, como elfos e fadas, que o cristianismo medieval gradualmente passou a classificar como demônios da mesma forma que considerava os grandes deuses pagãos.

Todo esse imaginário medieval converge diretamente para os contrastes e às vazes confusões que Fontenelle estabelece entre baixa e alta magia na Quimbanda. No livro que inaugura a Quimbanda como a nova síntese brasileira da magia,[20] Exu de 1952, Aluízio Fontenelle diz: 

Orientado em grande parte pelos meus guias espirituais, pelos próprios Exus, e ainda, aliado ao meu profundo conhecimento sobre a magia, como sacerdote que sou dos diversos cultos de Umbanda, além de conhecedor real de todas as práticas que se exercem nos diversos «terreiros», onde se praticam os «batuques», «candomblés», «cangeres», posso perfeitamente como catedrático no assunto, mostrar-lhes o eu verdadeiro de um Exu.[21] 

O eu verdadeiro de um Exu é referência a natureza diabólica e demoníaca de Exu que se cristalizou a partir da incursão diabólica que tratamos na Parte II deste livro, quando toda corrente noturna e ctônico-demoníaca ibérica (fáustico-cipriânica) e diabólica do Grimorium Verum franco-italiano invadiram a Quimbanda em seus dois momentos.[22] É aqui, nesse local de convergência entre a goécia tradicional brasileira e a goécia diabólica do Grimorium Verum, que a Quimbanda se encontra e se une com o Ocultismo do fim do Séc. XIX. Como vimos, todo o imaginário europeu da bruxaria, do sabbath, do bode de mendes, do culto ao Diabo etc. e que alimentam os grimórios diabólicos modernos, dos quais figura proeminente o Grimorium Verum, foi assimilado e desenvolvido pelo diabolismo que configurou as vertentes tradicionais de Quimbanda, em destaque a Quimbanda Nàgô e a Quimbanda Malê. Mas como a Quimbanda se insere no contexto do esoterismo ocidental?

O substantivo esoterismo apareceu pela primeira vez em 1792 sob a pena de Johann Philipp Gabler (1753-1823) que o escreveu em alemão: Esoterik [Esotérica/Esoterismo]. O termo surge no contexto do debate sobre os ensinamentos secretos de Pitágoras como pano de fundo da Maçonaria. E apresentando afinidades com o Romantismo, depois o termo apareceu na França em 1828 em Histoire critique du Gnosticisme et de son influence por Jacques Matter (1791-1864).[23] Posteriormente apareceu em inglês e outros idiomas de forma expansível e permeável como o conhecemos hoje.

Costuma-se questionar a etimologia do termo esoterismo na intenção de desvendar seu verdadeiro significado: eso refere-se à ideia de interioridade e ter evoca uma oposição, quer dizer, alguma coisa interna ou secreta em oposição a outra coisa externa. Muitos autores, no entanto, costumam interpretar o termo como querem a partir de sua etimologia e, na maioria das vezes, com interesses pessoais ou pressupostos ideológicos. Abaixo seguem seis interpretações acerca da palavra esoterismo retiradas da obra de Antoine Faivre,[24] o maior acadêmico especialista acerca do esoterismo ocidental. Em seguida adiciono comentários visando demonstrar de que forma a Quimbanda se associa ao esoterismo ocidental em cada um dos enunciados. 

1. Um agrupamento disparatado de ideias: Nessa interpretação, que é a mais comum, o esoterismo aparece, por exemplo, como título de seções em livrarias e em grande parte do discurso midiático para se referir a quase tudo que exala um aroma de mistério. Tradições de sabedoria oriental, yoga, o misterioso Egito, ufologia, astrologia e todas as formas de artes divinatórias, parapsicologia, várias Cabalás, alquimia, magia prática, Maçonaria, Tarot, Nova Era, Novos Movimentos Religiosos e canalizações são assim dispostos lado a lado (em inglês, a etiqueta usada nas livrarias frequentemente é Ocultismo ou Metafísica). Essa névoa muitas vezes inclui todo tipo de imagens, temas e motivos, como a androginia ontológica, a Pedra Filosofal, a Palavra perdida, a Alma do Mundo, a geografia sagrada, o livro mágico, e assim por diante. 

Nesta interpretação, a Quimbanda se enquadra como novos movimentos religiosos na contemporaneidade, envolvendo artes ocultas, artes divinatórias, magia prática, culto de mistérios, tabus religiosos, incorporação e possessão, sacrifício animal etc. O exemplo da livraria de Faivre é perfeito: no Brasil você encontrará a seção esoterismo ou esotéricos nas livrarias com títulos de tarot ao lado de pedras preciosas e magnetismo pessoal, títulos de Umbanda ao lado de magia do caos e Maçonaria. Uma miscelânea de assuntos amalgamados sob a alcunha de esotéricos. Na seção de esoterismo nas livrarias você encontrará livros populares sobre Quimbanda como o Culto à Quimbanda[25] de Evandro Mendonça ou o Desvendando Exu[26] de Diego de Oxóssi. 

2. Ensinamentos secretos transmitidos deliberadamente em segredo: Essa interpretação fala da disciplina do arcano, da estrita distinção entre os iniciados e os profanos. Assim, esotérico frequentemente é empregado como sinônimo de iniciático, incluindo por certos historiadores aquelas doutrinas que teriam sido mantidas em segredo, por exemplo, entre os primeiros cristãos. Para o público em geral, também se refere à ideia de que segredos teriam sido guardados com zelo ao longo de séculos pelo magistério da igreja, como a vida secreta de Cristo, sua relação próxima com Maria Madalena – ou que mensagens importantes teriam sido sorrateiramente inseridas em uma obra por seu autor. Romances como o paródico Il Pendolo di Foucault (1988) de Umberto Eco e o enigmático O Código Da Vinci (2003) de Dan Brown exploram habilmente o gosto de um amplo público pelo que pertence às chamadas «teorias da conspiração». 

O termo iniciático refere-se a segredos, conhecimentos ocultos e fundamentos mágicos, transmitidos secretamente de um mestre a seu discípulo ou discípulos, no contexto de um agrupamento organizado de indivíduos ou de relações pessoais isoladas, que Faivre se refere como disciplina do arcano, e que funcionam por meio de transmissão via iniciação. No Mundo Antigo tanto os cultos de mistérios quanto as religiões populares mantinham em segredo os seus arcanos. Fustel de Coulanges (1830-1889) em sua obra A Cidade Antiga[27] demonstra que na Grécia antiga, estrangeiros não podiam entrar nos templos, sob o prejuízo dos segredos da religião serem roubados. Acreditava-se que caso estrangeiros roubassem os segredos e fundamentos do culto a serviço de outras cidades, estas poderiam obter controle sobre os deuses adorados pela cidade saqueada, prejudicando-a. E Mircea Eliade (1907-1986) demonstra que o núcleo religioso de uma cidade, que representava o onfalo sagrado de conexão entre o céu, a terra e o inferno, era o local almejado para conquista-la definitivamente, onde poderia se apoderar dos seus segredos religiosos e, assim, refundar a cidade sob uma nova cosmovisão.[28]

Essa ideia do segredo iniciático transmitido de mestre a discípulo no contexto da iniciação reverbera por toda as antigas correntes mágicas que alimentaram o esoterismo ocidental. No hermetismo tradicional, que influenciou profundamente as correntes modernas do esoterismo ocidental a partir do Renascimento, os verdadeiros segredos são transmitidos diretamente de Poimandres no silêncio e por meio da iniciação.[29] No Ocidente toda genuína tradição de magia se desenvolveu no contexto do segredo iniciático, a exemplo das transmissões mestre-discípulo dos grimórios ou das iniciações nas sociedades secretas do renascer da magia do fim do Séc. XIX. Tanto os segredos dos grimórios como àqueles das sociedades secretas deveriam ser mantidos e transmitidos secretamente.

Nessa interpretação a Quimbanda se enquadra como genuíno culto iniciático de mistérios. O Segredo da Quimbanda é o Segredo, diz o ditado. A Quimbanda exige iniciação para participação e coloca ênfase substancial na diferença entre os genuínos iniciados e os profanos, i.e. não iniciados ou os banda de casa. Os fundamentos, quer dizer, os segredos de funcionamento e estrutura do culto, são zelosamente guardados e transmitidos secretamente na relação que se estabelece entre mestre e discípulo. 

3. O mistério inerente a todas as coisas: A natureza estaria repleta de «assinaturas» ocultas; existiriam relações invisíveis entre estrelas, metais e plantas; a história humana também seria «secreta», não porque as pessoas teriam desejado esconder certos eventos, mas porque ela conteria significados aos quais o historiador «profano» não teria acesso. A filosofia oculta, um termo amplamente utilizado no Renascimento, é, em suas diversas formas, uma tentativa de decifrar tais mistérios. Da mesma forma, alguns chamam o «Deus oculto» de «Deus esotérico» (no sentido daquele que não é completamente revelado). 

O termo filosofia oculta aparece com Cornélio Agrippa em 1510 com a publicação do seu Três Livros de Filosofia Oculta.[30] Para Agrippa o termo era sinônimo de magia e compreendia a totalidade desta ciência principalmente sob três áreas de estudo: astrologia, alquimia e magia natural. Logo ao termo filosofia oculta associou-se o termo ciências ocultas, representando o conjunto de matérias estudadas dentro do escopo da filosofia oculta, com demonstrarei ainda nessa seção do livro: é fácil compreender por que a astrologia, a alquimia e a magia natural foram agrupadas sob o termo comum ciências ocultas. Cada área envolveu-se na investigação sistemática da natureza e dos processos naturais, baseada na crença em qualidades, virtudes ou forças ocultas inerentes aos elementos do mundo natural.

A filosofia oculta, consistindo das matérias ou áreas de estudo compreendidas como ciências ocultas, explora a manipulação dos poderes ocultos latentes em todas as coisas, as virtudes mágicas das pedras, plantas, animais, tempo e locais de poder. Em diferentes fases do desenvolvimento do esoterismo ocidental essas virtudes mágicas receberam inúmeros nomes, como o vril de Edward George Bulwer-Lytton (1803-1873)[31] e da Sociedade Thule, incluindo termos importados do hinduísmo como prāṇa, ou do taoísmo como chi. Por outro lado, as virtudes mágicas ocultas e inerente a todas as coisas sempre foi de conhecimento de culturas arcaicas da magia. Entre os polinésios, é a mana; na cultura yorùbá essa força mágica é chamada de àṣẹ; e na cultura banto, é o moyo.

No contexto da nova síntese da magia que tratei na Parte I, a Quimbanda recebe seu conhecimento acerca da manipulação das forças ocultas da natureza por meio de duas fontes: i. das culturas banto e yorùbá e; ii. Da feitiçaria dos grimórios europeus cipriânico-ibéricos e franco-italianos, alinhando-se a essa terceira interpretação do esoterismo ocidental no contexto da filosofia oculta. 

4: Gnose como forma de conhecimento: [Nessa interpretação do esoterismo ocidental a ênfase está] no «experiencial», no mítico e no simbólico, ao invés de formas de expressão de uma ordem dogmática e discursiva. As maneiras de adquirir essa «forma de conhecimento» variam de acordo com as escolas; é o objeto de ensinamentos iniciáticos divulgados em grupos que afirmam possuí-lo, mas às vezes também é considerado acessível sem eles. Entendido dessa maneira, o esoterismo frequentemente está associado à noção de «marginalidade religiosa» para aqueles que pretendem fazer uma distinção entre as várias formas de gnose e as tradições estabelecidas ou as religiões constituídas. 

Essa é uma das questões mais importantes e esclarecedoras da Quimbanda no contexto do esoterismo ocidental: i. o conhecimento (gnōsis)[32] religioso ou espiritual adquirido por meio da epifania, teofania e hierofania; ii. em detrimento disso, um caminho religioso marginal, contracultura[33] a ortodoxia religiosa brasileira. A Quimbanda cultiva a gnōsis como forma legítima de obtenção de conhecimento religioso e cujos métodos antinomianos a relegam a marginalidade sociocultural. Então cabe esclarecer o que é a gnōsis no contexto da Quimbanda e como ela torna o culto marginal.

O termo gnōsis na Quimbanda não pode ser confundido com a mensagem gnóstica dos cristãos do Séc. II d.C., porque as vertentes tradicionais de Quimbanda não foram afetadas pelas ideias ou dogmas dos cristãos, ortodoxos ou gnósticos. Quando associado ao cristianismo gnóstico da Antiguidade, o termo gnōsis é conectado imediatamente a ideia de salvação. A Quimbanda como culto ctônico-necromântico não adere em sua cosmovisão qualquer ideia de salvação soteriológica proveniente de Religiões Reveladas ou Urânicas. Soteriologia e escatologia na Quimbanda envolvem imersão e transformação da alma no Submundo. O que é para os aderentes das Religiões Reveladas um cativeiro infernal da alma, para as Religiões Naturais ctônicas é o ápice da realização espiritual/ancestral, como dissertei na Parte I. E tal como o hermetismo tradicional e o exercício da teurgia de Jâmblico (245-325), a Quimbanda compreende a gnōsis como a apreensão de conhecimento não experimentado, quer dizer, não deduzido ou adquirido pela cognição a partir da experiência vivida. A gnōsis não se trata de um conhecimento dedutível pela razão ou adquirido através de alguma experiência cognitiva. Jâmblico em De Mysteriis (I:3)[34] diz que a gnōsis não tem nada a ver com qualquer conjectura humana, raciocínio ou opinião, pelo simples fato de que quaisquer conhecimentos adquiridos por meio dos mecanismos da cognição estão sujeitos a temporalidade. O Conhecimento, i.e. a gnōsis não é algo que você aprende ou adquire, porque se trata de um conhecimento superior que não passa pelos filtros da cognição e é percebido diretamente pela alma, revelado a partir de uma fonte sobrenatural: Deus, deuses, anjos e espíritos diversos, por exemplo.

Como demonstro em um texto ainda em construção, existe uma tendência inestética contemporânea em associar a gnōsis as mirações, termo utilizado para descrever experiências visionárias enquanto em estado alterado de consciência por meio de quimiognose.[35] No texto eu menciono que: 

De modo geral, é comum no esoterismo moderno observarmos a associação do termo gnose ao que se convencionou chamar de estados alterados de consciência e que, na grande maioria das vezes, são induzidos por drogas ou substâncias enteógenas. Papus e Stanislas de Guaita estiveram entre os primeiros magistas modernos a vincular o uso de substâncias psicoativas as práticas da magia cerimonial. Muito embora a utilização de psicoativos em rituais diversos tenha uma herança muito antiga na história da religiosidade humana, é no contexto da magia moderna, a partir de autores como Peter J. Carroll e Michael W. Ford, que gnose se tornou sinônimo de consciência alterada por meio de drogas ou enteógenos.

De modo geral no esoterismo moderno, eu disse, porque é possível ver essa associação inestética em muitos lugares: Santo Daime, Barquinha, União do Vegetal, centros ayuhuasqueiros de xamanismo urbano, magia do caos etc. É comum encontrarmos daimistas e ayahuasqueiros diversos do xamanismo urbano chamando a miração, que i. além de ser considerada o efeito colateral do uso do chá; ii. não passa de uma ebulição de símbolos projetados na superfície da mente, de gnose. A miração é a jornada visionária, como se costuma escutar, derivada do termo miragem e, portanto, trata-se de ilusões vívidas no frenesi do êxtase. O sujeito na miração vê o Mestre Irineu entregando o seu cajado para Òṣàlá enquanto Śiva, o proto-yogīna, observa e supervisiona. Dali o sujeito sai dizendo que compreendeu, por meio de uma gnose, como a autoridade espiritual do Santo Daime foi dada por Mestre Irineu a Òṣàlá que, a partir dali, é o chefe do Umbandaime, e que Śiva permite o uso da ayuahuasca no yoga e na meditação. Entende o nível de loucura?

 

Então diferente da ideia nova era de que a gnōsis se trata de estado alterado de consciência, é mais apropriado dizer que gnōsis é estado alterado de conhecimento. Isso ajusta qualquer ponta solta e coloca a gnōsis no lugar correto: uma ferramenta de apreensão de conhecimento. Este conhecimento, por outro lado, tem uma peculiaridade: ele transforma radicalmente quem o apreende. Segundo Antoine Faivre, a gnōsis tem suas características fundamentais: i. abole qualquer distinção entre fé e conhecimento, porque àquele que obtém o conhecimento não precisa de fé; ii. possui função soteriológica[36] que, em outras palavras, tem um profundo impacto na deificação da alma, seja ela catabática ou urânica. A gnōsis na Quimbanda, como vimos na Parte I, é catabática. 

5: A busca pela tradição primordial: A existência de uma «Tradição primordial» é postulada, da qual as várias tradições e religiões espalhadas pelo mundo seriam apenas fragmentos mais ou menos «autênticos». Aqui, o esoterismo é o ensinamento dos caminhos que permitiriam alcançar o conhecimento dessa Tradição ou contribuir para restaurá-la. Atualmente, esse ensinamento é principalmente o da «Escola Tradicionalista», também conhecida como «perenialismo», cujos representantes de língua inglesa usam prontamente a palavra esoterismo para se distinguir da maioria dos outros significados de esoterismo. 

Aos olhos do perenialismo ou tradicionalismo, a Quimbanda é rotulada como culto contra-iniciático. De acordo com esse olhar perenealista, que é o olhar da Religião Revelada de modo geral, e sobre o qual nos debruçaremos melhor ainda nessa seção, a prática mágica da Quimbanda, por sua natureza ctônica, afasta o indivíduo da verdadeira iniciação. Quer dizer, prejudica a deificação urânica de sua alma. Como tivemos a oportunidade de ver na Parte I deste livro, as fórmulas mágicas dos cultos urânicos são distintas daquelas dos cultos ctonianos, muito embora ambos se beneficiem das ferramentas universais da feitiçaria.

Como profundo admirador do perenealismo e em especial do trabalho de Julius Evola (1898-1974), tenho minha contribuição pessoal sobre o tema. A sabedoria perene ou tradição primordial é uma via de realização através da integração da alma com o Cosmos e seus processos, onde a mimetização ritual é uma ferramenta – os ritos, as práticas, os sacrifícios etc. – de acesso e integração com a estrutura do Cosmos. O problema é que as análises dos perenialistas contemporâneos, que limitam a iniciação ao que chamam de religião tradicional, é uma grande tolice. A iniciação é o resultado do processo de integração com o Cosmos. Na Quimbanda este Cosmos é representado pelo ambiente mágico onde se realiza a magia, o Chefe Império Maioral, o Diabo, naquilo que ficou conhecido como os Reinos da Quimbanda. É a tarefa do kimbanda buscar a deificação catabática de sua alma para sua derradeira união com Maioral tornando-se um Exu na sua armada. Contra-iniciático é, portanto, tudo aquilo que falha em estabelecer essa integração da alma com o Cosmos. Tanto nos cultos urânicos quanto nos cultos ctonianos existe a busca pela integração com o Cosmos no processo soteriológico de deificação ou salvação da alma, mas em camadas distintas, como aponta a Bhagavadgītā (liv. 9, vers. 25), por falar em tradição primordial: 

Aqueles que adoram os semideuses nascerão entre os semideuses; aqueles que adoram os ancestrais irão ter com os ancestrais; aqueles que adoram os fantasmas e espíritos nascerão entre tais seres; e aqueles que Me adoram viverão comigo. 

A Quimbanda ou qualquer culto ctônico da antiga Religião Natural não é contra-iniciático. Se o culto, qualquer culto, é capaz de produzir o resultado da integração, então ele é iniciático. Isso é possível aprender com mais profundidade no contexto do hinduísmo, onde as próprias escolas não-védicas são tratadas no máximo como erro metodológico, mas não se despreza seus resultados.

 

6: Um grupo específico de correntes históricas: Aqui a noção de esoterismo permeia àquilo que muitos historiadores começaram a chamar na década de 1990 de história das correntes esotéricas ocidentais, correntes essas que compartilham de muitas semelhanças e possuem interconexões históricas. O termo ocidental é uma referência ao Oeste construído sobre a cultura religiosa do cristianismo, mas visitado por tradições religiosas judaicas, mulçumanas e do Extremo Oriente. com as quais coexistiu, mas que não são idênticas a ela; nessa compreensão, a kabbalah judaica não pertence a esse esoterismo ocidental, enquanto que a cabalá cristã sim. 

Entre as correntes esotéricas que ilustram o esoterismo ocidental no contexto da sexta interpretação, aparecem especialmente para o final da Antiguidade e início da Idade Média as seguintes: hermetismo alexandrino ou tradicional (os escritos gregos atribuídos ao lendário Hermes Trismegisto, Sécs. II e III d.C.); o gnosticismo cristão, as várias formas de neo-pitagorismo, astrologia especulativa e alquimia. E no período moderno, cito especialmente no Renascimento o hermetismo neo-alexandrino, a cabalá cristã (conjunto de interpretações da kabbalah judaica com a intenção de harmonizá-la com o cristianismo), a filosofia oculta de Agrippa, a corrente paracelsiana, do nome do filósofo Paracelso (+ 1541) e algumas de suas derivações. Após o Renascimento, o rosacrucianismo e suas variantes, assim como a teosofia cristã; no Iluminismo do Séc. XVIII, uma parte da naturphilosophie romântica, a chamada corrente ocultista no fim do Séc. XIX. De acordo com alguns representantes dessas especialidades ou matérias, o esoterismo ocidental se estende por esse vasto campo, desde o final da Antiguidade até o presente. De acordo com outros representantes dessas mesmas especialidades, é preferível entendê-lo em um sentido mais restrito, limitando-o ao chamado período moderno, do Renascimento até a contemporaneidade.

Nesta terceira seção, tratarei do tema esoterismo ocidental dentro desta abordagem mais restrita, de modo a dar ênfase ao Ocultismo moderno. Embora eu trate também das fontes antigas e medievais das correntes esotéricas ocidentais modernas, ou seja, aquelas dos primeiros quinze séculos da nossa era, de modo que possamos quando possível estabelecer pontes de conexão entre a magia e religiosidade do Mundo Antigo, Antiguidade e Idade Média com a prática mágica e religiosa da goécia tradicional brasileira, a Quimbanda, o meu foco será no Ocultismo moderno. A razão para essa escolha é que, a partir do final do Séc. XV, surgiram novas correntes esotéricas de maneira muito inovadora, no sentido de se encontrarem intrinsecamente ligadas à modernidade nascente, a ponto de constituírem um produto específico que ficou conhecido como Ocultismo. Na verdade, elas reapropriaram, sob uma luz cristã, mas de maneiras originais, elementos que pertenceram à Antiguidade tardia e à Idade Média, como o estoicismo, o gnosticismo, o hermetismo, o neo-pitagorismo etc. De fato, somente no início do Renascimento é que as pessoas começaram a querer reunir uma variedade de materiais antigos e medievais do tipo que nos interessa aqui, ocultistas, acreditando que poderiam constituir um grupo homogêneo para o futuro. Marsilio Ficino, Pico della Mirandola e outros do período são considerados, dessa maneira, como autores complementares entre si e costuma-se buscar denominadores comuns entre eles, chegando ao ponto de postular a existência de uma filosofia perene. Real ou mítica, os representantes desta filosofia perene eram considerados os elos de uma cadeia ilustrada por figuras como Moisés, Zoroastro, Hermes Trismegisto, Platão, Orfeu, as Sibilas e, às vezes, por outros personagens como Salomão e Fausto. Assim, por exemplo, após a expulsão dos judeus da Espanha em 1492, a kabbalah judaica penetrou no meio cristão para ser miscigenada e interpretada à luz de tradições como o hermetismo alexandrino, a alquimia, o pitagorismo, etc., que não eram judias.

Razões de ordem teológica explicam, em grande parte, essa necessidade de recorrer às tradições antigas. Por muito tempo, de fato, o cristianismo preservou dentro de si certas formas de conhecimento que entraram no campo da teologia (ou das teologias) e relacionaram-se à conexão entre princípios metafísicos e cosmológicos (as segundas causas aristotélicas). Mas depois que a teologia, pouco a pouco, descartou a cosmologia, ou seja, parte de si mesma, então esse vasto campo se viu apropriado, reinterpretado de fora do campo teológico por iniciativas para-teológicas de conexão entre o universal ao particular – ocupando a interface entre a metafísica e a cosmologia. Muitos pensadores do Renascimento tentaram justificar essas iniciativas recorrendo a certas tradições do passado. Essas duas áreas de discurso, i. a busca por uma filosofia perene e; ii. a autonomização de uma iniciativa para-teológica no campo da cosmologia, constituem um aspecto essencial da modernidade nascente e das correntes esotéricas que nascem neste período.

Posto isso, a Quimbanda na condição de nova síntese da magia como vimos na Parte I, é uma inovação do mesmo calibre no Brasil, que ocorreu dentro do período do renascer da magia e Ocultismo do fim do Séc. XIX. Nas minhas duas últimas obras, o segundo volume do Daemonium e o Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia, procurei demonstrar como o corpo do Ocultismo francês do fin-de-siècle influenciou a estrutura mágica e iniciática da Quimbanda. No capítulo Dogmas e Rituais da Kaballah em seu livro Exu, Fontenele diz que tanto nos pontos cantados quanto nos pontos riscados, a Magia está presente, e por isso, os praticantes da Kaballah nos rituais de alta magia, têm por base como Dogma Mágico o triângulo de Salomão, representando o «ternário», símbolo necessariamente observado em todas as evocações. Nos casos de Magia Negra, as evocações são feitas por instituições e pedidos aos gênios do mal, e aí, os pontos riscados são na maioria das vezes representados pelos símbolos característicos das entidades do mal, sendo o principal, o conhecido nas Leis Cabalísticas com o nome de «Tridente de Paracelso», que é um pentáculo que resume o princípio do ternário na unidade completando o que na Alta Magia se conhece como o «Quaternário Sagrado».[37]

Por magia negra, Fontenelle faz referência a Quimbanda; ele utiliza os termos kaballah, dogma mágico, triângulo de Salomão e tridente de Paracelso, todos derivados da obra e interpretação de Eliphas Levi. Na corrente paracelsiana, o Tridente de Paracelso é uma chave de acesso para toda e qualquer operação de magia, de modo que a intenção mágica (i.e. a vontade) se torna carregada pelo poder da emoção dirigida sobre um fetiche, símbolo, feitiço etc., como queira chamar. Eliphas Levi reinterpretou o Tridente de Paracelso nos seus próprios termos, dando a ele um significado além. Pelo seu poder unificador da vontade e da emoção projetadas sobre um objeto passivo e, ao mesmo tempo, uma representação do ternário ou trindade no Ocultismo da época,[38] Levi deduz que esse é o mistério do ternário (a unidade do espírito) unido ao quaternário (a matéria representada pela interação dos quatro elementos materiais), completando a fórmula mágica da taumaturgia pelo poder do verbo dirigido pela vontade: abracadabra, que pode genericamente ser traduzida como eu crio quando falo, i.e. o verbo feito carne. Essa tornou-se uma fórmula mágica basilar das correntes ocultistas modernas, e chegou até a Quimbanda. O Tridente de Paracelso acabou por tornar-se o símbolo-emblema da atuação de Exu na Quimbanda, representando também a unidade da Trindade Maioral, a iconografia padrão para Exu-Rei, como demonstrei no Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia.

O triângulo de Salomão foi citado também por Fontenelle em outra obra, A Umbanda Através dos Séculos, relacionado ao Brasão Imperial de Maioral, do qual faz parte em iconografia permanente. Na tradição salomônica o triângulo é designado a contenção do espírito; trata-se do spiritus loci, uma área protegida magicamente e destinada a manifestação de um espírito sublunar convocado. Ele é conhecido também como triângulo de manifestação, por servir a manifestação de qualquer espírito nele convocado. Fontenelle cita no excerto acima que este é um símbolo necessário a toda e qualquer convocação de espíritos, porque representa o poder da própria Trindade (ternário). Na cosmovisão cristã de Fontenelle, que é a cosmovisão ortodoxa da Igreja Católica, a Trindade representa o todo, abarcado a totalidade de tudo, na Umbanda ou na Quimbanda, com suas respectivas hierarquias celeste e infernal. Essa é uma herança tangível da magia dos grimórios na Quimbanda, e tivemos a oportunidade de avalia-la nos meus dois últimos volumes. Na representação mais antiga do triângulo de manifestação, que data de 1572, um círculo contendo o Alfa e o Ômega, palavras-símbolo que designa a totalidade de todas as coisas no Cosmos, a eternidade de Deus, o início e o fim de tudo, circula o triângulo, inscrito com três fórmulas mágicas: Emanuel Sabaoth Adonay (hebraica); Panthon Vsyon (grega); Messias Sother (cristã),[39] o que é uma clara herança salomônica do poder que controla as forças convocadas no triângulo, como vemos na obra de 1584 de Reginald Scot, A Descoberta da Bruxaria, onde se lê: [...] fazendo também um triângulo maior em um lado do círculo externo, com os nomes da Trindade dos sete cantos, isto é, Yehowah, Ruah Kedesh, Emmanuel. Fontenelle acopla, portanto, o símbolo do triângulo de manifestação salomônico a unidade de todo o poder transcendente e divino sobre a convocação de espíritos. Na Quimbanda essa unidade de poder transcendente e divino é o Chefe Império Maioral, a iconografia do Diabo que representa a força ternária dos três arquidemônios do Inferno: Lúcifer, Beelzebuth e Ashtaroth sobre todos os Gangas da Quimbanda.

Para quem tem olhos para ver, e somente para estes, inúmeros símbolos herméticos, alquímicos, astrológicos e mágicos, bem como seus significados e suas ressignificações modernas, podem ser encontrados na Quimbanda a partir de toda essa herança do Ocultismo moderno. Os métodos da Quimbanda têm convergência com inúmeras correntes do esoterismo moderno como o hermetismo alexandrino e neo-alexandrino, assim como cultos religiosos e de mistérios de um passado muito distante. 



[1] Wouter J. Hanegraaff. Dictionary of Gnosis & Western Esotericism. Brill, 2006. De modo geral Eliphas Levi é creditado como o inventor do termo Ocultismo, por se tratar do primeiro autor a difundi-lo amplamente.

[2] Veja Fernando Liguori. Ganga: A Quimbanda no Renascer da Magia. Clube de Autores, 2023.

[3] Para compreender o contexto veja Jake Stratton-Kent. Encyclopaedia Goetica. 5 Vols. Scarlet Imprint, 2010-2023. Veja também Aaron Leitch. Secrets of the Magickal Grimoires. Llewellyn Publications, 2013. Finalmente veja Frater Acher. Clavis Goêtica: Keys to Chthonic Sorcery. Hadean Press, 2021.

[4] Jake Stratton-Kent. Prefácio em Frater Acher. Clavis Goêtica: Keys to Chthonic Sorcery. Hadean Press, 2021, pp. 7.

[5] N.T. i.e. grimoire revival: o renascer da magia dos grimórios. Não confundir com o renascer da magia que teve início com A.E. Waite em 1875.

[6] Ibidem.

[7] N.T. i.e. os cultos afro-diaspóricos nas Américas.

[8] Jake Stratton-Kent. Geosofia. Vol. 1. Scarlet Imprint, 2023. Citado na Parte I.

[9] Antoine Faivre. O Esoterismo. Papirus, 2013, pp. 30.

[10] N.T. Sobre a ideia de Quimbanda como Religião, veja Parte I.

[11] Aluízio Fontenelle. O Espiritismo no Conceito das Religiões e a Lei de Umbanda. Editora Espiritualista, 1971, pp. 77-8. Essa passagem de Fontenelle é importante porque se trata da primeira citação da gênese da Quimbanda e, até hoje, insuperada.

[12] Aluízio Fontenelle. A Umbanda Através dos Séculos. Editora Espiritualista, 1971, pp. 119-20.

[13] Ibidem, pp. 120.

[14] Ibidem, pp. 152.

[15] Ibidem, pp. 142.

[16] A França, na ocasião, era o centro cultural do mundo e exportava seu Ocultismo de fin de siècle para vários países, inclusive o Brasil.

[17] Aluízio Fontenelle. Exu. Parzifal Publicações, 2019, pp. 96.

[18] Ibidem, pp. 281. É interessante notar que Fontenelle cita a necessidade de se possuir uma paranormalidade desperta para conexão efetiva com os Gangas, citados por ele como entidades do mal. Existe uma questão que se levanta acerca da necessidade da mediunidade de incorporação na Quimbanda, sem a qual não há nenhuma hipótese de desenvolvimento sacerdotal na estrutura do culto. Não existe na Quimbanda a ideia que se deriva dos Candomblés da função ou cargo do ògá: indivíduo que não apresenta a mediunidade de incorporação. É um requerimento fundamental para o desenvolvimento hierárquico e sacerdotal na Quimbanda a proficiência na capacidade mediúnica de incorporação. Não existe Táta Nganga de Quimbanda que não incorpora seu Exu. Essa ideia é simplesmente uma aberração!

[19] Para uma contextualização do diabolismo francês veja Robert Ziegler. Satanims, Magic and Mysticism in Fin-de-siècle France. Palgrave MacMillan, 2012.

[20] Para uma contextualização da nova síntese da magia veja Parte I. Esta nova síntese da magia começou a ser explorada por autores do Ocultismo moderno como Jake Stratton-Kent, Frater Acher e Aaron Leitch no que ficou conhecido como grimoire revival, que traduzo como o renascer da magia dos grimórios a partir do fim da década de 2000. A nova síntese da magia consiste na restauração da magia cerimonial a partir dos arcanos mágicos dos cultos afro-diaspóricos nas américas, criando novas formas adaptadas de operar a partir dos grimórios. A Quimbanda é a filha mais bem sucedida desta nova síntese da magia, seguida como exemplo de adaptação mágica para países da América e Caribe.

[21] Aluízio Fontenelle. Exu. Parzifal Publicações, 2019, pp. 88-9.

[22] Para uma contextualização dos dois momentos da Quimbanda veja o segundo volume do Daemonium. Clube de Autores, 2022.

[23] Wouter J. Hanegraaff. Western Esotericism: A Guide for the Perplexed. Bloomsbury Academic, 2021.

[24] Antonie Faivre. Western Esotericism: A Concise History. SUNY Press, 2010, pp. 1-7.

[25] Evandro Mendonça. Culto à Quimbanda. Agô, 2020.

[26] Diego de Oxóssi. Desvendando Exu. Arole Cultural, 2018.

[27] Martin Claret, 2009.

[28] Mircea Eliade. Dicionário das Religiões. Martins Fontes, 2019.

[29] Veja Corpus Hermeticum Graecum, Livro XIII. David Pessoa de Lira (Org.). Cultrix, 2023.

[30] Publicado no Brasil pela Editora Madras, 2008.

[31] Veja Edward George Bulwer-Lytton. Vril: O poder da raça futura. Editora do Conhecimento, 2010. O pano de fundo que ampara as ideias acerca do vril desenvolvidas por Bulwer-Lytton vai de suas preocupações iniciais com as forças ocultas naturais, tema comum no Ocultismo do fim do Séc. XIX e cujas origens remontam ao renascer do orientalismo platônico e hermetismo neo-alexandrino do Renascimento, aos seus estudos sobre magnetismo animal e espiritismo.

[32] O uso do termo gnōsis na Quimbanda é complicado. Primeiro porque a interpretação popular corrente o conecta diretamente ao cristianismo gnóstico; segundo que sua utilização na cultura da Quimbanda começa na literatura da Quimbanda Luciferiana, a partir de 2010, e não fora utilizado anteriormente por qualquer autor de Quimbanda. Como o termo é grego e tem sido adaptado de formas distintas na Quimbanda desde então, é difícil defini-lo sobre uma regra universal. Se o termo era interpretado de formas distintas entre hermetistas, cristãos gnósticos e gregos de modo geral na Antiguidade, não seria diferente em sua adaptação na linguagem moderna da Quimbanda no Brasil. Uma vez que tratamos de Quimbanda no contexto do esoterismo ocidental, é normal também a adaptação de termos utilizados por inúmeras correntes esotéricas modernas, na verdade, é quase impossível de não o fazer. Isso não significa, no entanto, adaptar qualquer coisa a Quimbanda como se fosse possível enfiar tudo no liquidificador e bater. Os cakras, as nāḍī e a kuṇḍalinī, por exemplo, é algo novo que tem aparecido na cultura da Quimbanda, e somente faz sentido no contexto da manipulação energética, prāṇa-vidyā etc.

[33] Outro termo difícil de ser usado na Quimbanda, porque no imaginário do Brasil contemporâneo tudo o que é considerado contracultura está invariavelmente associado a ideologia progressista marxista. A ideia de associar Exu e a Quimbanda a contracultura ideológica progressista nasceu no livro O Segredo da Macumba de 1972, dos sociólogos Marco Aurélio Luz e Georges Lapassade. A obra dá início a uma interpretação contestável de que o Culto de Exu, a Quimbanda ou a Macumba, nasceram para agregar um trabalho religioso contracultura, aliado a ideologia progressista-marxista de destruição dos símbolos que sustentam a ordem e coesão social. Eles dizem: É hábito que o Exu, como símbolo da sexualidade liberta [...], como uma alusão a um desejo de uma camada social que teve suas relações familiares destruídas por uma necessidade do funcionamento da relação de casamento autoritário patriarcal europeu, que exigiu a abstinência sexual e a fidelidade conjugal como condições essenciais da constituição familiar e exigindo através da repressão moral-religiosa e legal, um comportamento sexual determinado. Esse tipo de construção sofista inflamou uma grande massa de analfabetos funcionais, adeptos, sacerdotes e pais de santo de baixa cultura a adotar a agenda ideológica progressista no âmbito dos terreiros e práticas espirituais afro-brasileiras diversas. Em outra passagem, os autores dizem: Existe contracultura na Quimbanda quando se corre as cortinas diante do altar dos orixás. Então começa a contracultura da provocação sexual, da gira e dos palavrões, da cachaça, dos charutos etc. (A contralinguagem ocupa um lugar essencial em todas as contraculturas...). O pano de fundo da tese dos autores é psicológico-freudiano niilista: Exu é o elemento desagregador e demolidor do puritanismo sexual vigente, genitor de mazelas psíquicas diversas, todas elas liberadas em giras de catarse dos construtos opressores agora serrilhados por Exu. Os autores dessa obra advertem que se trata de uma abordagem teórica materialista (pp. xii), propondo uma nova leitura dos cultos afro-brasileiros [...] elaborada a partir das ideias de Marx, Freud e W. Reich sobre a instituição religiosa (pp. xi). Segundo os autores, o livro sobre a macumba não pretende chegar a conclusões definitivas na tentativa de defender a Quimbanda do movimento que se tem feito para destruí-la (pp. xii). As vertentes tradicionais de Quimbanda, que começaram a nasce vinte anos antes, na década de 1950, não aderiram a essa revisão ideológica progressista na Macumba.

[34] Iamblichus. On the Mysteries. John M. Dillon, Emma C. Clarke e Jackson P. Hershbell. Society of Biblical Literature, 2003, pp. 15.

[35] Processo de obtenção de conhecimento espiritual através da expansão da consciência induzida por enteógenos ou drogas psicoativas de modo geral.

[36] Antoine Faivre. O Esoterismo. Papirus, 2013, pp. 31.

[37] Aluízio Fontenelle. Exu. Parzifal Publicações, 2019, pp. 285.

[38] Para uma contextualização clássica e resumida do Ocultismo sobre o ternário, veja Papus. Tratado Elementar de Ciências Ocultas. Pensamento, 2023, pp. 40-6.

[39] Stephen Skinner. Techniquer of Salomonic Magic. Golden Hoard Press, 2017, pp. 177.

 




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