Por Táta Nganga Kamuxinzela
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Contextualizando Asmodeus na Quimbanda Malê.[1]
Toda Quimbanda é cipriânica; essa é uma afirmação que venho fazendo desde que comecei a escrever sobre a Quimbanda, em 2019.[2] E quando digo que toda Quimbanda é cipriânica, implicitamente estou dizendo que toda Quimbanda é salomônica.[3] E a Quimbanda Malê é, quem sabe, a mais salomônica de todas.[4] No meu último livro, Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia, eu demonstrei a profunda influência da magia salomônica árabe na Quimbanda Malê. Tudo o que envolve Asmodeus na Quimbanda Malê, dando continuidade ao que expus no livro, tem raízes na cultura salomônica islâmico-judaica. Toda a fundamentação de Asmodeus na Quimbanda Malê está em consonância direta com os ciclos míticos de Salomão e Asmodeus no Alcorão, no Zohar e na Mishná, como poderemos observar na Seção II.
Devido a sua importância no contexto do culto, Asmodeus[5] é muitas vezes confundido como o próprio Chefe ou General da Quimbanda Malê, suplantando a autoridade de Exu Rei das Sete Encruzilhadas, mas não é bem assim. O Chefe em Comando da Quimbanda Malê é Exu Rei das Sete Encruzilhadas, que se apresenta como um enviado de Exu Rei, que é Lúcifer. Neste sentido técnico o próprio Lúcifer é a deidade suprema da Quimbanda Malê. Em seu livro Kiwanda: Raízes da Kimbanda Malei, um dos sacerdotes mais antigos do culto no Brasil hoje, Muloji, diz existir uma brecha interpretativa a partir da obra de José Maria Bittencourt, No Reino dos Exus, em que o mesmo ao descrever os Chefes das sete linhas clássicas de Quimbanda, Nàgô, Mussurumim, Almas, Malê etc., se esquiva de nomear o comandante da Quimbanda Malê, citando apenas Exu Rei.[6] Em seguida Muloji apresenta um quadro de classificação dos comandantes das vertentes, alocando Asmodeus como comandante da Quimbanda Malê. Pessoalmente não consegui ver a brecha, porque Exu Rei, que é Lúcifer, é o Supremo Comando da Quimbanda Malê.
Mas Asmodeus também é associado com a Pombagira Rainha das Sete Encruzilhadas que, como demonstrei no meu livro Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia,[7] trata-se da primeira manifestação que oculta o primeiro espírito que controla todas as Pombagiras.[8] Este primeiro espírito que controla todas as Pombagiras, atenção: é Asmodeus. Na Quimbanda Malê é Asmodeus a deidade em comando sobre todas as Pombagiras, é o poder delas velado sob a imagem de Pombagira Rainha das Sete Encruzilhadas.
Na tradição literária afro-brasileira, o primeiro autor a fazer uma associação direta entre Asmodeus e as Pombagiras na década de 1970 é Táta José Ribeiro de Egunitá (1930-2018), o Rei do Candomblé no Brasil, em três livros singelos. No livro Culto Malê, capítulo O Pacto com o Diabo, o autor diz que Asmodeus é um demônio da luxúria e dos desejos sexuais,[9] campo de ação geralmente associado ao poder venusiano/marcial de Pombagira, além de estar em concordância direta com O Testamento de Salomão, onde Asmodeus se apresenta como um conspirador da concupiscência extraconjugal, despertando a luxúria, o hedonismo, o desejo sexual desmedido, levando o homem ao adultério. Em outras palavras, o domínio total das volições e impulsos sexuais no homem.
Em outra obra, Pomba Gira Mirongueira, de 1972, o autor volta a associar Asmodeus as Pombagiras e também a Klepoth, derivada da cosmovisão de Quimbanda de Aluízio Fontenelle (1913-1952), que inaugurou a nova síntese da magia associando os Exus aos demônios do Grimorium Verum vinte anos antes.[10] No livro o autor dedica dois capítulos ao tema: Asmodeus (Pomba-Gira) e suas Magias, e Klepoth (Exu Pomba-Gira). E no terceiro livro, Eu, Maria Padilha, de 1973, o autor repete as associações do livro Culto Malê, alocando Asmodeus sob a autoridade hierárquica de Beelzebuth.[11] No Ganga eu menciono que:
A Pombagira Rainha das Sete Encruzilhadas na Quimbanda Malê é como uma abelha rainha, a inteligência espiritual que comanda toda a colmeia de Pombagiras-abelhas. Todas as Pombagiras na Quimbanda Malê estão, portanto, conectadas por meio de uma única fonte de poder, Asmodeus-Rainha das Sete Encruzilhadas, mas no entanto, assumem personalidades próprias. Por isso na Quimbanda Malê todas as Pombagiras são Klepoth, i.e. a manifestação total das Qliphoths.
A associação entre Asmodeus e as Pombagiras deriva das concepções demonológicas medievais, principalmente aquelas provenientes do Malleus Maleficiarum de 1486, onde uma associação permanente se estabeleceu no imaginário europeu entre a sexualidade feminina, o Diabo e a ação dos demônios. Como demonstrei no segundo volume do Daemonioum, a Pombagira como diaba brasileira procede do imaginário europeu da mulher-feiticeira-prostituta-maligna. Táta José Ribeiro de Egunitá no livro Culto Malê faz uma longa citação do Malleus Maleficiarum onde Asmodeus é alocado dentro da primeira hierarquia demoníaca e, ali, associado a Pombagira. Então é muito clara a procedência da equivalência. Nos três livros deste autor citados acima, ele coloca ênfase no fato de que o perigo em lidar com Asmodeus, i.e. com as Pombagiras, advém do conhecimento que elas têm em usar e abusar do poder sexual sobre os homens. E segundo o autor Tadeu Mourão, citado por mim com frequência, é esse o poder que transformou Pombagira em uma diaba.[12] Eu fiz uma introdução concisa sobre esse tema, a Pombagira-Diaba, no segundo volume do Daemonium. Sobre esse mistério Marlyse Meyer diz:
Uma valorização da feminilidade no que tem de primordial, de força viva. Como que se quebra, nessa instância libertadora da relação entidade/consulente, o milenar e arraigado preconceito, o medo da mulher, que os teólogos oficiais da umbanda ainda teimam em teorizar. Pomba-gira = luxúria = mal absoluto = Asmodeus = Demônio Mor, mais alto que Lúcifer: o DIABO.[13]
[...] Doña Maria de Padilla ficou na lembrança dos poetas até três séculos após sua existência terrena. A sua demonização, já anunciada no Romancero: enfeitiçadora, metaforicamente, como todas as grandes mulheres sedutoras, e «concretamente», pelo cinto de pedrarias que se transforma em serpentes. Associada a Salomé e São João Batista. Este último, opositor de Asmodeus, associado às bruxarias.[14]
Como veremos na Seção II abaixo, na tradição judaica Asmodeus é um demônio que aparece em muitos mitologemas, dentre os quais ele se destaca como um poderoso incitador da lascívia sexual. É interessante notar que a autora Lena Frias em seu artigo Pomba Gira: A Temível Mulher-Exu, publicado na revista carioca O Cruzeiro No. 30 de 1971, apresenta Pombagira como o extravasamento de todas as forças sexuais femininas reprimidas, ligando-a à alcunha de espírito maligno, residente no inferno e componente do gabinete de Lúcifer como sua ministra. O artigo adentra ao âmbito mitológico e associa Pombagira à própria Serpente que apresentou à Eva o pecado, levando Adão também a pecar:
Um dia, por seus encantos infernais, ela [a Serpente] seduziu o porteiro do céu. Penetrou nos domínios divinos, que eram reservados à pura elite dos anjos e arcanjos. Eis que se revelou a Eva o gosto da maçã. Já a simples presença da serpente provocou no paraíso efeitos estonteantes: um cheiro forte de vida atravessou o Jardim das Delícias, impregnando o ar. Eva era puro espanto, em face da sabedoria da Serpente que a iniciou na descoberta de si mesma como protofêmea e mãe da espécie humana. Então ela enriqueceu os encantos de Eva: acentuou-lhes os perfumes, enfeitou os seus cabelos com flores e fez surgir nos olhos da primeira mulher o fogo que precipitou muitas falanges de anjos aos abismos da terra. Deu-lhes linhas mais belas ao corpo e graça aos movimentos. Tomou forma em Eva. Foi, em seguida, procurar Adão. De assombrado passou a resoluto o primeiro homem: entre o Paraíso e a mulher recém-anunciada, ficou com a mulher. Mesmo que precisasse ganhar o pão com suor de seu rosto. E Eva ofereceu ao companheiro a maçã para morder.
No mesmo artigo, a autora apresenta um hibridismo ainda mais sofisticado, agora associando as deidades da cultura banto:
Estamos todos no mundo, conta uma lenda, por obra de Exu Pombagira. Um dia ela sugeriu a Zambi Opongô e a Zambira Iapangá que fossem criados homens e mulheres. Ela observou que não poderia levar aos pecados da carne criaturas que não possuíam corpo. Zambi e Zambira, que reinavam sobre o caos, viram razão no argumento e assim se fez o homem e mulher. O resto ficou por conta da Serpente.
Nesse mitologema sincrético, que parece ter sido escrito pela própria autora ou escutado de fontes orais, que une três culturas ancestrais, Pombagira detém o poder da Serpente, que tanto aprisiona como liberta, o poder do próprio Diabo.
Na tradição oral da Quimbanda Malê é comum escutar da boca de antigos sacerdotes que Asmodeus é homem-mulher, termo para designar a manifestação de Asmodeus, hora se apresentando como homem (Exu) e hora se apresentando como mulher (Pombagira). Isso ocorre porque Asmodeus é uma deidade andrógena na Quimbanda Malê, assim como é apresentado nos mitologemas judaicos, sendo o trono de manifestação de Klepoth, representada iconograficamente como a Serpente de Sete Cabeças que se insere nos assentamentos dos Exus e Pombagiras. No Ganga menciono que:
Na Quimbanda Malê as Pombagiras possuem consciência coletiva, como se todas fossem uma só, ou participantes de uma colmeia mágica que derivam seu poder de uma fonte, de uma rainha, com a capacidade de absorver espíritos diversos e colocá-los sob o seu comando.
Assim como o Exu Rei das Sete Encruzilhadas é considerado o General da Quimbanda Malê, comandante de todos os Exus sob a autoridade de Lúcifer, a Pombagira Rainha das Sete Encruzilhadas é a comandante de todas as Pombagiras sob a autoridade de Asmodeus, um demônio que tem funções distintas em vários grimórios medievais e modernos. Suas origens remontam à antiga Pérsia onde era chamado de Aēšma, um djinn das tempestades. Posteriormente ele foi associado à ira e a vingança, sendo o personagem principal de O Livro de Tobias, onde é apresentado como um vingativo demônio ciumento.[15]
Essa atuação de Asmodeus na Quimbanda Malê, hora masculina e hora feminina, assim como a sua natureza andrógena, deriva tanto das antigas recessões míticas judaicas quanto das recessões islâmicas e cristãs, o que veremos na Seção II abaixo.
Pombagira como Klepoth na Quimbanda Malê representa a totalidade das qliphoth na cultura judaica, a concentração de todo o mal, mas sem o qual a própria criação não seria possível. São as cascas que envolvem todo e qualquer ato de criação divina. Essas cascas são impuras e a ação delas pode tanto libertar (despertar luz), quando aprisionar (densificar a escuridão). Na sua edição do Grimorium Verum, Jake Stratton-Kent (1956-2023) apresenta Klepoth como uma demônia (espírito feminino) lasciva e encantadora, com capacidades divinatórias:
Klepoth ou Kleppoth, também conhecida como Kepoth, pode dar 1000 voltas, ao dançar com seus companheiros e os fará ouvir bela música, que se acreditará ser real. Se você desejar, de passagem, ela sussurrará no seu ouvido as cartas daqueles que estão jogando com você. De acordo com outros, faz você ver todos os tipos de danças, sonhos e visões.[16]
[...] Possivelmente de um termo coletivo hebraico para espíritos malignos, qlipoth; a forma singular, qlepah ou klepah, significa prostituta. Embora apropriado para a associação com Pombagira, nenhum uso exato do termo está necessariamente implícito, no contexto pode simplesmente significar espírito. Alternativamente, a tradição brasileira inclui um nome variante, Klepta, que pode indicar uma raiz grega que significa ladrão.[17]
Toda e qualquer conexão entre Asmodeus-Pombagira-Klepoth está associada ao intenso poder sexual, controlado ou descontrolado, administrado, despertado e projetado, associado ao imaginário diabólico ao redor da imagem da mulher. A representação iconográfica de Klepoth na Quimbanda Malê é uma Serpente de Sete Cabeças, como na representação da Prostituta da Babilônia, uma mulher que cavalga, i.e. que tem o poder sobre, uma besta de sete cabeças, representando um poder caótico extraordinário.
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Asmodeus nos antigos mitologemas.
[1] No trabalho desenvolvido
por nossa família optamos por usar o termo Quimbanda Malê ao invés do
tradicional Kimbanda Malei. O fazemos com o único propósito de
diferenciar o nosso trabalho do trabalho de outras famílias.
[2] Veja as edições da Revista
Nganga para uma contextualização da influência fáustico-cipriânica na
Quimbanda. Qualquer alegação de que a Quimbanda não é cipriânica é vencida com
este argumento: se a Quimbanda não é cipriânica, por que trabalha com Maria
Padilha? Maria Padilha chegou ao Brasil nas páginas de O Livro de São
Cipriano.
[3] Algumas edições clássicas
de O Livro de São Cipriano trazem excertos inteiros de grimórios salomônicos.
Veja o texto Quimbanda: A Goécia Tradicional Brasileira, por Táta
Kamuxinzela, na Revista Nganga No. 10.
[4] No livro Ganga: a
Quimbanda no Renascer da Magia, menciono que a cosmovisão da Quimbanda
Malê, de todas as vertentes tradicionais, é a mais próxima da síntese
realizada por Aluízio Fontenelle (1913-1952). Acrescentando aqui, de todas as
vertentes tradicionais, a Quimbanda Malê é a que mais se aproxima da
prática tradicional salomônica concernente a imprecação violenta dos demônios
que em verdade, como menciono no livro, são djinn. A fundamentação, i.e.
o feitio da morada de poder (assentamento) dos djinn da Quimbanda
Malê tem profunda influência dos mitos salomônicos islâmico-judaicos.
[5] Amodeus ganhou
muita proeminência na Quimbanda Malê por meio do trabalho do sacerdote
Dorcides de Oxum, que trabalhava com essa deidade.
[6] Muloji. Kiwanda: Raízes
Perdidas da Kimbanda Malei. Publicação do autor, 2021, pp. 59-60. No livro
de José Maria Bittencourt, No Reino dos Exus (Editora Pallas, 2004),
veja pp. 67. Na edição de 2023 de seu livro, Muloji retirou do texto a menção
de Asmodeus como chefe da Quimbanda Malê.
[7] Fernando Liguori. Ganga:
a Quimbanda no Renascer da Magia. Clube de Autores, 2023.
[8] Ibidem, pp. 281.
[9] José Ribeiro. Culto
Malê. Editora Espiritualista, 1970, pp. 45.
[10] Para contextualização veja
o artigo Quimbanda: A Goécia Tradicional Brasileira, em Revista
Nganga No. 10.
[11] Beelzebuth ganha
proeminência na demonologia cristã. Na demonologia judaica, grande proeminência
é dada a Asmodeus, considerado o rei dos demônios. Esse é mais um ponto
de convergência entre a Quimbanda Malê e os mitos salomônicos islâmico-judaicos.
[12] Para uma contextualização
do tema veja: Tadeu Mourão. Encruzilhadas da Cultura. Aeroplano, 2012.
Humberto Maggi. Rainhas da Quimbanda. Via Sestra, 2012. Nicholaj de
Mattos Frisvold. Pomba Gira and the Quimbanda of Mbumba Nzila. Scarlet
Imprint, 2011. Marlyse Meyer. Feitiços do Amor. Artigo publicado em Revista
USP, No. 31, 1996, pp. 104-111. Da mesma autora veja Maria Padilha e
toda sua Quadrilha. Livraria Duas Cidades, 1993.
[13] Marlyse Meyer. Feitiços
do Amor. Artigo publicado em Revista USP, No. 31, 1996, pp. 110.
[14] Ibidem, pp. 111.
[15] Fernando Liguori. Ganga:
a Quimbanda no Renascer da Magia. Clube de Autores, 2023 , pp. 281-2.
[16] Jake Stratton-Kent. The
True Grimoire: Encyclopaedia Goetica. Vol. 1. Scarlet Imprint, 2022, pp. 63.
[17] Ibidem, pp. 142.