Por Táta Nganga Kamuxinzela
@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago
Estou preparando um ensaio chamado Quimbanda Espetáculo: muitos me questionam sobre o «boom» da Quimbanda nas redes sociais. O fato é que a cultura é o Norte do indivíduo nela inserido. Compreender a cultura em que se está inserido é também ter um Norte existencial sócio-cultural. A nossa cultura mudou de erudita e restrita a círculos aristocratas, às vezes hermética e profundamente simbólica, para um tipo medíocre e pueril de cultura universalizada que Frédéric Martel (1967-) chamou de «mainstream», e Gilles Lipovetsky (1944-) e Jean Serroy chamaram de «cultura-mundo» e que defino como o fim das proporções: i. entre «valor» e «preço», onde eles convergem em uma coisa só, definida pelo mercado; ii. entre sucesso e fracasso, onde sucesso é o que vende e fracasso é o que não atinge as massas; iii. entre as produções culturais, onde um show da Anitta equivale a apresentação da Sinfonia no. 9 de Beethoven; e iv. entre os indivíduos, onde um ditador déspota e «fascista» que matou milhões de pessoas é endeusado por uma massa de indivíduos transtornados, e um filósofo e educador, indivíduo que nuca fez mal a ninguém, é perseguido como um párea da sociedade, caluniado e difamado. Trata-se uma nova cultura baseada em espetáculos para indivíduos rasos, os imbecis coletivos.
Esse tipo de cultura ao invés de fazer «progredir» o indivíduo, imbeciliza-o, privando-lhe de lucidez e livre-arbítrio, orientando-lhe a reagir a ela de forma condicionada e gregária. Esse «boom» da Quimbanda nas redes sociais é fruto do espírito de nosso tempo, o «deus folgazão» do qual falou Ortega e Gasset (1883-1955), que alimenta nossa atual cultura de imbecis.
Infelizmente a atual cultura do «Imbecil Coletivo» tem chegado às portas da Quimbanda, imbecilizando a própria ideia de Quimbanda nas vertentes de segunda (1970-1990) e terceira (2000-2020) ondas. Algumas verborréias como «a Quimbanda é progressista» começaram a aparecer como fruto de uma massificação ideológica promíscua. A Quimbanda é um culto que forja guerreiros, indivíduos que operam na contra-mão total da uniformidade coletiva positivista-progressista que impera em nossa sociedade. Um kimbanda genuíno e verdadeiro nunca estará imerso nas massas, mas isolado delas; ele busca a superação e o aperfeiçoamento de si, não do grupo.
Então o indivíduo que diz que a Quimbanda é progressista não se trata apenas de um burro ou analfabeto funcional, mas um completo idiota que não compreendeu a força visceral do Diabo e as máscaras que ele assume.
A primeira menção acadêmica relacionando Exu e a Quimbanda a ideologia marxista foi em um experimento de 1972 – a década em que começaram nascer as vertentes de segunda onda derivada dos candomblés baianos e do batuque gaúcho – chamado O Segredo da Macumba, escrito por dois sociólogos, um francês e outro brasileiro, Georges Lapassade e Marco Aurélio Luz. Os autores fazem um desserviço à memória da Macumba, a Umbanda e Quimbanda, a Exu e Pombagira. Sua obra deu início a uma interpretação abestalhada de que o Culto de Exu, a Quimbanda ou a Macumba, nasceram como um trabalho religioso contracultura, aliado a ideologia progressista-marxista de destruição dos símbolos que sustentam a ordem e coesão social, como o casamento e a família. Mas não se engane: Quimbanda é família! Eles dizem: É hábito que o Exu, como símbolo da sexualidade liberta [...], como uma alusão a um desejo de uma camada social que teve suas relações familiares destruídas por uma necessidade do funcionamento da relação de casamento autoritário patriarcal europeu, que exigiu a abstinência sexual e a fidelidade conjugal como condições essenciais da constituição familiar e exigindo através da repressão moral-religiosa e legal, um comportamento sexual determinado. Esse tipo de construção sofista inflamou uma grande massa de analfabetos funcionais, adeptos, sacerdotes e pais de santo de educação pueril a adotar a agenda ideológica progressista nefasta no âmbito dos terreiros e práticas espirituais afro-brasileiras diversas. Em outra passagem, os autores dizem: Existe contracultura na Quimbanda quando se corre as cortinas diante do altar dos orixás. Então começa a contracultura da provocação sexual, da gira e dos palavrões, da cachaça, dos charutos etc. (A contralinguagem ocupa um lugar essencial em todas as contraculturas...). O pano de fundo da tese dos autores é psicológico-freudiano niilista: Exu é o elemento desagregador e demolidor do puritanismo sexual vigente, quer é genitor de mazelas psíquicas diversas, todas elas liberadas em giras de catarse dos construtos opressores agora serrilhados por Exu. Os autores dessa obra advertem que se trata de uma abordagem teórica materialista (pp. xii), propondo uma nova leitura dos cultos afro-brasileiros [...] elaborada a partir das ideias de Marx, Freud e W. Reich sobre a instituição religiosa (pp. xi). Segundo os autores, o livro sobre a macumba não pretende chegar a conclusões definitivas na tentativa de defender a Quimbanda do movimento que se tem feito para destruí-la (pp. xii).
É a partir deste livro da década de 1970 que se inicia uma incursão profunda do espírito do progressismo dentro da Quimbanda, o que explica a abordagem ideológicas nas vertentes de segunda e terceira ondas. E é o que explica também a falta total de inclinação ideológica nas vertentes tradicionais de primeira onda. Na cosmovisão das vertentes tradicionais, a Quimbanda é um Culto de Guerra para Guerreiros interessados em transformar a sua realidade e transcender as suas fraquezas (veja o artigo 11 Aforismos para Entender a Quimbanda). Na perspectiva das vertentes tradicionais, um kimbanda está interessado em resolver apenas os seus problemas e a Quimbanda, trata-se de uma arma mágica para que ele consiga resolver os problemas. Para tal eu explico que o termo «anticósmico», que começou a ser introduzido na cultura da Quimbanda através de uma vertente de terceira onda (2000-2020), a Quimbanda Luciferiana, que nasceu em 2010, também é inadequado. No meu texto ainda inédito, Titica de Galinha na Cabeça: Exu na Quimbanda é Anticósmico Marxista?, esclareci:
Quimbanda tradicional não
é anticósmica. Ela poderia ser definida como «transgressora» social em uma
perspectiva exclusivamente sociológica, como àquela apresentada no livro O
Segredo da Macumba (1972) dos sociólogos Marco Aurélio Luz e Georges
Lapassade, que apresentam Exu e Pombagira como agentes «contracultura». Mas os
argumentos dos autores foram completamente demolidos – e reestruturados – por
Renato Ortiz em seu célebre A Morte Branca do Feiticeiro Negro (1988)
que apresenta a Quimbanda e o trabalho de Exu dentro de um contexto sociológico
coeso e coerente, onde se infere que «transgressão» social não significa ser
«anticósmico», termo derivado das antigas ideias gnósticas e utilizadas de
forma non sense a partir da inauguração da Quimbanda Luciferiana
por volta de 2010. Outra deslumbrante argumentação sobre essa questão
sociológica da transgressão social da atuação de Exu e Pombagira pode ser
encontrada na obra de Tadeu Mourão, Encruzilhadas da Cultura (2012).
A partir destes autores,
para falar de apenas dois que clarearam muito bem esse tema no contexto
sociológico, fica claro que Exu é um agente de transgressão das normas vigentes
da sociedade. É interessante que nas culturas africanas que alimentam a
Quimbanda, quer dizer, os bantos e os yorùbás, os espíritos e forças da
natureza – jinkisi entre os bantos e os irúnmalè ou òrìṣà
entre os yorùbás – estão conectados a origem e organização do cosmos; os
ancestrais ou antepassados – makulu entre os bantos e os irúnmalè-ancestres
ou égún entre os yorùbás – por outro lado, estão conectados a
estrutura da sociedade, a história dos seres humanos. Então fica claro que a
atuação e agência de transgressão social de Exu e Pombagira se limita ao
contexto social, as normas estruturais da sociedade que mudam de tempos em
tempos. Não se trata de uma rebeldia sem causa contra as leis e estrutura do
cosmos, do Criador e seus agentes de ordenação. Isso está fora da alçada de Exu
e Pombagira.
Nos estudos da Quimbanda e das cosmovisões
associadas as vertentes das três ondas, é urgente que se aprenda
a identificar no curso do tempo os contextos sociais e culturais em que essas
vertentes nasceram. Isso faz grande diferença no discernimento das premissas
que separam e diferenciam as vertentes, muito embora a fundamentação da
feitiçaria, o modus operandi, seja o mesmo, mas com pontuais variações,
em todas essas vertentes. Então fica fácil de ver como as vertentes
tradicionais não são afetadas pela polarização ideológica que invadiu e cooptou
as vertentes de segunda e terceira ondas.