Por Táta Nganga Kamuxinzela e Táta Nganga Kilumbu
@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago | @quimbandamarabo
No Mundo Antigo nunca existiu, no contexto dos cultos de
mistérios ou religiões populares, a ideia de auto-iniciação ou iniciação a
distância. A iniciação, i.e. a admissão em um culto ou religião, sempre exigiu
a presença do iniciado no templo onde os ritos do culto eram realizados.
Existia a possibilidade de se enviar um objeto consagrado contento um valor
mágico que pudesse realizar milagres na vida de quem o recebesse, mas isso de
modo algum foi considerado uma forma de iniciação a distância. O objeto carregado
com poder mágico poderia aproximar um homem de uma divindade, e ele passaria a
cultuá-la e ser orientado por ela, assim como Sócrates foi orientado por um daimon.
Mas era impensável a simples ideia de que uma pessoa pudesse ser iniciada em
qualquer culto por meio de uma carta, como hoje acontece na Astrum Argentum de
Aleister Crowley (1875-1947), filha do renascer da magia do fim do Séc. XIX.
Ninguém que é sério na magia acredita nisso, e a atual síntese da magia na qual
se insere a Quimbanda, onde se valoriza o poder dos cultos afro-diaspóricos
miscigenados com as técnicas da magia cerimonial europeia, é uma prova da
decadência e do fracasso da concepção cientificista moderna da magia.[1]
Na Antiguidade o indivíduo era iniciado por um grupo ou
até mesmo por uma divindade, como no hermetismo onde o adepto é iniciado por Poimandres.
A iniciação nunca ocorria por si mesmo (a autoiniciação), ou por carta (a iniciação
a distância). E como Fustel de Coulanges (1830-1889) demonstra em sua obra A
Cidade Antiga,[2]
para ser iniciado em um culto o indivíduo precisava ser um cidadão da cidade
onde se realizava o culto, ser da mesma etnia dos demais cidadãos e filho de
pais também cidadãos. A situação começa a mudar na primeira grande síntese da
magia que ocorreu com as intenções de Alexandre o Grande (356-323 a.C.) de
unificar todas as nações, o que configurou o mundo helênico, quer dizer, as
nações conquistadas por ele e unificadas por meio da língua grega em uma única
cultura, onde se entende que todos são cidadãos deste mundo helênico, e a
partir de onde há uma nova atualização dos deuses, que deixam de ter influência
sobre esta ou àquela cidade, e passam a ser reverenciados por outros povos distantes.
E quando observamos as culturas africanas e
afro-diaspóricas percebemos que essa métrica também é aplicada: há terreiros de
Umbanda e Candomblé que só aceitam negros ou membros da família. Na África, por
exemplo, existem cultos que são realizados apenas em regiões específicas. No
Brasil, outro exemplo, quem deseja se iniciar no Culto de Égúngún da Ilha de
Itaparica tem de viajar até lá para receber a iniciação. Este culto específico da
Ilha de Itaparica só existe lá. E no contexto das religiões afro-brasileiras
vivas, ou dos cultos africanos como o Ifá aqui no Brasil, nunca se ventila a
hipótese de iniciação a distância ou assentamentos (ibás), moradas de espírito
diversos, òrìṣà e ìrúmolè, enviados pelo correio. Em contra partida, medicinas
mágicas como banhos, sabonetes, óleos, pós etc. dotados de força mágica, podem
ser enviados por correspondência, e isso não constitui iniciação em
absolutamente nada. Fatos são fatos e contra fatos não há argumentos.
Essa ideia de autoiniciação ou iniciação a distância, só inicia
no Ocultismo moderno que se desenvolveu a partir do renascer da magia no fim do
Séc. XIX. Começou a virar moda, de fato, no fim da década de 1980 e ganha corpo
vigoroso nos movimentos nova era. Assim começam a aparecer ambas as ideias no
Reiki, na Wicca, no Satanismo, no Luciferianismo, em thelema através da Astrum
Argentum, na falida Ordem Hermética da Aurora Dourada, nas ordens rosacrucianas
com o sistema de monografias etc. E no contexto da Quimbanda, estas ideias
foram inseridas – e, portanto, só podem ser associadas a elas e a nenhuma outra
vertente – pela Quimbanda Xambá e continuadas pela Quimbanda Luciferiana. São
essas duas vertentes apenas, nascidas da terceira onda de manifestação das
vertentes de Quimbanda[3]
que ocorreu na década de 2000, que ventilam essas ideias. Essas duas vertentes,
por outro lado, não estão associadas ao tronco tradicional de Quimbanda; a Quimbanda
Luciferiana nasce do satanismo brasileiro[4]
que operava nos presídios paulistas; inspirados nessa Quimbanda Luciferiana,
nas obras que publicaram, inúmeros indivíduos, bandas de casa, começaram a se
autoproclamar Quimbanda Luciferiana; a Quimbanda Xambá, por outro lado, nasce
de um mito criado no Sul do Brasil ao redor de três magos e um bábálòrìṣà,
todos fictícios.
Na história da magia inúmeros mitos foram construídos
sobre a natureza da busca e da realização magística na personificação de
personagens míticos como Salomão, Simão o Mago, São Cipriano, Fausto etc. São
Cipriano e Fausto são os magos míticos par excellence da cultura europeia, e
que consubstanciaram o espírito da tradição mágica ocidental. Na narrativa de
suas vidas,[5]
eles viajaram para buscar conhecimento e sabedoria arcana para inúmeros países
distintos. Se em O Livro de São Cipriano você vê capítulos sobre a magia dos
caldeus, o poder dos nomes hebraicos, hierarquias de anjos e demônios chefiados
por reis infernais, o poder da astrologia etc., é porque São Cipriano
personifica o mago iniciado em muitas escolas e tradições iniciáticas. A
narrativa da viagem, da peregrinação, a jornada de busca pela iniciação, é
mítica, mas ela é um reflexo das necessidades e experiências humanas reais. Os
mitos são construídos para serem repetidos magicamente: a prática, o exercício
religioso, cria a necessidade do mito; este, por outro lado, realimenta e
aprofunda o exercício religioso. As lendas sobre as viagens iniciáticas desses
magos míticos nos ensina a lição da busca e necessidade reais pelas outorgas
iniciáticas da alma, reforçando a ideia da iniciação – na perspectiva das escolas
de magia tradicionais desde tempos imemoriais –recebida e outorgada por outro
iniciado, o sacerdote iniciador, que não apenas transmitirá o conhecimento e as
suas armas simbólicas, mas também plantará a força mágica da corrente no corpo do
iniciado, lhe dotando de autoridade espiritual.
A primeira menção a ideia de iniciação a distância na
cultura da Quimbanda apareceu no material da Quimbanda Xambá, criada no Sul do
Brasil na década de 2000. Já a ideia de autoiniciação ocorreu nos primeiros
materiais de divulgação da Quimbanda Luciferiana; nascida em 2010, foi
profundamente influenciada pelo satanismo e pelo luciferianismo modernos –
ambas as tradições são abertamente simpatizantes da ideia de autoiniciação – mas
o tema logo desapareceu das atualizações mais recentes.
Ambas as ideias negam a necessidade da outorga ou
chancela espiritual transmitida por um sacerdote oficiante. Como demonstrei no
artigo A Catábase na Quimbanda Nàgô, a cerimônia de admissão na Quimbanda, i.e.
o Ritual de Iniciação, trata-se do início de uma jornada iniciática no
Submundo: é quando se abrem os portões do Inferno para a recepção do novo kimbanda
que acaba de ser admitido a grande horda de guerreiros do Chefe Império
Maioral, o Diabo. Desde tempos imemoriais, foi a função do homem criar o rito
para emular mágico-religiosamente o mito. Nos antigos mitos catabáticos, todos
àqueles que desejam penetrar nas profundezas do Hades são conduzidos por um indivíduo
preparado que os leva até o limiar com o mundo dos mortos. De igual modo, o
sacerdote iniciador conduzirá o novo adepto até os portões do Inferno, de onde
ele seguirá junto ao seu Exu tutelar pelas profundezas dos Reinos da Quimbanda.
É necessário, portanto, que um indivíduo preparado, que conhece a geografia do
Submundo, ou seja, um Mestre de Quimbanda que conhece os domínios de Maioral, o
Inferno, para guiar o adepto até a sua comunhão (entenda pacto) com Exu, quando
ambos iniciam a catábase.
Nas ditas iniciações a distância não há uma transmissão
de força mágica para o corpo físico e espiritual do adepto; apenas lhe são
fornecidas ferramentas sagradas para executar o ofício, sem a impressão
energética da chancela mágica da Quimbanda sobre sua alma. Será por meio da
iniciação genuína, àquela que transfere para a alma do adepto a força mágica da
Quimbanda, que ele terá a certeza da origem, do fundamento e da natureza dos
espíritos cultuados, e onde haverá não apenas a sacralização das ferramentas,
mas também do corpo físico e espiritual do novo kimbanda. A partir desse
momento a faca se torna sagrada, mas a mão do feiticeiro também se torna
sagrada. E é aqui que separamos joio do trigo, pois não nos sustentamos
exclusivamente sobre ferramentas consagradas, mas no próprio espírito
individual consagrado ao Chefe Império Maioral, o Diabo, e é isso que fará o
feiticeiro ser ouvido pelo povo de Exu em quaisquer encruzilhadas ou pontos de
força espalhados pelo mundo, pois agora ele é em si o depositário das forças e da
corrente mágica da Quimbanda.
Tal fato ocorre não apenas dentro do meio religioso de
Quimbanda, mas prossegue na Umbanda, no Candomblé, no Catimbó Jurema, no Iṣéṣé
Làgbà, enfim, a todos os cultos verdadeiramente iniciáticos de magia e
feitiçaria. É através da transmissão da tradição por meio da iniciação que o
adepto terá certeza da natureza do espírito que cultuará. Você poderá
argumentar: quem foi o primeiro do culto a receber essas outorgas espirituais.
Obviamente foi o homem que fundou o culto. Lembre-se, desde tempos imemoriais é
o trabalho do homem criar o rito que emula o mito, com ou sem a influência de
espíritos, inspirado ou não pelo divino. Portanto, quem criou a Quimbanda foi
algum homem iluminado e sagaz o suficiente para levar esta segurança religiosa
e mágica àqueles que desejassem.
O que separa uma corrente mágica fundamentada de outras
duvidosas, é a cerimônia de iniciação e a transferência da corrente mágica. O
que garante que um kimbanda está cultuando um Exu ou Pombagira? É a farofa? O marafo?
O charuto? A capa preta ou a saia rodada? Nada disso garante! Nem arquétipo de
manifestação garante. O que garante é a tradição que ampara todos esses
fetiches e que prove as conexões e os acessos aos Reinos do Chefe Império
Maioral. No mundo dos espíritos, qualquer um pode lhe servir por conveniência.
Mas a certeza de que ele é de fato fundamentado e integrante de uma corrente
mágica genuína e verdadeira, é a iniciação.
[1] Veja os artigos de Táta Kamuxinzela:
Quimbanda: A Goécia Tradicional Brasileira, A Quimbanda no Esoterismo Ocidental
e A Quimbanda no Ocultismo Moderno.
[3] Para entender o contexto, veja o artigo
de Táta Kilumbo: Da Macumba a Quimbanda Nàgô.
[4] De Táta Kamuxinzela veja Ganga: a
Quimbanda no Renascer da Magia. Clube de Aurores, 2023.
[5] De Táta Kamuxinzela veja Daemonium (Vols.
1 e 2). Clube de Aurores, 2019, 2022.