@tatakamuxinzela
Desde 2019 em meus escritos, livros, artigos na Revista Nganga, ensaios aqui no site e em postagens no Instagram, eu tenho demonstrado através de pontes com os cultos de mistérios do passado, que a Quimbanda se estrutura sobre antigos arcanos da magia e da feitiçaria praticados por homens e tradições mágicas do Mundo Antigo.[1] Por inúmeras vezes eu disse que a Quimbanda é funcional porque ela não inventa fórmulas mágicas novas; ao invés disso, ela trabalha com as fórmulas antigas da tradição da magia, como àquela do espírito tutelar que venho me debruçando desde o primeiro volume do Daemonium.[2] Neste opúsculo irei estabelecer uma ponte entre o Maioral da Quimbanda, o Arconte de todos os Infernos, e o deus dos teurgos, Aion, como apresentado no Livro XI do Corpus Hermeticum,[3] na intenção de esclarecer a costumeira expressão: Exu trabalha no seu tempo. Então: qual é o tempo de Exu?
Em meu livro Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia,[4] o Chefe Império Maioral, a deidade regente da Quimbanda, foi apresentado em seu contexto original, derivado da obra do ocultista francês Eliphas Levi (1810-1875), de onde nasce a ideia de Baphomet como um símbolo teriomorfo da Alma do Mundo. Como venho demonstrando desde o segundo volume do Daemonium,[5] quando Aluízio Fontenelle (1913-1952) sintetizou o mito do Exu-Diabo no imaginário brasileiro, a iconografia que ele buscou associar ao Chefe da Quimbanda foi o Baphomet de Eliphas Levi como agente mágico universal, luz astral ou Alma do Mundo. Ele diz em Dogma & Ritual de Alta Magia:
[...] a alma do mundo, que é o agente universal, [... é] a antiga serpente da lenda nada mais é do que o agente universal, é o fogo eterno da vida terrestre, é a Alma do Mundo, e o fogo vivo do inferno.[6]
É interessante notar que no Corpus Hermeticum (Livro XI) o deus alexandrino dos teurgos,[7] Aion (que é iconograficamente parecido com Baphomet), é apresentado como o deus da permanência e da imortalidade, o deus do tempo fora do tempo e que abrange todos os tempos (presente, passado e futuro), i.e. o tempo eterno, o ciclo contínuo e cíclico da vida e a eternidade. Ele é uma figura que transcende a noção linear de tempo (Kronos) e representa a infinitude e a perpétua renovação. Em resumo, Aion é uma divindade que representa o conceito do tempo eterno e a noção de eternidade, transcendendo a percepção humana do tempo linear. Sua interpretação pode variar em diferentes culturas e contextos, mas geralmente está ligada à ideia de um tempo infinito e cíclico. Os gregos associam esse tempo eterno (Aion) para além do tempo quebrado (Kronos) a um tempo verbal chamado aoristo. Exemplo: a queda do homem no hermetismo tradicional se dá nesse tempo aoristo, i.e. é uma queda perene, constante, que está indeterminadamente acontecendo, o tempo todo, todos os tempos, e para além do tempo.
Como descrito no Corpus Hermeticum (Livro XI, Verso 4), Aion é categoricamente associado a Alma do Mundo, que a tudo contém e perpassa: e todas as coisas através do aion.[8] Esse verso começa dizendo que todo engendramento, i.e. a capacidade divina de criação e, portanto, a interferência divina e astral[9] na região elemental sublunar, depende de Aion. Como vimos no meu livro Ganga,[10] é por meio de Maioral como o ambiente mágico da Quimbanda, a manipulação dos vetores de força ódica dentro da Luz Astral, que a capacidade de engendrar, quer dizer, criar através do ato da magia, é possível.
Tenho demonstrado em inúmeras oportunidades que a Quimbanda apresenta muita sincronia e dialoga profundamente com o Corpus Hermeticum. O Maioral da Quimbanda como compreendido nas vertentes derivadas do tronco tradicional de Quimbanda, a Alma do Mundo, pode ser comparado a Hécate dos Oráculos Caldeus, ao Aion do Corpus Hermeticum, ao Diabo da feitiçaria ibérica, assim como das tradições fáustica e cipriânica.
Existem alguns ditados na Quimbanda que vêm da cultura yorùbá,
ou melhor, são adotados em releituras regionais diversas, como: Exu trabalha no
seu próprio tempo; ou Exu trabalha com um pé no tempo e outro fora do tempo;
outra versão diz que Exu trabalha com um pé no caos e o outro na ordem. Enfim,
essas expressões e outras similares a essas derivam diretamente de um oríki de
Èṣú òrìṣà onde se diz que Èṣú matou um pássaro ontem com a pedra que ele jogou
hoje. De Èṣú òrìṣà, o Exu-Diabo da Quimbanda herda a virtude de andar fora do
tempo linear; o tempo de Exu é, portanto, aoristo, i.e. um tempo para além do
passado, presente e futuro, perene. Ele é um agente mágico universal que opera
dentro do corpo de Maioral, a Alma do Mundo. A magia na Quimbanda, portanto, não
funciona dentro da perspectiva de um tempo cronológico; deve-se pensá-la como
uma ação em aoristo, i.e. a magia se dá simultaneamente para todos os tempos e
para além do tempo. No livro Ganga[11]
explico com riqueza de detalhes o modus operandi de Exu no que se refere a sua
ação mágica no Corpo do Chefe Império Maioral.
Táta Nganga Kamuxinzela
[1] Veja Humberto Maggi. Rainhas da
Quimbanda. Via Sestra, 2020. Esse é um dos melhores livros em português sobre a
conexão ou herança na Quimbanda dos cultos iniciáticos e de mistérios do
Mediterrâneo, Oriente Médio e África. Veja também Tadeu Mourão. Encruzilhadas
da Cultura. Aeroplano, 2012.
[2] Fernando Liguori. Daemonium (Vol.
1). Clube de Autores, 2019.
[3] Hermes Trimegistos. Corpus
Hermeticum Graecum. David Pessoa de Lira (Org.). Pensamento, 2023, pp. 197.
[4] Fernando Liguori. Ganga: a
Quimbanda no Renascer da Magia. Clube de Autores, 2023.
[5] Fernando Liguori. Daemonium (Vol.
2). Clube de Autores, 2022.
[6] Eliphas Levi. Dogma e Ritual de
Alta Magia. Madras, 2019, pp. 66. Veja Fernando Liguori. Ganga: a
Quimbanda no Renascer da Magia. Clube de Autores, 2023, pp. 217.
[7] Aion é considerado o deus dois teurgos
porque o objetivo da teurgia é promover o estado apoteótico de permanência e
imortalidade da alma.
[8] Hermes Trimegistos. Corpus
Hermeticum Graecum. David Pessoa de Lira (Org.). Pensamento, 2023, pp. 199.
[9] Astral aqui é referência a astros, i.e.
corpos celestes: Sol, Marte, Vênus etc.
[10] Fernando Liguori. Ganga: a
Quimbanda no Renascer da Magia. Clube de Autores, 2023, pp. 217.
[11] Fernando Liguori. Ganga: a
Quimbanda no Renascer da Magia. Clube de Autores, 2023, pp. 241.