Existe uma discussão sobre a distinção entre Quimbanda como sistema religioso e Quimbanda como prática mágica, e dessa discussão nascem dúvidas recorrentes que vez ou outra suscitam debates. A oposição entre a ideia de religião e a prática da magia é moderna, muito embora tenha suas raízes na Antiguidade. Em culturas religiosas arcaicas como as dos egípcios, dos caldeus ou dos africanos, não há qualquer distinção entre religião e magia. Marvin W. Meyer em seu livro Ancient Christian Magic: Coptic Texts of Ritual Power, propõe que a palavra ritual seja uma alternativa utilizada como uma síntese das concepções mágicas e religiosas. Ele diz:
Um termo mais útil e menos carregado de valor do que magia ou religião, que estudioso após outro está começando a propor é ritual. Nós, seres humanos, em nossas práticas de adoração, fazemos rituais em todos os lugares, em todas as partes do mundo e em todos os tipos de sociedades. Os textos deste volume, embora variem de vingança hostil a aprimoramento pessoal, de ascensão transcendente a divinação, têm um fator comum: são textos rituais. Eles orientam o operante a se envolver em atividades que são diferentes da atividade secular, ajustando o comportamento através de regras, repetições e outras formalidades. Instruções rituais percorrem esses textos. Fique aqui, segure um seixo, amarre sete fios em sete nós, diga os nomes sete vezes, desenhe a figura no fundo do copo, escreva o feitiço com o dedo de uma múmia, escreva-o com sangue de morcego, com sangue menstrual, em papiro, no dia, em chumbo, em lata, em um osso de costela, em um pergaminho em forma de espada, dobre-o, queime-o, amarre-o ao seu braço, seu polegar, coloque um prego nele, enterre-o com uma múmia, enterre-o sob a porta de alguém, misture esta receita e beba, ou simplesmente faça o de sempre.[1]
A ideia é que seja lá o que a palavra ritual possa
implicar nos termos da religião ou da magia,[2] trata-se sempre
da manipulação de um tipo de força ou poder espiritual. E a Quimbanda se trata
disso!
Naomi Janowitz em seu livro Icons of Power: Ritual
Practices in Late Antiquity vai nessa mesma direção quando examina os rituais
praticados por magos e sacerdotes na Antiguidade. Ela diz: Todos os rituais
dependiam de uma aliança com poderes sobre-humanos. Uma vez manifestado na
terra, o poder divino poderia ser usado para tudo, desde liquidar uma conta
antiga até mudar a própria natureza da existência terrena.[3]
Em outras palavras, taumaturgia, o efeito milagroso da magia. Quando nós
dizemos que o objetivo da Quimbanda (no contexto da vida de seus iniciados) é o
aperfeiçoamento da arte de fazer magia, é exatamente sobre isso que falamos: a
aptidão que se requer para manipular e dar direção ao poder.
A concisa introdução e a coleção de textos coptas selecionados por Marvin W. Meyer em seu livro é interessante para nós da Quimbanda: quando me debrucei sobre o tema da magia cipriânica no segundo volume do Daemonium, citei que a magia copta do Egito se desenvolveu na mesma região e no mesmo período do mito de São Cipriano, mago e feiticeiro, daí muitas semelhanças entre a magia cipriânica, a magia copta egípcia e a magia da Quimbanda, que muito herdou da magia cipriânica no primeiro momento do culto no Brasil. Neste livro de Meyer isso pode ser averiguado profundamente. No contexto ainda da distinção entre religião e magia, o autor diz:
[No livro] temos misticismo transcendente, bem como uivos ctônicos, mas separá-los às vezes é difícil; quanto mais de perto esses textos são realmente lidos, mais difícil de manter qualquer distinção entre piedade [i.e. misticismo] e feitiçaria. Os próprios textos, como apontamos nas notas, raramente usam a palavra mageia, ou outras palavras gregas e coptas que traduzimos como magia e feitiçaria. Os textos são frequentemente invocações dos poderes [sobre-humanos] para proteger o indivíduo da magia, da feitiçaria e contra o mau-olhado. Os usuários, portanto, não se consideravam praticantes de magia, que consideravam ser um termo negativo. Os termos de descrição positiva que eles usam, phylakterion e apologia, i.e. amuleto e feitiço, significam tecnicamente apenas proteção e defesa. Como os rituais são um meio de lutar contra o ataque mágico, magia não parece uma descrição adequada.[4]
Essa passagem no contexto de nossa discussão, se a
Quimbanda é magia ou religião, é interessante porque encontramos na sociedade
moderna contemporânea os reflexos dicotômicos que já existiam na Antiguidade.[5] Como citei no
primeiro volume do Daemonium, não existiu qualquer momento na história do
Ocidente em que magos e feiticeiros fossem bem vistos pela sociedade. Assim
como o goēs (feiticeiro) grego era considerado um indivíduo manganeumata das
sombras na Grécia já no período da pólis, quando do declínio da Religião Antiga
como postula Fustel de Coulanges (1830-1889)[6] ou Religião
Natural como nos fala Jake Stratton-Kent (1956-2023),[7]
de igual modo o feiticeiro da Quimbanda é considerado um sujeito execrável de
práticas sombrias antinomianas, demoníacas e baixas; ele é adorador do Diabo e,
portanto, um bruxo, pária social. É aqui que o Kimbanda é acusado de ser apenas
um feiticeiro, não um religioso.
Na sociedade brasileira a Quimbanda dificilmente será
considerada uma religião. No livro Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia, eu
demonstrei que a Quimbanda tornou-se guardiã da sabedoria mágico-crioula da
África, sendo esta rejeitada pela Umbanda branca em sua busca por validação
social como genuína religião brasileira. A Quimbanda ficaria, naquele período,
relegada as sombras, praticada as escondidas. No entanto, às escuras e
paulatinamente, a Quimbanda como culto de feitiçaria e magia desenvolveu um
intricado sistema religioso.
Como um sistema religioso, a Quimbanda se enquadra dentro
das concepções moderna e arcaica da religião. Sobre as concepções modernas,
autores como Mircea Eliade (1907-1986)[8] e Claude
Lévi-Strauss (1908-2009)[9] concordam que a
religião é formada a partir de regras e que sua estruturação sistemática deve
conter elementos essenciais como cosmogonia, antropogonia, cosmologia,
teologia, ontologia, soteriologia e escatologia. Desde o início do segundo
momento da Quimbanda no Brasil,[10] a partir de
1950 e a síntese promulgada por Aluízio Fontemelle (1913-1952), a Quimbanda
desenvolveu todos esses elementos no seu sistema. Então sob a perspectiva
moderna da religião, a Quimbanda se trata de um sistema religioso sim. Nas
minhas duas obras, o segundo volume do Daemonium e Ganga: a Quimbanda no
Renascer da Magia, abordo inúmeros aspectos cosmológicos, cosmogônicos, antropogônicos,
escatológicos, teológicos, ontológicos e soteriológicos da Quimbanda.
Na perspectiva da Religião Antiga como propõe Fustel de
Coulanges ou da Religião Natural como propõe Jake Stratton-Kent, a Quimbanda se
trata de uma religião ctônica, conectada a fórmula mágica universal do espírito
tutelar, i.e a veneração dos espíritos dos mortos como deuses ctônicos
deificados e, a partir deste processo, a catábase[11]
da alma; na cultura greco-romana estes eram os manes, reverenciados em um culto
ancestral e familiar. É neste sentido que a Quimbanda é goécia brasileira.[12] Como demonstra
Sarah Iles Johnston,[13] a goécia era a
prática necromântica tradicional dos feiticeiros gregos já no tempo das pólis,
cujos rituais convocavam os mortos sem descanso,[14]
capazes de sair do cativeiro do Submundo e interferir na vida dos homens.
Originalmente, muito tempo antes da interpretatio
christiana[15] no período da
Antiguidade tardia, onde goécia foi atribuída a convocação de demônios e disso
derivou toda recessão salomônica posterior, goécia se tratava da prática de
feitiçaria para convocação dos mortos sem descanso, que podiam agir na vida e
dia-a-dia das pessoas.[16] Antes disso, a
religião ou o culto mais antigo entre os gregos foi a reverência familiar aos
mortos deificados. Quando esse culto, a Religião Antiga, passou a ser rechaçada
e condenada pela religião dos deuses olímpicos, aristocracia e Estado grego, é
que nasce o goēs e sua arte, a goécia.[17]
Na Grécia já no período da pólis, todo tipo de culto religioso não sancionado
pelo Estado era chamado de goécia.[18]
No Fédon[19] Platão diz que o Submundo é onde a verdade se revela, onde os deuses habitam. Em Platão a alma transcendente vai para o Submundo, um processo órfico de catábase no mundo dos mortos. Isso está em sincronia com a cosmogonia, cosmologia e antropogonia da cultura banto, que provê o pano de fundo cosmológico da Quimbanda, onde toda essa jornada ao Submundo ocorre como demonstrado nos ciclos da dikenga.[20] Fu-Kiau diz:
Depois de cruzar a linha de kalunga, o portal em direção a ku mpemba (o mundo inferior), o morto, isto é, o corpo transformado, também cresce de modo a alcançar a posição de musoni e tornar-se um verdadeiro conhecedor do que está marcado na mente e no corpo.
A posição de musoni é associada à noção de ndoki, o conhecedor dos princípios e sistemas humanos, n’kîngu ye bimpa, dos níveis mais elevados – kindoki ou ciência do mais elevado conhecimento. A manipulação desses n’kîngu ye bimpa – princípios e sistemas – permitiu, dizem os Congo, ajudar o ndoki a se tornar uma pessoa alada [i.e. deificada], alguém que voa.
Musoni representa a cor amarela, a qual se acredita ser associada ao conhecimento. Em uma cerimônia iniciática que conduz às coisas mais profundas, um iniciador, ngânga, começará o seu rito dizendo: Ntete mpèmba mbo’ musoni kalânda. Na cerimônia da passagem descendente, primeiro vem luvemba, depois, musoni – o amarelo -, o que lembra o ngânga de que as coisas devem ser feitas em sua ordem natural. Não se vai além, nesse mundo inferior, ku mpemba, sem se passar por luvemba, a barreira da morte, o portal para ela.[21]
A deificação da alma na Quimbanda, a catábase do kimbanda,
começa no momento do rito de iniciação e é coroada no seu rito de passagem
funeral. Como disse no início, ao homem do Mundo Antigo não fazia sentido algum
separar a magia da religião; e mesmo quando houve algum tipo de separação, não
se tratou de uma negação da magia por si mesma em detrimento da religião, mas
do repúdio a magia não sancionada pelo Estado e aristocracia grega. Em nossa
sociedade brasileira repetimos esse padrão: assim como a goécia era uma prática
religiosa marginalizada na pólis grega. De igual modo a Quimbanda sempre estará
à margem da ideia de religião popular no Brasil.
A Quimbanda é um culto mágico-religioso brasileiro. É magia e é religião!
Táta Nganga Kimbanda Kamuxinzela
[1] Marvin W. Meyer. Ancient Christian
Magic: Coptic Texts of Ritual Power. Princeton University Press, 1999, pp. 4.
[2] Um panorama abrangente das especulações
acadêmicas mais conhecidas sobre magia, veja Derek Collins. Magia no Mundo
Grego Antigo. Madras, 2009, pp. 17-50.
[3] Naomi Janowitz. Icons of Power:
Ritual Practices in Late Antiquity. PENN State Press, 2002, pp. xi.
[4] Marvin W. Meyer. Ancient Christian
Magic: Coptic Texts of Ritual Power. Princeton University Press, 1999, pp. 2.
[5] O Mediterrâneo na Antiguidade tardia
foi o palco de uma acirrada disputa por poder e autoridade ritual. Disso
cristalizou-se a ideia de feitiçaria (goēteia) como oposta ao trabalho dos
deuses (theourgya) e diferente do trabalho sacerdotal persa (mageia). Além das
guerrilhas por território entre judeus, gnósticos e cristãos. Veja Fernando
Liguori. Daemonium Vol. 1. Clube de Autores, 2019. Veja também Heidi
Marx Wolf. Spiritual Taxonomies and Ritual Authority: Platonists, Priests
and Gnostics in the Third Century C.E. PENN, 2016.
[6] Fustel de Coulanges. A Cidade
Antiga. Martin Claret, 2009.
[7] Jake Stratton-Kent. Geosofia. Vol.
1. Scarlet Imprint, 2023. Nessa obra Kent faz distinção entre a Religião
Natural (ctônica) e a Religião Revelada (celestial). Nos últimos dois mil anos,
nossa civilização viveu com as suposições inerentes à Religião Revelada. As
civilizações da Grécia Clássica, e todas as outras civilizações do Mundo
Antigo, foram construídas ou sobrepostas a uma tradição de milhares de anos do
que é conhecida como Religião Natural. Enquanto a Religião Revelada é entregue
do alto por uma revelação – frequentemente representada por um Livro – a
Religião Natural é construída de baixo, a partir das raízes ancestrais de um
povo ou cultura, sendo o resultado da observação e interação com a Natureza,
incluindo forças sobrenaturais ou numinosas. A Religião Natural, que
compartilha profundas semelhanças com a Quimbanda, é orientada pela visão
encantada de Mundo, àquela postulada e defendida por Antonie Faivre (1934-2021)
na obra Modern Esoteric Spirituality (Crossroad, 1992, pp. xv–xx).
Teci um esboço sobre os teoremas de Faivre no texto A Quimbanda & o
Ocultismo Moderno.
[8] Mircea Eliade. Dicionário das
Religiões. Martins Fontes, 2019.
[9] Claude Lévi-Strauss. Antropologia
Estrutural. Ubu Editora, 2018.
[10] Sobre o segundo momento da Quimbanda
no Brasil veja Fernando Liguori. Daemonium (Vol. 2). Clube de
Autores, 2019.
[11] Descida ou jornada no mundo dos mortos,
o Submundo (ou inferno) e o processo ctônico de deificação da alma por meio da
anábase (ascenção).
[12] Veja o artigo Quimbanda é Goécia
Brasileira.
[13] Sarah Iles Johnston. Restless
Dead: Encounters between the Living and the Dead in Ancient Greece. University
of California Press, 1999.
[14] Ibidem.
[15] Humberto Maggi. Goetia: História
& Prática. Clube de Autores, 2020, pp. 56.
[16] Ibidem, pp. 22.
[17] Veja o artigo Quimbanda é Goécia
Brasileira.
[18] No segundo volume do Daemonium e
no Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia, bem como na Revista Nganga, eu
disserto sobre a goécia grega.
[19] Platão. Fédon. Ed.Ufpa, 2011.
[20] A dikenga é uma representação gráfica
do sistema antropogônico, cosmológico e cosmogônico dos bantos.
[21] Fu-Kiau, Ph.D. African Cosmology
of the Bantu-Kongo: Principlas of Life & Living. African Tree Pree, 2001,
pp. 33-4.