No livro Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia,[1] eu tracei a
gênese da Quimbanda me baseando na história, nos acontecimentos reais dos
fatos: a Quimbanda começa a se delinear como sistema operacional de magia
vinculado a uma estrutura iniciática de ascensão hierárquica e modus operandi
próprio a partir de Lourenço Braga em 1942,[2] tomando logo em
seguida a forma moderna que conhecemos hoje a partir da síntese realizada por
Aluízio Fontenelle em 1952,[3] que abriu os
portais que permitiram a incursão diabólica dos espíritos do Grimorium Verum na
Quimbanda.[4] Antes de
Lourenço Braga a palavra kimbanda era associada a um indivíduo, o feiticeiro,
não a um sistema de magia ou sistema religioso próprio, não a uma tradição.
Prova disso é a matéria apresentada no Jornal Crítica No.
47, publicada em 13 de janeiro de 1929, intitulada Os Mistérios da Mandinga,
por Francisco Guimarães (1880-1946), jornalista e dramaturgo carioca. O artigo
tratava dos feiticeiros que resolviam os casos particulares de D. Pedro I, a
maioria deles sendo casos amorosos. Segundo o autor, foi por incentivo do
próprio D. Pedro I que a feitiçaria entrou e se espalhou no Brasil: ele teria
mandado vir um navio só de feiticeiros para o Brasil em 1820, que se espalharam
por todo território brasileiro, e que eram obrigados a lhe atender quando
fossem chamados. Ele diz: Desta época em diante, a mandinga começou a ter
grande desenvolvimento no Brasil inteiro, e começaram a proliferar os
quimbandeiros, os mandigueiros.[5] Nessa matéria de
1929 a palavra quimbandeiro é conectada a um indivíduo, o feiticeiro. São os
descendentes destes feiticeiros os agentes por trás dos Calundus, das Cabulas e
das Macumbas.
Essa matéria foi reproduzida por Diamantino Fernandes
Trindade no nono volume de sua coleção História da Umbanda no Brasil, onde ele
se refere na página 16 a estes feiticeiros trazidos ao Brasil por D. Pedro I em
1820 como a caravana negra, referência a caravana de feiticeiros que
acompanhavam o Imperador do Brasil em suas viagens. E como demonstrei no Ganga:
a Quimbanda no Renascer da Magia, Roger Bastide (1898-1974) em As Religiões
Africanas no Brasil de 1960, e Nina Rodrigues (1862-1906) em Os Africanos no
Brasil de 1932, usam o termo kimbanda como referência aos feiticeiros de modo
geral e, às vezes, aos chefes da Macumba. Os mesmos feiticeiros citados por
João do Rio (1881-1921) em sua coleção de artigos: As Religiões do Rio, de
1900. Como diz o ponto:
Coitado de Pai Antônio
Preto Velho curadô
Foi parar na detenção
Por não ter um defensor,
Pai Antônio é Kimbanda, ele é curadô.[6]
Esse ponto cantado é representativo por muitos motivos.
Ele tanto reflete o imaginário da época quanto o drama de perseguição ao qual
sofriam os feiticeiros, desde o Período Colonial até a Nova República. Mas o
que nos importa aqui é que a palavra kimbanda, neste período até as Macumbas
cariocas, era associada a um individuo, como o Chefe das Macumbas, Juca Rosa,
considerado o kimbanda mais influente do Séc. XIX, também conhecido como senhor
das forças sobrenaturais. Por volta de 1870, Juca Rosa era uma celebridade
nacional; ele trabalhava com um espírito que se apresentava como Pai Quibombo,
e a descrição de suas roupas sacerdotais, preta e vermelha, bem como o modus
operandi de seu culto, com uso de canto, sacrifício e incorporação mediúnica,
lembram os atuais toques de Quimbanda.
Note que o período em que este artigo de Francisco
Guimarães foi veiculado, também foi o mesmo período em que a primeira
literatura de Umbanda estava sendo publicada por Leal de Souza (1880-1948),
sendo O Espiritismo, a Magia e as Sete Linhas de Umbanda, de 1930. Neste livro,
é interessante notar, Leal de Souza relata um Exu falando normalmente,
demonstrando fundamentos, e realizando taumaturgia dentro de uma sessão. Um
relato anterior e muito distinto dos autores umbandistas que o sucederam e que
descreveram os Exus nas situações mais humanamente degradantes possíveis,
degradados como espíritos involuídos.
Seja como for, a partir de 1942 o exercício individual de
feitiçaria do kimbanda começa a se delinear como um sistema magístico de
comunicação com Exu e Pombagira, assumindo como deidade tutelar ou grigori do
culto o Chefe Império Maioral, o Rei do Inferno. Nascia os primeiros rabiscos
da Quimbanda como um sistema mágico nigromântico, i.e. um sistema de
necromancia diabólica e demoníaca, que só foi se concretizar na década de 1950
com a síntese de Aluízio Fontenelle.
No primeiro volume da coleção História da Umbanda no
Brasil, Diamantino Fernandes Trindade provê uma interessante categorização,
porque retrata a realidade dos fatos: na página 426 ele diz que não se deve
confundir Kimbanda, a prática magística dos bantos, com Quimbanda, o culto
afro-brasileiro que miscigena a magia dos bantos com a magia negra europeia; e
que as entidades que respondem nesse culto são feiticeiros, malandros,
mercadores e pessoas comuns.
Muitos africanistas negam a miscigenação mágico-cultural
que ouve entre os Exus da Macumba carioca, então rebatizada de Quimbanda por
Aluízio Fontenelle em 1952, com os demônios do Grimorium Verum, referido por
MacGregor Mathers (1854-1918), um dos fundadores da Ordem Hermética da Aurora
Dourada, como um livro cheio de magia maligna.[7] A.E. Waite
(1857-1942), considerado o mentor e autor pioneiro do renascer da magia[8] que ocorreu no
fim do Séc. XIX, diz que o Grimorium Verum é um autêntico livro de magia negra,[9] e suas
conclusões tiveram um impacto profundo nos sistemas derivados do moderno renascer
da magia, todos desencantados, como expliquei no artigo Quimbanda: a Goécia
Tradicional Brasileira, a ser publicado na Revista Nganga No. 10.
A despeito do que negam os africanistas, como eu
demonstrei com abundância de fontes no segundo volume do Daemonium, os
grimórios de feitiçaria europeia, tanto os eruditos quanto os populares,
tiveram amplo impacto nas culturas das Américas e do Caribe. Estes grimórios
mágicos chegaram nestes territórios com os primeiros imigrantes.[10] Por exemplo, pouquíssima
atenção é dada a cultura africana cristianizada de Portugal, que influenciou a
feitiçaria ibérica e sua chegada ao Brasil no período colonial. Desde sua
fundação no Séc. XII, existia a presença de africanos em Portugal e, por volta
de 1500, eles já constituíam 10% da população total do país, sendo eles
escravos, alforriados e pessoas livres. Devido à sociedade da época, esses
africanos em Portugal não conseguiam se organizar a fim de estruturarem um
culto coeso e estabelecido aos moldes africanos tradicionais. Eles operavam
magicamente, portanto, em grupos secretos, às escondidas, as margens de Lisboa,
por meio de indivíduos, feiticeiros e curandeiros. Influenciados pelo
catolicismo tradicional ortodoxo e pelo catolicismo popular mágico de O Livro
de São Cipriano, esses africanos gradualmente e naturalmente por iniciativa
própria começaram a inserir pequenas práticas rituais católicas no seu acervo
de trabalhos rituais, amalgamando a magia crioula africana a feitiçaria
ibérica.
Entre os Sécs. XV e XVII, esses africanos começaram a
aparecer nos tribunais contra bruxaria estabelecidos pela Inquisição. Como
demonstrei no segundo volume do Daemonium os tribunais portugueses foram muito
mais amenos com as feiticeiras do que o resto da Europa, porque estavam mais
preocupados com os judeus e a influência de suas crenças na comunidade católica
portuguesa. Os africanos, assim como as feiticeiras, foram beneficiados no
sentido de não sofrerem sansões e condenações que envolviam tortura ou morte. A
maioria dos africanos era julgada como cristãos, muito embora não o fossem
efetivamente. E assim como as feiticeiras brancas, eles eram acusados de
infrações menores, como a transgressão aos dogmas da Igreja, que assumiam terem
sido causadas pela influência do Diabo e não por idolatria a ele. Isso
significava que eles ainda poderiam ser salvos, tendo apenas se desviado da
ortodoxia religiosa católica. Ao contrário dos judeus hereges, eles poderiam se
livrar de penas mais duras apenas se arrependendo e confessando o erro.[11] Esses africanos
cristianizados também chegaram em solo brasileiro, já trazendo de Portugal a
feitiçaria crioula africana hibridizada com a feitiçaria ibérica popular.
O que os africanistas não sabem, uma lição de história:
quando falamos em grimórios de feitiçaria europeia, existem dois gêneros, os
eruditos aristocratas, e os populares folclóricos. Ambos se influenciaram
mutuamente e é possível encontrar miscigenações. Esse gênero popular dos
grimórios deriva do que ficou conhecido em francês como Bibliothèque Bleue
(biblioteca azul), e são chamados de grimórios azuis, pelo fato de serem
publicados no formato brochura com uma capa azul, de material barato e preço
popular acessível. Neste gênero de grimórios entram o Grimorium Verum, o Grand
Grimoire e o Honorius, dentre outros.
Três pontos importantes sobre esse gênero de grimórios franco-italianos: i. são eles que, em verdade, inauguram a ideia da palavra grimório estar associada a livros de instruções magísticas; ii. são eles os grimórios que mais se espalharam para fora da Europa e; iii. segundo Owen Davis, são eles os grimórios que mais se crioulizaram, se miscigenando com as práticas de feitiçaria ameríndia das Américas e Caribe, e com as técnicas de feitiçaria africana disaspórica. Davis diz que a colonização, a escravidão e o trabalho de imigrantes no Caribe e nas Américas geraram uma fusão fascinante e diversificada de crenças e práticas em relação à religião, magia e medicina, derivadas de europeus, africanos, asiáticos e indígenas. Ele nomeia os cultos derivados dessas fusões: o Obeah, o Quimbois, o Vodu, a Santeria, entre outros.[12]
O aspecto folclórico dos grimórios em ambos os casos, mas particularmente nos livros azuis, é bastante diferente. Envolve sobrevivências da goécia e, no caso do gênero azul, um renascimento da goécia. Sua natureza é essencialmente ctônica, e as relações com espíritos são realizadas em uma base bastante diferente. [...] O gênero azul obtém essa identidade através de uma variedade de meios, e nenhum deles é inteiramente responsável. Estes incluem, em primeiro lugar, a continuidade da vertente hermética dentro da tradição Salomônica, onde os daimones elementais são vistos mais positivamente [...].
Há então a questão das novas afiliações formadas pelo gênero. Enquanto os grimórios franceses desta época tinham uma influência muito além da França, o gênero do grimório impresso como um todo deveria exercer uma influência para muito além da Europa. O mais cabalístico de todos, O Livro de Moisés, certamente influenciou o Hoodoo nos Estados Unidos, mas não concerne ao São Cipriano ou às fusões goéticas dentro de tradições como a Kimbanda. O primeiro é melhor ilustrado pelos grimórios ibéricos e o último pelos textos franco-italianos, como o Grimorium Verum e o Grand Grimoire. [...] Estes textos ibéricos incorporam o renascer da goécia acima mencionado, em comum com os franco-italianos da Bibliothèque Bleue. [...] Também é importante reconhecer sua influência e harmonia com as tradições vivas e prósperas no Novo Mundo.[13]
Jake Stratton-Kent (1956-2023) explica que essa fusão dos
grimórios populares com as tradições afro-diaspóricas e ameríndias trata-se de
uma nova síntese da magia, um renascer da goécia em seu sentido amplo e
pré-salomônico. Segundo ele em sua Encyclopaedia Goetica, de cinco volumes,[14] a goécia é uma
tradição viva universal e que vivifica toda a magia ocidental. Uma vez que a
goécia como corrente mágica vivifica os grimórios ctônicos noturnos como o Grimorium
Verum, e que também permeia os diversos cultos ancestrais necromântico-ctônicos,
foi isso o que possibilitou essa profunda fusão entre as culturas africana,
europeia e ameríndia. A Quimbanda é fruto, portanto, dessa nova síntese da
magia, onde a feitiçaria crioula-ameríndia funde-se com os espíritos noturnos e
sub-lunares do Grimorium Verum em um sistema próprio e original que supera as
técnicas e tecnologias formais da magia cerimonial tradicional.
Então vamos concordar e corroborar com Diamantino
Fernandes Trindade que vê a Quimbanda como tradição afro-brasileira de magia
negra que miscigena a magia dos bantos com a magia europeia dos grimórios
noturnos. É perfeita essa definição, deixando o termo kimbanda hora para o
feiticeiro, hora para as vertentes africanistas que se separam dessa
miscigenação com a magia negra dos grimórios europeus. Colocando dessa forma, a
história é respeitada e o idealismo histórico defendido pelos africanistas, que
dizem não existir essa miscigenação magística, é superado.
Táta Nganga Kamuxinzela
[1] Fernando
Liguori. Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia. Clube dos Autores, 2023.
[2]
[3]
[4]
[5] Francisco Guimarães. Os Mistérios da
Mandinga. Jornal Crítica No. 47, 1929. Republicado em Diamantino Fernandes
Trindade. História da Umbanda (Vol. 9). Editora do Conhecimento,
2018, pp. 58-62.
[6] Em Diamantino Fernandes Trindade. História
da Umbanda (Vol. 1). Editora do Conhecimento, 2014, pp. 425.
[7] Citado por Jake Stratton-Kent. The
True Grimoire: Encyclopaedia Goetica. Vol. 1. Scarlet Imprint, 2022, pp. 3.
[8] Occult revival, traduzindo livremente
como renascer da magia, nome pelo qual foi conhecido no Brasil a partir da obra
de Kenneth Grant (1923-2011) de 1972, com o mesmo título, publicado primeiro
pela Editora Madras (década de 1990) e posteriormente pela Editora Penumbra
(década de 2010). O renascer da magia foi um movimento de reavivamento do
Ocultismo e as matérias de estudo, bem como as escolas de iniciação que o
compõem, no fim do Séc. XIX. Arthur Edward Waite (1857-1942) é considerado o
mentor e autor pioneiro deste renascer da magia. Não confundir com o renascer
moderno da magia dos grimórios, que venho me debruçando em meus livros
anteriores e artigos para Revista Nganga.
[9] Citado por Jake Stratton-Kent. The
True Grimoire: Encyclopaedia Goetica. Vol. 1. Scarlet Imprint, 2022, pp. 3.
[10] Veja Owen Davies. Grimoires: A
History of Magic Books. Oxford University Press, 2009.
[11] José Leitão, The Book of St.
Cyprian: the Sorcerer’s Treasure. Hadean Press, 2014, pp. xxi.
[12] Owen Davies. Grimoires: A History
of Magic Books. Oxford University Press, 2009, pp. 155-6.
[13] Jake Stratton-Kent. The Testament
of Cyprian the Mage. Vol. 1. Scarlet Imprint, 2014, pp. 2-5.
[14] Scarlet Imprint, 2010-2023.