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EXU-DIABO


Por Táta Nganga Kamuxinzela

@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago

Nos meus dois últimos livros, o segundo volume do Daemonium[1] e Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia,[2] eu esclareci o processo de diabolização de Exu nos dois momentos[3] da Quimbanda no Brasil: o colonial e o moderno. No período colonial, seu primeiro momento, o òrìṣà Èṣú da África yorùbá chega ao Brasil diabolizado; no período moderno, seu segundo momento, Aluízio Fontenelle (1913-1952) estabelece uma síntese entre os Exus da Macumba carioca,[4] a diabologia e demonologia europeia, possibilitando a incursão diabólica que inaugura a Quimbanda como sistema nigromântico[5] brasileiro. 

Essa diabolização ocorrida nos dois momentos da Quimbanda no Brasil, com toda história que eles encerram, foram fundamentais para cristalizar no imaginário brasileiro Exu como Diabo. Como vimos por diversas vezes na Revista Nganga, no primeiro momento o Èṣú yorùbá diabolizado dos Candomblés influenciou a formação do Exu diabolizado das Macumbas cariocas. Os estudiosos dizem que se tratou de uma diabolização que ocorreu de fora para dentro da cultura afro-brasileira (e africana de modo geral), porque começou quando os cristãos associaram a divindade yorùbá Èṣú diretamente ao Diabo no Séc. XIV, quando os portugueses chegaram na África. Então quando Èṣú chega ao Brasil no Séc. XIX, por um lado com os primeiros africanos yorùbás trazidos da África e por outro com os africanos cristianizados que viviam em Portugal e que vieram para o Brasil, Èṣú òrìṣà já chega Diabo aqui, influenciando inúmeros Candomblés a atribuir a Èṣú contornos diabólicos, o que chegou até as Macumbas. No segundo momento esse Exu diabolizado das Macumbas cariocas é associado diretamente aos demônios de um grimório necromântico chamado Grimorium Verum, um livro de magia nigromântica do Séc. XVIII. Essa diabolização, por outro lado, ocorreu de dentro para fora segundo os estudiosos, reforçando e impactando a ideia do Exu-Diabo brasileiro. 

Todo esse processo, que envolveu inúmeras tramas religiosas no tecido social do Brasil, configurou no imaginário brasileiro Exu como Diabo. Essa diabolização, por outro lado, ocorreu dentro dos padrões tradicionais de formação de uma estrutura religiosa: a criação de um mito e sua reverberação no dia-a-dia das pessoas e, portanto, com impacto direto na cultura. Todo processo de estruturação religiosa se fundamenta sobre a criação de um mito, usualmente espelhado dentro de uma estrutura ritual ou liturgia. Em um material que produzi para o Oráculo das Sete Linhas de Umbanda & Quimbanda, escrevi: 

Existe nos dias de hoje um grande esforço acadêmico em compreender a ação ritual, como distinta da ação secular, bem como a mecânica fundamental pela qual o ritual opera e tem ou não eficiência. Essa discussão não foi diferente na Antiguidade: o poder do ritual era tanto discutido pelas autoridades do Estado quanto pelos filósofos e religiosos da época, porque assim como o ritual têm o poder de sincronizar a alma com a demiurgia do cosmos no exercício do acesso divinatório, de igual modo ele tem o poder de manter a coesão sociocultural (quando publicamente e coletivamente executado). Nos mundos pré-cristão e pós-cristandade na região do Mediterrâneo o ritual foi explorado como ferramenta de coesão sociocultural, porque ele reforça dentro de um espaço sagrado os códigos fundamentais da cultura, seus valores éticos e morais, programando os costumes da sociedade. O ritual é tanto formativo quanto empoderador daqueles que nele participam, porque através do processo de ritualização o significado dos valores e «verdades» que informam e dirigem a realidade diária é moldado dentro de um espaço ritual. [...] O processo de significação da ação ritual é adiado para depois do rito, nas ações diárias no mundo por àqueles que nele participam, porque [...] o ritual é a «ação social mais fundamental».[6]

Através do ritual, portanto, um homem ou um coletivo de pessoas fazem afirmações e empreendem ações ritualizadas que, embora inicialmente possam ser metafóricas, afetam as ações não ritualizadas da vida secular. Os símbolos do ritual expressam uma linguagem de valores que é internalizada emocionalmente, tornando-se mais poderosa do que especulações racionais, o que define e programa as ações no mundo em um nível profundamente intuitivo. Através do ritual estes símbolos são projetados e reforçados na psique dos participantes, reforçando os valores socioculturais.[7]

Os rituais são estruturas que utilizam símbolos que têm relações complexas com os seus contextos de uso. Ou seja, eles podem «fazer coisas» no mundo que os circunda baseados em modelos de convenções sociais de eficácia. Colocar óleo em alguém, ou vesti-lo com um robe, recitar uma fórmula, colocar um cetro na mão de alguém – todas essas ações mudam o contexto no qual elas ocorrem. [...] A habilidade que os signos têm de afetar o contexto no qual eles são empregados depende das estruturas [culturais] nas quais eles são baseados.[8] Quer dizer, é a repetição das estruturas rituais a chave para que eles funcionem apropriadamente como agregadores socioculturais. Essa repetição constrói um eidolon na psique humana que espelha a estrutura-base do ritual, o tema central pelo qual ele foi construído e os padrões que deverão ser repetidos. Tome como exemplo o Ritual da Eucaristia na Missa Católica. O ato eucarístico relembra a cada indivíduo o evento sobre o qual sua estrutura e padrão foi construída. A eucarística aproxima cada um do evento original que ela pretende replicar, inserindo o indivíduo dentro da cosmovisão que ele deverá também replicar na sociedade. Nesse caminho, os rituais são construídos para estabelecer convenções, regras, padrões ou modelos de comportamento. 

O mito de Exu-Diabo que se estabeleceu na cultura e imaginário brasileiro por meio da síntese de Aluísio Fontenelle reverbera em todas as casas, famílias e templos de Quimbanda por meio de símbolos diversos: signos mágicos, pontos cantados, mecânica estrutural de rito etc. Até os mais puristas que negam a natureza diabólica de Exu, os branquinhos e pretinhos de saia e batom, reforçam esse imaginário inconscientemente em seus exercícios rituais. O slogan que eles têm construído, Exu não é Diabo, não é páreo para o Exu-Diabo de duzentos anos da cultura brasileira. Cada ação ritual derivada da abordagem tradicional da Quimbanda (que eles fazem sem saber, porque não conhecem a história, mas só o mimimi de vitimização sentimental), cada ponto cantado e cada signo desenhado, reforça Exu como Diabo, por mais que os menininhos da mamãezinha esperneiem. 

Exu é Diabo! 

Pouquíssima atenção é dada a cultura africana cristianizada de Portugal, que influenciou a feitiçaria ibérica e sua chegada ao Brasil no período colonial. Sobre isso escrevo em outra oportunidade.

 

Táta Nganga Kamuxinzela

 



[1] Fernando Liguori. Daemonium (Vol. 2). Clube de Autores, 2022.

[2] Fernando Liguori. Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia. Clube de Autores, 2023.

[3] Sobre os dois momentos da Quimbanda no Brasil veja Fernando Liguori. Daemonium (Vol. 2). Clube de Autores, 2022.

[4] Em seu livro, Exu (1952), Aluízio Fontenelle associa diretamente o termo Quimbanda as práticas realizadas na Macumba carioca. Em Fontenelle, Macumba e Quimbanda são sinônimos.

[5] A nigromancia é uma expressão medieval pejorativa derivada do termo grego necromanteia, i.e. necromancia, a comunicação com os espíritos dos mortos para fins de divinação e de magia (quando ganha também o epíteto de necrurgia). A nigromancia na Idade Média foi associada à prática de magia negra demoníaca e a todo tipo de tabu mágico-religioso da sociedade europeia do período. O termo nasce para condenar o exercício ritual de grimórios noturnos, i.e. que lidam com todo tipo de espírito sublunar, geralmente classificados como demônios. Veja os artigos Quimbanda é Goécia Brasileira e Quimbanda & o Ocultismo Moderno em Revista Nganga No. 10. Veja também os livros Daemonium Vol. 2 (Clube de Autores, 2022) e Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia (Clube de Autores, 2023). A Quimbanda é, declaradamente, o único culto nigromântico genuinamente brasileiro.

[6] Martha Rampton. Trafficking with Demons: Magic, Ritual, and Gender from Late Antiquity to 1000. Cornell University Press, 2021.

[7] A magia moderna definiu essa mecânica como ritual dramático. Considerados magicamente estéreis, os rituais damáticos não têm o poder de transformar a realidade material, mas de recodificar a estrutura da alma, que passará a imprimir no mundo, através das ações seculares, os valores expressados simbolicamente pelos ritos. Exemplos de rituais dramáticos nos dias de hoje são as cerimônias ritualísticas de ordens maçônicas e para-maçônicas.

[8] Naomi Janowitz. Icons of Power: Ritual Practices in Late Antiquity. The Pennsylvania State University Press, 2002.




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