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A TRANSMISSÃO DA CORRENTE MÁGICA DA QUIMBANDA

@tatakamuxinzela 

O tema da «iniciação a distância» apareceu no Grupo de Assinantes do Instagram e foi necessário esclarecer o valor da transmissão iniciática na Quimbanda. Desde 2020 eu digo: Quimbanda é tradição; tradição é transmissão. Trata-se de uma corrente de força mágica (moyo/àṣẹ/nguzo) transferida do mestre ao discípulo no curso da iniciação. A força mágica da Quimbanda é «plantada» o corpo do adepto que está sendo iniciado, porque «na Quimbanda nós só damos o que temos», diz o ditado. Isso não ocorre em um processo de «iniciação a distância» ou «autoiniciação». 

Na «iniciação a distância» o indivíduo recebe algum objeto consagrado, como uma faca por exemplo. Esta faca lhe outorga um «poder» através do qual ele passa a manipular os fundamentos do culto. O «poder», a «força mágica», não está no indivíduo, mas na «arma ritual» que está em sua posse. Imagine essa hipótese: caso ele perca a faca por alguma infelicidade, como fara para manipular ou até mesmo restaurar o culto caso seja necessário? A resposta é: ele não conseguirá, porque a força mágica não está nele. Caso estivesse, mesmo sem a posse da faca ele conseguiria restaurar o culto. Apenas nguzo manipula nguzo; apenas poder tem acesso ao poder; nós só damos o que temos. 

E caso o indivíduo receba uma morada de espírito em uma «iniciação a distância»? Como saber que o espírito que está respondendo nessa morada é de verdade quem ele pensa ser? Porque espíritos são imateriais; qualquer espírito pode fazer morada em uma «firmeza» ou «assentamento», e a Quimbanda tem mecanismos mágicos para evitar isso. Eu sempre digo que o que a Quimbanda oferece é um sistema «seguro» que lhe permitirá se comunicar efetivamente com Exu e Pombagira. É somente por meio da iniciação, do nguzo plantado em seu corpo, que o adepto pode ter certeza de que o espírito que ele está trabalhando é realmente seu Exu tutelar, e não qualquer outra entidade. 

Um «banda de casa autoiniciado» opera em uma colcha de retalhos costurados a partir de informações coletadas em vários lugares, ao léu de seus próprios devaneios. A Quimbanda, por outro lado, provê um Norte Espiritual, um caminho com início, meio e fim, com metas e propósitos objetivos delineados desde a primeira consulta com um Táta Nganga de Quimbanda. Para a próxima edição da Revista Nganga (No. 10), eu e Táta Kilumbu (@quimbandamarabo) preparamos um ensaio sobre esse tema: «Dos Processos Iniciáticos na Quimbanda», e começamos assim: 

No Mundo Antigo nunca existiu, no contexto dos cultos de mistérios ou religiões populares, a ideia de auto-iniciação ou iniciação a distância. A iniciação, i.e. a admissão em um culto ou religião, sempre exigiu a presença do iniciado no templo onde os ritos do culto eram realizados. Existia a possibilidade de se enviar um objeto consagrado contento um valor mágico que pudesse realizar milagres na vida de quem o recebesse, mas isso de modo algum foi considerado uma forma de iniciação a distância. O objeto carregado com poder mágico poderia aproximar um homem de uma divindade, e ele passaria a cultuá-la e ser orientado por ela, assim como Sócrates foi orientado por um daimon. Mas era impensável a simples ideia de que uma pessoa pudesse ser iniciada em qualquer culto por meio de uma carta, como hoje acontece na Astrum Argentum de Aleister Crowley (1875-1947), filha do renascer da magia do fim do Séc. XIX. Ninguém que é sério na magia acredita nisso, e a atual síntese da magia na qual se insere a Quimbanda, onde se valoriza o poder dos cultos afro-diaspóricos miscigenados com as técnicas da magia cerimonial europeia, é uma prova da decadência e do fracasso da concepção cientificista moderna da magia. 

Essa ideia de autoiniciação ou iniciação a distância, só inicia no Ocultismo moderno que se desenvolveu a partir do renascer da magia no fim do Séc. XIX. Começou a virar moda, de fato, no fim da década de 1980 e ganha corpo vigoroso nos movimentos nova era. Assim começam a aparecer ambas as ideias no Reiki, na Wicca, no Satanismo, no Luciferianismo, em thelema através da Astrum Argentum, na falida Ordem Hermética da Aurora Dourada, nas ordens rosacrucianas com o sistema de monografias etc. E no contexto da Quimbanda, estas ideias foram inseridas – e, portanto, só podem ser associadas a elas e a nenhuma outra vertente – pela Quimbanda Xambá e continuadas pela Quimbanda Luciferiana. São essas duas vertentes apenas, nascidas da terceira onda de manifestação das vertentes de Quimbanda[1] que ocorreu na década de 2000, que ventilam essas ideias. Essas duas vertentes, por outro lado, não estão associadas ao tronco tradicional de Quimbanda; a Quimbanda Luciferiana nasce do satanismo brasileiro que operava nos presídios paulistas; inspirados nessa Quimbanda Luciferiana, nas obras que publicaram, inúmeros indivíduos, bandas de casa, começaram a se autoproclamar Quimbanda Luciferiana; a Quimbanda Xambá, por outro lado, nasce de um mito criado no Sul do Brasil ao redor de três magos e um bábálòrìṣà, todos fictícios. 

Táta Nganga Kamuxinzela

 



[1] Para entender o contexto, veja o artigo de Táta Kilumbo: Da Macumba a Quimbanda Nàgô, em Revista Nganga No. 10.




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