Carregando...
AS TRÊS SÍNTESES DA MAGIA


Por Táta Nganga Kamuxinzela

@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago

A partir da década de 1950, a Quimbanda que nascia como um sistema de feitiçaria desassociado da Umbanda – sendo o efeito colateral da busca da Umbanda por legitimidade social[1] –, foi conectado diretamente a corrente mágica demoníaca do Grimorium Verum,[2] um livro de feitiçaria diabólica franco-italiana do Séc. XVIII. Aluízio Fontenelle (1913-1952) associou os Exus mais conhecidos na época aos demônios (leia-se espíritos) do Grimorium Verum. O autor não fazia ideia, mas ele daria o pontapé inicial ao que ficou posteriormente conhecido como a nova síntese da magia. Este tema, a nova síntese da magia, é tratado na Seção II deste ensaio. Nessa resenha vou apresentar sucintamente o contexto histórico das duas primeiras sínteses da magia no Ocidente, preparando o leitor para o que encontrará no artigo que abre essa edição.

A primeira grande síntese da magia no Ocidente ocorreu no período helênico, a partir das conquistas de Alexandre, o Grande (356-323 a.C.), que unificou muitas culturas através da língua grega, universalizando não apenas os deuses gregos, mas também os deuses de outras nações conquistadas. Até aquele período os cultos aos deuses eram limitados as fronteiras das cidades ou países; somente cidadãos gregos, por exemplo, podiam ser iniciados e possuir cargos sacerdotais na religião grega tradicional. A partir do período helênico isso muda radicalmente e os deuses ganham reverência além das fronteiras de seus países de origem. No fim da Antiguidade o culto egípcio a Ísis era celebrado em um templo dedicado a deusa em Roma. A confluência cultural do período helênico produziu a primeira grande síntese da magia, que se materializou na profunda miscigenação religiosa dos Papiros Mágicos Gregos,[3] genitores dos grimórios salomônicos posteriores. Sobre os papiros, Frater Abstru introduz: 

Eles não são um grimório, como entendemos o termo, no sentido de uma obra unificada, mas uma coletânea reunida ao longo dos anos, de autoria anônima e coletiva. Sua origem é greco-egípcia, ou seja, a autoria é compreendida como sendo de magos/sacerdotes egípcios, mas os textos estão em grego (ocasionalmente em copta, demótico, etc.) e tudo mergulhado no caldo cultural do helenismo — ou seja, é aquele egípcio que, contrariando o imaginário comum estereotipado, já não é mais, há milênios, o egípcio da era da construção das pirâmides. Como se sabe, o período helenístico começa com a conquista de toda a faixa de território que vai do Egito até a Índia por Alexandre, o Grande, e sua morte, em 323 a.C., que resultou na partição desse território entre seus generais. Assim, diversas culturas que já tinham algum contato, como a grega, a egípcia, a levantina (incluindo Israel e as várias sociedades cananeias), mesopotâmica e persa, passam a ter esse contato intensificado. É nesse período que o grego koiné se estabelece como língua franca na região, promovendo as trocas que produziram a literatura esotérica alucinadíssima da viradinha da era cristã. O material mágico contemplado pelos PGM[4] vai até o século IV d.C. e acredita-se que represente uma fração da literatura oculta da Antiguidade, a maior parte da qual não sobreviveu — como se lê na introdução da coletânea dos PGM, o governo romano (e, mais tarde, cristão) tinha horror ao assunto, e Suetônio afirma que Augusto queimou 2000 livros de magia no ano 13 a.C.[5] 

Com o triunfo do cristianismo sobre o paganismo na Antiguidade, nascia a cristandade, i.e. a expansão do cristianismo a todos os povos. A hegemonia cultural e religiosa do cristianismo na região do Mediterrâneo e a fragmentação do Império Romano, causou o escoamento da sabedoria mágica contida nestes papiros gregos, os arcanos ocultos da primeira síntese da magia, para o Império Bizantino. Sobre o assunto Stephen Skinner diz: 

Roma perdeu o Egito de volta para os gregos quatro anos após a destruição do Serapeum, mas desta vez para os gregos cristãos, não para os pagãos. O terrível assassinato de Hypatia, a última chefe da Academia Platônica em Alexandria, nas mãos dos cristãos em 415 d.C., ajudou a selar o destino do paganismo e dos clássicos modos de pensar gregos em Alexandria. Finalmente, a perda do Egito para o Islã em 636 d.C. resultou na migração (que havia começado alguns anos antes) de gregos (com sua cultura, práticas mágicas e manuscritos) para Constantinopla ao Norte, a capital do Império Bizantino.[6] 

O escoamento da cultura grega de Alexandria no Egito para Constantinopla, a capital do império ortodoxo oriental ao Norte, propiciou uma profunda mudança na cosmovisão mágica dos gregos, que deixaram de ser pagãos para se tornarem cristãos. Na conquista de Alexandria em 636 d.C., os mulçumanos ceifaram as raízes mágico-ancestrais gregas da magia ocidental, que a partir dali tomaria contornos cristãos definitivamente. As práticas mágico-religiosas gregas como àquelas dos papiros mágicos, ganharam contornos judaicos e cristãos muito mais profundos, organizando-se no que ficou conhecido a partir desse período como Solomōnikē, i.e. a magia salomônica. O primeiro manuscrito dessa síntese grega judaico-cristã da magia foi o Hygromanteia, o Tratado Mágico de Salomão. Stephen Skinner diz: 

O imperador Heráclio (575-641) estava ansioso para promover o aprendizado grego clássico e, como Rodolfo II da Boêmia, atuou como patrono de magos, astrólogos e alquimistas. O patrocínio de Heráclio a tais assuntos foi confirmado por seu convite em 617 d.C. a Estêvão de Alexandria, para vir a Constantinopla e ensinar os assuntos que compõem o quadrivium. Stephanos (c. 581-641 d.C.) foi um filósofo e cientista neoplatonista, provavelmente nascido em Atenas, mas residindo por grande parte de sua vida em Alexandria. Ele se tornou o astrólogo e conselheiro de Heráclio em assuntos mágicos. [...] Estêvão é importante para a transmissão da magia Salomônica de Alexandria a Constantinopla.[7] 

Inúmeros fatores iriam levar a reintrodução deste conhecimento mágico na Grécia e na Itália, onde floresceu o Renascimento, o combustível para a segunda síntese da magia nas mãos habilidosas de Cornélio Agrippa (1486-1535). As Cruzadas que ocorreram entre 1096 e 1272 produziram um intenso intercâmbio cultural entre árabes e europeus. É por meio desse intercâmbio cultural que os primeiros manuscritos gregos de magia são reintroduzidos no mundo latino através dos árabes. Iniciam-se as primeiras traduções latinas desses manuscritos nas áreas da magia, da astrologia e da alquimia, que na síntese promovida por Cornélio Agrippa conquistaram o título de ciências ocultas.[8] De grande importância no período foi o florescer da cabalá judaica que influenciou profundamente o imaginário cultural das inúmeras sociedades secretas que começavam a se proliferar. Mas o início dessa reintrodução foi a migração ocorrida em virtude da incursão militar de Mehemet II (1432-1481) contra Constantinopla em 1422. Em seguida todo o Império Bizantino veio à bancarrota em 1453, no que resultou numa transferência total da cultura e magia dos gregos para Itália, onde já haviam bizantinos instalados. Stephen Skinner diz: 

Na Itália, o Hygromanteia foi logo traduzido para o latim para se tornar a Clavicula Salomonis e outros grimórios salomônicos latinos. Uma vez disponíveis no mundo latino, esses grimórios migraram rapidamente para o norte da Itália e para o resto da Europa, especialmente França, Alemanha e Inglaterra.[9] 

O Renascimento proporcionou o ambiente mágico-intelectual adequado para que uma gama distinta de pensadores empreendesse esforços na tarefa de construir uma segunda síntese da magia, unindo a especulação filosófica pagã da Antiguidade, a recém descoberta cabalá judaica e a cosmovisão cristã. Isso criou o corpo referencial básico do esoterismo ocidental, segundo Wouter J Hanegraaff, que diz: 

Esse fenômeno de inovação intelectual foi essencialmente um efeito colateral das conquistas militares e das mudanças geopolíticas envolvendo as três «religiões do livro»[10] e, especialmente, o equilíbrio em mudança de poder entre o Cristianismo e o Islã. Vimos que a conquista cristã da Península Ibérica, com a queda de Toledo em 1085 como evento pivotal, levou a uma inundação de traduções de fontes árabes que revolucionaram as ciências naturais no ocidente latino. Cinco séculos depois, os exércitos do Império Otomano estavam avançando do Leste, culminando na conquista de Constantinopla em 1453. Em resposta à expansão política do Islã, um grande número de manuscritos gregos antigos foi trazido de Bizâncio para a Itália. E na Península Ibérica, os monarcas católicos Isabella I de Castela e Ferdinand II de Aragão seguiram uma política antijudaica virulenta culminando na expulsão dos judeus da Espanha em 1492. Como resultado dessa pressão, muitos cabalistas espanhóis chegaram à Itália nas últimas décadas do século XV. Em resumo, o fenômeno do esoterismo renascentista resultou da disposição de intelectuais cristãos em aprender de todos esses corpos de conhecimento pagão e judaico recém-disponíveis e integrar seus conteúdos em um quadro teológico e filosófico essencialmente católico romano.[11] 

Gradualmente, pensadores renascentistas foram construindo os alicerces que pavimentaram a síntese mágica de Agrippa. O primeiro deles foi George Gemistos (1355–1452), filósofo bizantino que se autodenominou Plethon, e que era uma encarnação viva do que hoje conhecemos como orientalismo platônico,[12] impressionando muitos humanistas pelo seu profundo conhecimento de Platão e Aristóteles. Ele defendia que a teurgia hermética de Jâmblico e a cosmovisão dos Oráculos Caldeus eram exemplos de uma religião de tipo superior na Antiguidade. Muitas de suas missivas, no entanto, se mostraram equivocadas no futuro, como atribuir a Zoroastro a autoria dos Oráculos Caldeus. Mesmo assim, a partir dele iniciou-se uma longa história de fascinação ocidental por Zoroastro, o chefe dos magos e exemplo par excellence da suprema autoridade da magia. É quando entra em cena Marsilio Ficino (1433–1499), que segundo Wouter J Hanegraaff: 

Cujos talentos foram descobertos por volta de 1460 pelo governante de Florença, Cosimo de’ Medici. Cosimo havia conhecido Plethon durante o tempo do Concílio e ficou impressionado com sua defesa de Platão. Um manuscrito com os diálogos completos de Platão havia chegado de Bizâncio nesse meio tempo, e Ficino recebeu a ordem de traduzi-los para o latim. A tarefa foi concluída em 1468, e Ficino passou a resumir a essência da filosofia de Platão em um comentário sobre o Simpósio intitulado De Amore, apresentando-o como eminentemente compatível com a verdade cristã. Com essas e outras obras seminais, Ficino estabeleceu as bases para um amplo reavivamento do platonismo no Renascimento – ou mais precisamente, do Orientalismo Platônico. Durante o restante de sua carreira, ele também traduziu uma ampla gama de autores platônicos posteriores e publicou estudos profundos nos quais o platonismo era apresentado como a chave para o renascimento e a renovação cristãs. Desde cedo, durante as fases iniciais de sua tradução de Platão, ele também traduziu o Corpus Hermeticum, a partir de um manuscrito incompleto que continha seus primeiros 14 tratados. Foi publicado em 1471, de modo que os contemporâneos agora tinham acesso direto ao que se acreditava ser o trabalho do mais antigo mestre egípcio de sabedoria, Hermes Trismegisto. Ficino acreditava que o persa Zoroastro, com seus Oráculos Caldeus, era ainda mais antigo e, portanto, de maior autoridade; mas em seu trabalho posterior, especialmente em seu influente De Vita Coelitus Comparanda, ele destacou Hermes como um mestre de magia astral que poderia ser usado para os benevolentes objetivos de cura médica e psicológica.[13] 

Outros nomes foram importantes na pavimentação das ideias renascentistas que levaram a síntese de Agrippa: Lodovico Lazzarelli (1447–1500), Agostino Steuco (1497–1548), Giovanni Pico della Mirandola (1463–94) e o alemão Johannes Reuchlin (1455–1522), o mais eminente cabalista cristão depois de Pico della Mirandola. No entanto, a mais impressionante e influente tentativa de integrar tanto as tradições filosóficas quanto científicas da Antiguidade dentro de um abrangente sistema mágico-cabalista cristão foi a obra de Cornélio Agrippa de 1533: Três Livros de Filosofia Oculta.[14] Esta obra foi por muito tempo considerada apenas como um compêndio ou summa de todas as tradições disponíveis do aprendizado antigo até aquele período, e tem tido suas informações pilhadas desde então, mas ela era muito mais do que isso. Os Três Livros de Filosofia Oculta de Agrippa tratam dos três mundos ou domínios da realidade de acordo com o sistema aristotélico e ptolemaico vigente, que descrevia o cosmos como uma esfera gigantesca: nosso mundo estava localizado em seu centro com a lua e os outros planetas orbitando ao redor dele, e as estrelas (incluindo, é claro, as constelações astrológicas) estavam fixadas na superfície interior da esfera. O primeiro livro de Agrippa trata de tudo relacionado ao nosso mundo sublunar, constituído pelos quatro elementos; o segundo livro é sobre as realidades mais abstratas relacionadas ao reino intermediário das esferas planetárias, entre a lua e as estrelas fixas; e finalmente, o terceiro livro discute as realidades angelicais e divinas fora do globo cósmico. Este último livro é dominado inteiramente pela cabala cristã. Fortemente influenciado pelo hermetismo de Lazzarelli, sua intenção era sintetizar um caminho de ascensão mística que leva desde o mundo da matéria até a unificação com o intelecto divino. Em sua juventude, Agrippa foi fortemente influenciado pelo Abade Johannes Trithemius (1462–1516), o pioneiro renascentista da criptografia, demonologia e magia angelical; e embora o próprio trabalho de Agrippa fosse um tratado teórico ao invés de um manual prático, ele tornou-se uma inspiração para praticantes ocultistas que trabalhavam em linhas semelhantes.

Como demonstrei no primeiro volume do Daemonium, a síntese da magia promulgada por Agrippa, que ficou conhecida como filosofia oculta, nome que ele escolheu para não utilizar o termo magia, se afastou da linguagem demonológica dos grimórios salomônicos e dos métodos religiosos pagãos considerados demoníacos, promovendo uma salubrização na magia, tornando-a palatável a cosmovisão e ortodoxia político-cristã da época. Mas os acontecimentos dos próximos séculos iriam mudar radicalmente o cenário, causando o desencantamento dos modos de pensar magísticos, que ganhariam contornos cientificistas-positivistas. Com a Reforma Protestante, a Revolução Francesa e o Iluminismo, ouve a separação entre o Estado e a Igreja, deslegitimando o poder eclesiástico sobre a vida secular. Inaugurava-se a era do cientificismo moderno, que impactou todas as camadas da cultura ocidental. É quando nasce também o Ocultismo moderno. Wouter J Hanegraaff diz: 

O «ocultismo moderno» é caracterizado por tentativas complexas e multifacetadas de lidar com a ciência moderna e a racionalidade do Iluminismo, combinando uma resistência profunda ao «desencantamento do mundo» com uma atração igualmente forte pelos modelos científicos modernos. Conforme europeus e americanos adentravam o século XIX, ninguém poderia negar que a sociedade estava se movendo com velocidade crescente em direções novas, e assim a questão se tornou relevante sobre se o «progresso» significava uma ruptura radical com a «tradição» ou, ao invés disso, implicava numa transformação que permitia que verdades antigas fossem percebidas sob uma nova luz.

Não é coincidência, então, que as duas forças mais influentes de inovação no esoterismo ocidental durante o século XIX tiveram suas origens no trabalho de cientistas do Iluminismo. O naturalista sueco Emanuel Swedenborg (1688–1772) [...] produziu uma impressionante obra nas ciências físicas e orgânicas. Treinado na filosofia cartesiana de sua época, com sua estrita separação entre matéria e espírito, ele passou por uma profunda crise religiosa em 1744: forçado a admitir para si mesmo que suas explorações científicas o levaram ao «abismo» do materialismo puro, ele orou a Deus por ajuda e teve uma visão de Cristo. [...] A segunda grande inovação veio de um médico alemão, Franz Anton Mesmer (1734–1815), que inventou uma teoria e prática de cura conhecida como Magnetismo Animal, mais tarde também conhecido como Mesmerismo. Mesmer afirmava que um «fluido» invisível permeava todos os corpos orgânicos, e todas as doenças eram causadas por distúrbios ou bloqueios no fluxo dessa força vital universal. Ao fazer «passes» sobre o corpo do paciente, a circulação normal de energia poderia ser restaurada, e a transição resultante para a saúde e normalidade era tipicamente marcada por uma «crise» curta, mas violenta, na qual o paciente fazia movimentos e sons incontroláveis. Um dos muitos seguidores de Mesmer, o Marquês de Puységur, descobriu que o tratamento mesmeriano poderia induzir a uma estranha condição de transe semelhante ao sono, na qual muitos pacientes exibiam habilidades «paranormais» notáveis e entravam em estados visionários nos quais afirmavam comunicar-se com seres espirituais em outros níveis de realidade.[15] 

Um dos movimentos derivados do mesmerismo e que nos interessa nessa resenha é o espiritismo de Allan Kardec (1804–1869). O transe proporcionado pelas técnicas do mesmerismo virou moda na América e Europa dentro das reuniões espíritas, tornando possível para qualquer cidadão satisfazer sua curiosidade sobre o mundo dos espíritos. Aliado a isso, as preocupações com o destino da alma não precisavam mais da mediação da Igreja, e os espíritos dos mortos ganharam a oportunidade de evoluírem para mudar suas condições no pós vida. Allan Kardec, cujo trabalho se tornou importante no Brasil, desenvolveu uma teologia e cosmologia completas sobre bases espíritas, construindo um grande corpo de conhecimento. Seus métodos influenciaram profundamente a criação da parapsicologia e outras ciências modernas. Frisvold diz:

 

O espiritismo chegou ao Brasil em 1863, trazido por homeopatas e médicos de origem francesa. Esses médicos e curandeiros se estabeleceram em áreas urbanizadas predominantemente no sul e leste do Brasil e através de seu trabalho o espiritismo se tornou um sucesso imediato. O antropólogo Roger Bastide sugere que o espiritismo veio como resposta a uma necessidade espiritual geral de salvação [...]. Por um lado, o espiritismo atraiu pessoas que se sentiam desenraizadas e perdidas no mundo; o espiritismo era, como tal, uma maneira de retornar a um estado de ser enraizado pela comunhão com os ancestrais. Por outro lado [o espiritismo atendia] pessoas cientificamente inclinadas da classe média e alta que tinham um interesse geral no campo da parapsicologia e do mistério.

[...] A prática espírita é de um pedigree muito mais arcano do que a própria doutrina ditaria. A doutrina espírita deve muito à teosofia moderna, ou melhor, foi influenciada por um zeitgeist semelhante, e assumiu uma tonalidade teosófica. A doutrina exibe uma orientação pseudocristã semelhante à que encontramos na Sociedade Teosófica de H.P. Blavatsky. Essencial para o espiritismo é a dupla lei da metempsicose e do carma. Isso significa que a condição humana é um estado de sofrimento, miséria, perda e purificação. Tudo isso está aqui para moderar o homem para se tornar «espíritos imperfeitos de luz que devem perecer se desejam galgar o plano astral depois da morte», nas palavras de Roger Bastide.

Allan Kardec, o fundador do Espiritismo, ao descrever a doutrina destaca entre vários pontos o seguinte:

Existem espíritos, todos feitos simples e ignorantes, mas possuem o poder de gradualmente melhorar a si mesmos.

O método natural para este aperfeiçoamento é a reencarnação, através da qual o espírito enfrentará incontáveis situações diferentes, problemas e obstáculos, e terá de aprender a como lidar com eles.

Como parte da Natureza, os espíritos podem naturalmente se comunicar com os vivos, assim como interferir nas suas vidas.[16] 

O espiritismo francês chegou ao Brasil no fim do Séc. XIX. Naquele período – o mesmo em que houve a formação da Macumba carioca – a França era o centro cultural do mundo e o Brasil recebeu grande influência do Ocultismo de direita[17] francês, o que impactou diretamente a Macumba, que como demonstrei na Revista Nganga No. 8, manteve confluência com maçons, ocultistas e espíritas. Nesse mesmo período ocorreu o moderno renascer da magia,[18] movimento iniciado pela escola inglesa da magia, que produzia o que hoje se conhece como ocultismo de esquerda. Todas as tradições antigas, medievais e renascentistas foram redescobertas e reconceituadas por inúmeros grupos de ocultistas ingleses profundamente influenciados pela espiritualidade maçônico-iluminista e pela ciência positivista. Wouter J Hanegraaff completa: 

Em contraste com a França do século XIX, o mundo anglófono foi caracterizado antes por um «ocultismo de esquerda», fortemente em dívida com tradições mitográficas anticristãs baseadas no trabalho dos libertinos do Iluminismo que argumentavam que a religião teve sua origem não na revelação divina, mas em uma «religião natural» de adoração solar e fálica. A «tradição oculta» veio a ser percebida como uma sabedoria antiga e superior baseada em princípios pagãos, tradições opostas ao exclusivismo e ao dogmatismo do cristianismo estabelecido. Antigos médiuns espíritas como Emma Hardinge Britten (1823 a 1899) e Helena P. Blavatsky (1831 a 1891) ficaram desiludidos com o que consideravam a superficialidade do espiritismo, encontrando inspiração em todos os principais aspectos «herméticos», tradições «ocultas» e relacionadas a Swedenborg. Na sua opinião, a «ciência oculta» universal dos antigos, tanto do Oriente como do Ocidente, deveria ser revivida contra o estreito materialismo da ciência positivista. [...] Blavatsky apresentou a «ciência oculta» como o tema central, tradição antiga e universal de conhecimento e sabedoria superior, que deveria ser revivida no mundo moderno, como uma alternativa ao cristianismo tradicional e à ciência positivista. Em 1875 ela cofundou a Sociedade Teosófica, que se tornou a mais influente organização ocultista pelo menos até a década de 1930.[19] 

Este Ocultismo de esquerda promovido pela escola inglesa da magia não teve nenhum impacto na formação dos núcleos de Macumba. Como demonstrei no livro Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia, a influência desse Ocultismo de esquerda só chegaria na cultura da Quimbanda com o advento da Quimbanda Luciferiana em 2010. E muito embora Blavatsky tenha tido influência profunda no renascer da magia, o Ocultismo que se desenvolveu a partir daí foi completamente novo, inclusive a própria ideia de magia. Eles alegaram que a magia possui raízes antigas, mas sua utilização foi baseada em conceitos e interpretações cientificistas modernos. Um dos pioneiros deste novo modo de pensar a magia foi o americano Paschal Beverly Randolph (1825-1875), o primeiro a argumentar que a energia sexual e o uso de drogas psicoativas poderiam ser utilizadas para fins mágicos. Na Inglaterra, no fim do Séc. XIX nasce a Ordem Hermética da Aurora Dourada, que elaborou um sistema sofisticado de simbolismo e prática ritual baseado na cabalá, que se tornou uma importante fonte de inspiração para muitos grupos de magistas até os dias atuais.

O mais notório mago e ocultista do Séc. XX foi Aleister Crowley (1875-1947), que rompeu com a Ordem Hermética da Aurora Dourada e se juntou à Ordo Templi Orientis de Theodor Reuss (1855-1923), que eventualmente se desenvolveu sob sua liderança em uma ordem com forte ênfase na magia sexual.[20] Sua autoproclamação como a Grande Besta do Apocalipse, cuja nova religião, Thelema, estava destinada a substituir o cristianismo, e sua experimentação sistemática com todas as formas concebíveis de transgressão, tornaram Crowley controverso até mesmo entre os ocultistas, mas o impacto de seus escritos foi enorme. Em muitos aspectos, essas organizações e muitas outras semelhantes que floresceram antes da Segunda Guerra Mundial podem ser vistas como tentativas de compensar o mundo prosaico da sociedade desencantada cultivando os poderes da imaginação como um meio de acesso experiencial a realidades paralelas de encantamento mágico. Em última análise, o foco nesses contextos está mais no desenvolvimento interno do magista do que na influência nos eventos do mundo exterior, a taumaturgia. Isso significa que o próprio conceito de magia adquire novos matizes de significado, especialmente sob o impacto da psicologia popular. No primeiro volume do Daemonium eu faço uma crítica feroz a essa visão psicológica da magia moderna como sendo ineficaz, propondo a magia baseada em uma visão animada do cosmos e no contato com os espíritos.

Por volta de 1990 as coisas começam a mudar e a magia cientificista para-maçônica moderna – típica de sociedades iniciáticas como a Ordem Hermética da Aurora Dourada ou a Ordo Templi Orientis – começou a ser questionada: e o encantamento da magia?; e seu resultado real e tangível? Entre as décadas de 1990 e 2000 alguns ocultistas citados no artigo desta resenha começaram a resgatar as raízes mágicas ancestrais do exercício da magia como delineada nos grimórios, distanciando-se da magia moderna psicologisada. Esse movimento denominou-se o renascer da magia dos grimórios,[21] que começou a valorizar a sabedoria arcana da feitiçaria afro-diaspórica nas Américas no resgate e na revitalização da magia cerimonial. O produto desse resgate e revitalização é a nova síntese da magia que agora se estabelece.

No entanto, o trabalho do verdadeiro inaugurador desta nova síntese da magia voou baixo nos radares dos ocultistas modernos, até agora. O nome dele é Aluízio Fontenelle que, como citei no início, sincretizou a goécia do Grimorium Verum com os métodos da Macumba carioca, dando nascimento a Quimbanda como a conhecemos hoje. É dentro deste contexto que o presente artigo irá esclarecer a Quimbanda como a goécia tradicional brasileira.

Desde o primeiro volume do Daemonium eu venho apresentando a goécia como uma corrente de feitiçaria ctônica universal, e que subjaz como um pano de fundo inúmeras tradições arcanas da Antiguidade, Medievo, Renascença e Modernidade. A partir da publicação do Daemonium Vol. 1, em 2019, comecei apresentar no Brasil a goécia como a tradição arcana e vitalizante da magia ocidental por meio da fórmula mágica do espírito tutelar. A goécia moderna, i.e. a interpretação e prática modernas da goécia salomônica, trata-se de uma deturpação da verdadeira e genuína goécia. Jake Stratton-Kent enfatiza: 

[Na contemporaneidade] o estereótipo pós-Mathers/Crowley prevaleceu, [i.e.] a magia goécia como a conjuração de entidades obscuramente nomeadas por um processo estereotipado, onde as identidades e origens dos espíritos são menos importantes do que a bibliofilia desenfreada, junto da adoção não examinada de falácias do século XIX. A importância de entender os espíritos [da goécia] e suas origens foi negligenciada, até mesmo substituída, pela adoção brincalhona da verborreia fictícia. Simultaneamente, uma metodologia medieval simulada – moldada pelo colonialismo não reconstruído e pela «repulsão da classe média» no início do período do renascer [da magia, i.e. 1875] – destruiu nossa apreciação da corrente [mágica] mais legítima e contínua de toda a magia ocidental. Que é exatamente a magia goécia: uma herança primordial que retém milênios de experiência e tradição; que, se devidamente compreendida, regeneraria a magia ocidental e sublinharia seu imenso significado cultural, em um nível igual a qualquer tradição espiritual no mundo.[22] 

Esse tema é a espinha dorsal do ensaio.

Táta Nganga Kamuxinzela



[1] Para contextualização veja o artigo A Morte do Feiticeiro Branco na Quimbanda, de Táta Kamuxinzela. Revista Nganga No. 8.

[2] Como fica claro no ensaio, a corrente mágica que alimenta o Grimorium Verum também alimenta a Quimbanda. Foi por isso que a associação da Quimbanda com os espíritos do Grimorium Verum se deu de forma natural. Para informações mais profundas, veja o livro Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia (Clube de Autores, 2023), de Táta Kamuzinzela.

[3] Uma introdução aos Papiros Mágicos Gregos e sua relação com a feitiçaria brasileira pode ser encontrada no artigo Os Papiros Mágicos Gregos & a Macumba Brasileira, por Táta Kamuxinzela. Suplemento de Estudo 1 da Revista Nganga. Disponível em www.quimbandanago.com.

[4] N.T. i.e. papiros mágicos gregos.

[5] Frater Abstru. Hermetismo, sincretismo e outros -ismos: o que você precisa saber sobre os Papiros Mágicos Gregos. Disponível on-line em: https://ozigurate.com.br/2020/08/27/hermetismo-sincretismo-e-outros-ismos-o-que-voce-precisa-saber-sobre-os-papiros-magicos-gregos/.

[6] Stephen Skynner. Techniques of Salomonic Magic. Golden Hoard Press, 2017, pp. 32.

[7] Ibidem, pp. 33.

[8] De Táta Kamuxinzela veja o artigo A Quimbanda & o Ocultismo Moderno.

[9] Ibidem.

[10] N.T. i.e. as três Religiões Reveladas através de um Livro Sagrado: judaísmo, cristianismo e islamismo.

[11] Wouter J. Hanegraaff. Westwer Esotericism: A Guide for the Perplexed. Bloomsbury, 2021, pp. 25.

[12] O termo deriva da ideia de que o platonismo não é produto do pensamento racional grego, mas fundamentado em culturas arcaicas de sabedoria religiosa como os egípcios, persas e hebreus. Veja Wouter J. Hanegraaff. Esotericism and the Academy. Cambridge, 2013, pp. 12.

[13] Ibidem, pp. 26.

[14] Publicado no Brasil em 2009 pela Editora Madras.

[15] Wouter J. Hanegraaff. Westwer Esotericism: A Guide for the Perplexed. Bloomsbury, 2021, pp. 37-8.

[16] Nicholaj de Mattos Frisvold. The Paladins of Earth and Fire. Publicado em Conjure Codex No. 1, 2011, pp. 16-32.

[17] O ocultismo de direita era predominante na França e foi fortemente influenciado pelo catolicismo romano: era praticado por inúmeros abades, reais ou pretensos, que tentavam chegar em um entendimento com o legado da Revolução e seu assalto sensacionalmente bem-sucedido à autoridade tradicional da Igreja. Politicamente, suas abordagens variavam de profundamente conservadoras a progressistas, mas todos compartilhavam uma nostalgia obsessiva pela unidade perdida de uma tradição universal que se expressava por meio de simbolismo espiritual. Entre as figuras mais importantes, representando gerações sucessivas no Ocultismo francês, está Eliphas Levi, cujas obras sobre magia e cabalá foram altamente influentes no renascer da magia.

[18] Magical revival, que se iniciou em 1875. Esse ano é simbólico: a morte de Eliphas Levi (1810–1875), a inauguração da Sociedade Teosófica, e o nascimento de Aleister Crowley (1875-1947), o mais proeminente defensor e difusor do renascer da magia com o seu iluminismo cistífico.

[19] Wouter J. Hanegraaff. Westwer Esotericism: A Guide for the Perplexed. Bloomsbury, 2021, pp. 41.

[20] Veja Fernando Liguori. Rituais, Documentos & a Magia Sexual da O.T.O. Clube de Autores, 2017.

[21] Grimoire revival.

[22] Jake Stratton-Kent. The Testament of Cyprian the Mage. Vol. 1. Scarlet Imprint, 2014, pp. i.




VOLTAR