Nos dias de hoje
vivemos em meio a uma pandemia de boçalidade no Brasil; nunca houve desde a
redemocratização um índice tão alarmante de analfabetismo funcional. Trocando
em miúdos, a quantidade de burros no Brasil é inquietante. Em meio a esse
contexto de fragilidade cultural, a palavra marmotagem tem sido utilizada
ostensivamente e indiscriminadamente na cultura afro-brasileira: hoje
encontramos abundantes amigos conselheiros, os donos da religião.
Eu particularmente os chamo de amigos conselheiros porque na grande
maioria das vezes, embora eles demonstrem muitas dificuldades na vida, se
apresentam como conselheiros da vida e fiscais do culto dos outros. Isso sim é marmotagem,
porque i. não existe fórmula de bolo na magia e; ii. se é verdade tem que
funcionar, um ditado da Quimbanda.
Então
se o seu fundamento é diferente do deles: marmoteiro; se na sua casa ou
templo as regras são diferentes: marmoteiro; se nos teus rituais existem
diferenças estruturais: marmoteiro. Ou seja, se é diferente do que eu
faço, ou se eu não tenho o conhecimento dos seus fundamentos, a origem deles,
então é tudo marmoteiro. Na Antiguidade mal dizer ou caluniar o culto
dos outros era uma ofensa gravíssima, assim como é deselegante perguntar quanto
alguém ganha no trabalho. O indivíduo que faz isso é um espaçoso, como
se diz. No Mundo Antigo era comum em um demus (povoado), o culto a
alguma divindade, às vezes algumas, com abordagens distintas entre as famílias.
Não havia a ideia de regras a serem observadas. Embora a divindade adorada
fosse a mesma, os métodos eram particulares. Por que? A resposta eu venho
discutindo desde o primeiro volume do Daemonium:
a fórmula mágica do espírito tutelar.
Em
um período anterior a formação da pólis, como demonstrei no artigo Quimbanda:
A Goécia Tradicional Brasileira, os cultos as divindades eram familiares.
Os deuses não possuíam nomes próprios; hermes por exemplo, era um adjetivo,
uma qualidade, potência ou poder, assumida por um espírito tutelar intermediário
do reino dos mortos, um ancestral. Como venho demonstrando desde o primeiro
volume do Daemonium, a fórmula mágica do espírito tutelar, que é
a fórmula mágica universal da goécia, está no cerne dos cultos mais antigos, e
também anteriores ao Mundo Antigo. Como o espírito tutelar que assume a função
arquetípica intermediária do poder reverenciado tem suas características
peculiares, obviamente o culto familiar terá uma identidade própria, distinta
do culto de outras famílias, mesmo àquelas que reverenciam o mesmo poder, a
mesma potência.
E
isso permanece nas culturas mágicas da África e nos diversos cultos
afro-diaspóricos nas Américas: na Quimbanda quem define a linha de trabalho,
i.e. o sistema mágico do templo é o Exu tutelar do adepto, dentro da estrutura
de uma vertente, como veremos no próximo ensaio de Táta Zelawapanzu: Quem
Define a Quimbanda? Por isso não faz sentido algum mal dizer e caluniar
como marmoteiro um indivíduo que pratica uma Quimbanda, Umbanda etc.
diferente da sua. Marmotagem de verdade é estelionato e charlatanismo,
ambos são crimes no Brasil.
Mas
para poder apreciar a complexidade das fusões mítico-religiosas em sua
inteireza e particularidades, é preciso sair da poça do senso comum e imergir
nas profundezas hierofânicas dos cultos. Tem um ditado na cultura
afro-brasileira que diz: a gente não fala de um culto que não somos
iniciados. Esse ditado é uma regra de conduta nos cultos de ancestralidade,
e o contrário disso ninguém vê com bons olhos. Então Táta Zelawapanzu pergunta:
quem é o papa que define o que você pode ou não fazer no seu culto?
Sincretismos, associações, técnicas de magia etc.? Em uma contemporaneidade
digitalizada em um globalismo radical, as mídias sociais multiplicaram esses donos
da religião, prontos a fazer um react dos seus métodos, dos seus
fundamentos, das suas divindades cultuadas etc. na intenção de ganhar likes.