Carregando...
O EXU DE UMBANDA PODE TRANSITAR OARA A QUIMBANDA?

Por Táta Nganga Kilumbu

@quimbandamarabo | @tatakilumbu

A questão da migração de Exus e Pombagiras do culto umbandista para a Quimbanda tornou-se comum nas últimas décadas e, embora pareça simples à primeira vista, envolve implicações teológicas, doutrinárias e ontológicas complexas. Para responder a essa indagação com profundidade, é essencial reconhecer que Exu e Pombagira, em sua natureza original, são entidades da Quimbanda. Sua raiz, sua ontologia e sua função se vinculam a esse culto demonológico afro-brasileiro e não a sistemas religiosos externos como o espiritismo kardecista ou o cristianismo devocional. Exus não pertencem aos òrìṣà, tampouco aos Caboclos ou Pretos-Velhos, nem se submetem a linhas espirituais que contradigam sua natureza autônoma, luciférica, prometéia. Seu culto é regido pelos Maiorais da Quimbanda e seu campo de ação é soberano dentro do Inferno — o espaço ritual e ontológico das Encruzilhadas. 

Contudo, o sincretismo religioso brasileiro, fundado sobre reestruturações e miscigenações culturais, fez com que Exu fosse absorvido pela Umbanda — religião surgida oficialmente em 1908 com Zélio Fernandino de Moraes — e reinterpretado sob um viés moralizante, cristianizado e doutrinariamente progressista. Tal fenômeno é semelhante ao que ocorreu com a figura de Zé Pelintra, originalmente Mestre Encantado da Jurema, hoje com presença constante em diversos cultos afro-brasileiros, inclusive em sistemas umbandistas nos quais sua natureza original é obscurecida. 

Para compreender se um Exu ou Pombagira de Umbanda pode migrar ou se manifestar na Quimbanda, é necessário distinguir entre dois tipos de manifestação espiritual comuns na Umbanda. No primeiro caso, trata-se de almas que aceitaram o sistema moral e religioso umbandista como meio de atuação. São espíritos que se subordinam às hierarquias espirituais da Lei de Umbanda — respondendo a comandos dos Caboclos e dos Orixás — e se conformam aos ideais cristãos da caridade, da evolução e da reencarnação cíclica. No segundo caso, encontramos entidades que, embora operem dentro dos terreiros de Umbanda, mantêm intacta sua essência kimbanda: aceitam provisoriamente a linguagem simbólica e os códigos doutrinários da Umbanda apenas para viabilizar sua ação junto ao médium ou ao terreiro. Estes últimos, de fato, podem acompanhar o médium em uma transição legítima para a Quimbanda, pois nunca perderam sua fidelidade ontológica à imagética infernal. 

O critério decisivo, portanto, não é a nomenclatura do culto, mas a natureza do espírito. Espíritos de mentalidade formatada pela cristandade, doutrina kardecista ou ética ascensional não podem atuar coerentemente na Quimbanda. Esta última não reconhece Jesus Cristo como redentor, mas cultua seus opositores históricos: Lúcifer, Satanás, Maioral. Seus cantos, oferendas e pactos se voltam à potência invertida da Cruz, à sabedoria do Abismo e à realeza do Caos. Espíritos que vibram em outra frequência não apenas não suportam essa ambiência, como tenderão a se dissolver ou afastar-se. Nesses casos, pode ocorrer a substituição espontânea da falange ou a manifestação de uma legião inteiramente distinta, mais alinhada ao mistério da coroa mediúnica dentro da Quimbanda. 

Em síntese: sim, um espírito que se manifestava como Exu ou Pombagira na Umbanda pode transitar para assumir nova forma na Quimbanda — mas apenas se sua essência já era da Quimbanda e sua atuação no culto umbandista foi apenas estratégica. Exus verdadeiros, quando incorporados, sabem respeitar o espaço ritual onde se manifestam. Agem com diplomacia quando necessário, mas não se deixam moldar por doutrinas que violentem sua identidade. Por outro lado, espíritos exunizados — isto é, construídos mentalmente segundo categorias cristãs — não suportam a Quimbanda. Nessas situações, haverá ruptura, substituição ou revelação de um novo espírito, muitas vezes com características bem diferentes daquele que antes se manifestava. Isso porque a Quimbanda não tolera contradições em seu fundamento: ela exige fidelidade, não acomodação. A transição, portanto, é possível, mas não garantida. Ela depende menos do desejo do médium do que da natureza do espírito que o possui, pois não basta termos técnicas ou caminhos para cuidarmos destes espíritos da Umbanda na Quimbanda; será necessário saber, antes de tudo, da necessidade, seja ela hierárquica ou operacional, daquele espírito da Umbanda dentro da Quimbanda e, sendo o caso, em qual grau de hierarquia menor ele vai se alocar.

 

Excerto do livro «O Livro dos Gangas da Quimbanda Nàgô» Em breve disponível.




VOLTAR