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EXU DE UMBANDA

EXU DE UMBANDA

 

Por Táta Nganga Kilumbu

@quimbandamarabo / @tatakilumbu / @kimbandamarabo.oficial

 

A presença de Exus e Pombagiras na Umbanda é inegável, mas seu papel e origem dentro deste culto são historicamente ambíguos e doutrinariamente disputados. A compreensão da relação entre a Quimbanda e a Umbanda requer uma abordagem histórica e sociológica capaz de distinguir suas origens, desenvolvimentos e ideologias. Embora hoje essas entidades estejam presentes em grande parte dos terreiros umbandistas, a natureza e função que lhes são atribuídas diferem substancialmente daquelas desenvolvidas dentro da Quimbanda. 

Historicamente, manifestações de entidades com atributos similares aos Exus atuais remontam a práticas de cultos banto, como a Cabula, presente no Espírito Santo. Ali, os bakulus – ancestrais divinizados – se manifestavam sob o título de Táta, termo que em kimbundu significa pai. Esses espíritos, como Táta Veludo e Táta Rompe-Mato, integram uma tradição que associa a ancestralidade à autoridade espiritual, precedendo a codificação formal dos Exus na Umbanda. 

A Umbanda, surgida oficialmente em 1908 com Zélio Fernandino de Moraes,[1] foi fortemente influenciada pelo espiritismo kardecista, pelo catolicismo popular e por práticas africanas e indígenas. Nesse sincretismo, a figura do Exu foi assimilada, mas reinterpretada à luz da doutrina da Lei de Causa e Efeito (karma).[2] Nesse contexto, Exus e Pombagiras passaram a ser vistos como espíritos em evolução que trabalham em conjunto com médiuns para resgatar erros do passado, purgando faltas cármicas. Como afirma Rubens Saraceni: 

Esses Exus não são naturais. São seres que se ligaram a mistérios reativos e passaram a manifestá-los, sendo acolhidos pela Lei Maior que lhes concede atuar religiosamente dentro da esquerda das pessoas.[3]

 

Tal visão implica que a função dos Exus seria transitar do erro à redenção, o que contrasta com a compreensão da Quimbanda, onde Exus são espíritos glorificados, já deificados pelo culto. Essa discrepância funda a divergência fundamental entre Umbanda e Quimbanda: enquanto na primeira os Exus são guias subalternos a caboclos e pretos-velhos, na segunda são autoridades máximas do culto. 

Marco Aurélio Luz, em sua análise sociológica da macumba e da Umbanda, vê a Quimbanda como o retorno do reprimido, ou seja, a revolta contra a ordem colonial escravagista reencenada no imaginário religioso afro-brasileiro: 

A macumba representa então todas as relações dos escravos com as demais classes [...]; a luta entre a lei de Umbanda e a revolta Quimbanda.[4]

 

Ocorre, porém, uma absorção gradual. Templos umbandistas passaram a organizar Exus em falanges associadas a òríṣá, como no modelo esotérico de Rivas Neto. Nesse sistema, cada Exu é subordinado a um caboclo ou òríṣá, como Exu Tranca-Ruas à Ògún, ou Exu Marabô a Ọ̀ṣọ́ọ̀sì, com hierarquias semelhantes às da Quimbanda, mas reinterpretadas dentro de uma lógica doutrinária voltada à harmonização com os princípios da Umbanda. 

Apesar dessa estruturação, a Quimbanda rejeita tal subordinação. O Exu de Quimbanda não busca redenção, tampouco responde a caboclos ou santos sincretizados. Ele é expressão plena de uma força mágica autônoma e demonológica. A noção de Exus Batizados na Umbanda – que teriam sido integrados à egrégora de Aruanda após um processo de purificação – contrasta radicalmente com o Exu Pagão da Quimbanda,[5] que opera livre das estruturas de comando do culto umbandista. 

A sociologia da religião mostra que essa subordinação reflete a estrutura de dominação internalizada pelo sistema colonial. Luz retoma esse tema ao comentar o papel dos santos católicos sincretizados: 

Sto. Antônio e São Benedito «seguram» os Exus e os Pretos-Velhos [...], para que os Exus não transformem os Pretos-Velhos em Quimbandeiros [...] e se mantenham na senzala.[6]

 

Com o passar das décadas, a Umbanda desenvolveu diferentes classificações para os Exus: Linha Branca (espíritos moralmente evoluídos), Linha Vermelha (espíritos mais próximos da Quimbanda) e Linha Preta (espíritos que ainda não foram integrados à Lei de Aruanda). Esses sistemas revelam o esforço constante de conter e domesticar a força crua e caótica que os Exus representam na Quimbanda. 

Mesmo nas obras mais africanistas, como Doutrina e Ritual de Umbanda de Tancredo da Silva Pinto,[7] os Exus são tratados como mensageiros dos òríṣá e ordenados em falanges com funções específicas, como Exu Malê (senhor das trevas) ou Exu Barabô (comércio). A Pombagira é chamada genericamente de Exu Mulher. 

Autores contemporâneos como Josef Ronton descrevem hierarquias complexas em que cada òríṣá comanda falanges e legiões de Exus, como se vê em Trabalhos de Umbanda-Canjerê (1994). Mas mesmo esses sistemas revelam uma tentativa de assimilar o poder dos Exus sem reconhecer sua autonomia ontológica e ritual. 

Por fim, o modelo de Rubens Saraceni, conhecido como Umbanda Sagrada, consolida a visão de Exu como um guardião da Lei Maior, que age na reatividade do Cosmos, mas sempre submetido a uma lógica moral. Essa visão resulta em declarações como: 

Exu Cobra é um ser Oxumaré que sofreu uma queda e uma regressão.[8]

 

Tais interpretações reduzem a figura de Exu a um tropeço espiritual, negando a possibilidade de sua divindade por mérito próprio, como defende a Quimbanda. Esta última permanece, portanto, como um culto à liberdade e à apoteose dos marginais – uma teologia da rebelião.[9] 

Em resumo, embora a Umbanda tenha absorvido os Exus e Pombagiras em suas práticas, fê-lo moldando-os à sua estrutura hierárquica, moral e sincrética. A Quimbanda, por sua vez, reivindica para si o culto autêntico dessas entidades, preservando sua natureza demonológica, sua autonomia litúrgica e seu papel como representantes máximos da marginalidade sagrada. A convivência entre ambas é, assim, menos um diálogo e mais um campo de disputa simbólica, histórica e teológica. 

 

Este ensaio é um excerto de O Livro dos Gangas da Quimbanda Nàgô, por Táta Kilumbo. Em breve disponível.

 

 



[1] Zélio Fernandino de Moraes nasceu em 10 de abril de 1891, na cidade de São Gonçalo, no estado do Rio de Janeiro, e faleceu em 3 de outubro de 1975. É amplamente reconhecido como o fundador da Umbanda, religião afro-brasileira que se consolidou no início do Séc. XX a partir da combinação de elementos do espiritismo kardecista, catolicismo popular, tradições afro-indígenas e práticas da Macumba. Sua mediunidade manifestou-se ainda na juventude, culminando com a incorporação da entidade espiritual Caboclo das Sete Encruzilhadas durante uma sessão espírita em 15 de novembro de 1908 — episódio que marca simbolicamente o nascimento da Umbanda. Zélio fundou a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade, que se tornou o núcleo irradiador da nova doutrina. Seu legado é reconhecido tanto por sua obra religiosa quanto pela organização institucional da Umbanda no Brasil. A fundação da Umbanda conectada a Zélio é, entretanto, mítica, não histórica.

[2] Karma, no contexto original das tradições religiosas da Índia, especialmente no hinduísmo védico e na filosofia do Vedānta, significa literalmente ação, derivado da raiz sânscrita k, fazer ou agir. Na Bhagavadgītā (c. século II a.E.C.), texto central da tradição hindu, karma refere-se não apenas à ação moral ou física, mas sobretudo à ação ritual prescrita pelos śruti (escrituras reveladas), sendo inseparável da noção de dharma (ordem cósmica e dever sagrado). É nesse contexto que surge o conceito de karma-yoga, o caminho espiritual que consiste em agir segundo o dever, sem apego aos frutos da ação (BhG III.19–20; V.10–12), o que visa à libertação (mokṣa). No entanto, a difusão do termo no Ocidente, particularmente no espiritismo de Allan Kardec (1804–1869) e na Sociedade Teosófica de Helena P. Blavatsky (1831–1891), desloca o conceito para uma leitura moralizante e retributiva da causalidade espiritual — como uma lei do retorno quase mecânica. Tal recepção é anacrônica, pois desconsidera a filologia, a ritualística e a cosmologia hindu, transformando karma em sinônimo vulgar de castigo ou punição espiritual. Essa reinterpretação moderna e ocidentalizada rompe com o sentido tradicional, apagando sua complexidade ético-ritual e seu lugar como parte integrante de um sistema sacrificial e iniciático.

[3] Rubens Saraceni. Livro de Exu: O Mistério Revelado. Madras, 2003.

[4] Marco Aurélio Luz e Georges Lapassade. O Segredo da Macumba. Paz e Terra, 1972.

[5] Estes dois termos, Exu Batizado e Exu Pagão, citados nesse contexto, recebem a interpretação umbandista, principalmente a partir da obra de Rivas Neto em seu livro Exu o Grande Arcano (Aláfia, 2017, 5ª Edição), onde os batizados  são àqueles espíritos que aceitam a Lei de Umbanda e, por outro lado, os pagãos são àqueles que escolhem a Lei de Quimbanda. Sobre a Lei de quimbanda no contexto histórico, veja Táta Kamuxinzela. Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia, Clube de Autores, 2023.

[6] Ibidem.

[7] Tancredo da Silva Pinto nasceu em 10 de agosto de 1904, no município de Cantagalo, então pertencente ao Estado do Rio de Janeiro. Figura proeminente na história da Umbanda, destacou-se como sacerdote, escritor, compositor e líder religioso. Foi o principal organizador da vertente conhecida como Umbanda Omolocô, que buscava resgatar as raízes africanas da religião, especialmente as tradições banto, em contraposição às tendências de embranquecimento presentes em outras correntes umbandistas. Em 1950, fundou a Confederação Espírita Umbandista do Brasil, com o objetivo de organizar e defender os cultos afro-brasileiros. Tancredo faleceu em 1° de setembro de 1979, no Rio de Janeiro, deixando um legado significativo na preservação e valorização das tradições afro-brasileiras na Umbanda

[8] Rubens Saraceni. Livro de Exu. Madras, 2003.

[9] O termo marginal, empregado aqui, não deve ser entendido sob o prisma pejorativo e jurídico-policial que lhe foi atribuído pelo discurso colonial, racista e higienista nos Séc. XIX e XX. Historicamente, os marginais foram os sujeitos excluídos do pacto social colonial: negros escravizados, indígenas perseguidos, mulheres insubmissas, homossexuais, feiticeiros, curandeiros e toda sorte de transgressores dos modelos impostos pelas instituições religiosas e estatais. Na Quimbanda, ao se afirmar como teologia da apoteose dos marginais, evoca-se uma espiritualidade de resistência, protagonizada por espíritos que representam a fratura da ordem colonial e a insubmissão à moral dominante. Nesse contexto, Exu é compreendido como o trickster por excelência — figura mítica presente em múltiplas culturas (yorùbá, grega, ameríndia) — que transita entre os mundos, rompe fronteiras, desafia normas e opera por meio do paradoxo e da astúcia. Ele não é um espírito caído, mas um agente do Caos criador, aquele que reverte as hierarquias e revela o poder da margem sobre o centro. Trata-se, portanto, de uma revalorização religiosa daquilo que foi historicamente demonizado.

 




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