Por
Táta Nganga Kilumbu
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O termo exu tem sua etimologia no nome da divindade yorùbá Èṣú, um òrìṣà primordial que encarna o próprio dinamismo do Cosmos. Èṣú está profundamente ligado ao Caos e às energias ordenadoras, sendo a força motriz que impulsiona o movimento do planeta Terra (aiyé). Ele é o princípio do intercâmbio entre todas as coisas, aquele que gera o movimento do universo e abre os caminhos para todas as manifestações espirituais e materiais. Sem Èṣú, nada pode existir, pois ele é o fluxo constante que permite a comunicação entre os planos, sendo chamado de mensageiro dos deuses, um arquétipo semelhante ao Hermes greco-romano.
Em um mito nàgô, Èṣú e Ọ̀rúnmìlà entraram em disputa, e ao ser fragmentado, seus pedaços se espalharam pelo universo, transformando-se em múltiplas facetas de sua essência divina. Para cada objeto e cada fenômeno passou a existir uma dessas facetas, e assim, Èṣú se fez onipresente, sendo senhor da multiplicidade e da transformação. Sua simbologia é vasta e abarca as forças fundamentais da criação: a fusão de água e terra, o equilíbrio entre o dinâmico (positivo, ativo, masculino) e o receptivo (negativo, passivo, feminino), bem como a síntese dos três sangues primordiais (o branco, o vermelho e o negro), que representam as forças primordiais que sustentam a vida. Ele não apenas governa a comunicação entre os mundos, mas também detém o segredo do tempo e do destino.
Quando os povos yorùbá foram forçados à diáspora e trazidos ao Brasil como escravizados, eles trouxeram consigo o culto a Èṣú. Seu papel era fundamental: sem sua presença e intermediação, nenhum outro òrìṣà poderia ser cultuado. No entanto, com as interações culturais e os sincretismos inevitáveis que ocorreram em solo brasileiro, o nome Èṣú passou por adaptações fonéticas, transformando-se em Exu.
Além disso, com a fusão entre as tradições
africanas, indígenas e europeias, o termo Exu começou a ser atribuído também a
espíritos desencarnados que se manifestavam nos cultos afro-brasileiros,
especialmente aqueles alinhados a vias de desenvolvimento espiritual ligadas à
chamada mão esquerda.[1]
Esses espíritos foram classificados como Exus-Aiyekuruns (égún) ou Exus
Catiços, conforme a tradição popular.
Essa adaptação do conceito yorùbá de Èṣú a semântica da cultura religiosa congo-angolana já era percebida na religiosidade afro-brasileira desde meados do Séc. XIX. Os Bakulus da Cabula, por exemplo, eram considerados ancestrais divinizados que se manifestavam para guiar suas comunidades. É por isso que até hoje encontramos figuras como Táta Mulambo, Táta Veludo, Táta Caveira, Táta Rompe-Ferro e Táta Ferrolho que, ao longo dos séculos, foram absorvidos dentro do título Exu, sendo reverenciados como Exu Táta Caveira, Exu Táta Mulambo, Exu Táta Veludo, entre outros.
A Quimbanda nasce desse processo histórico e espiritual, incorporando elementos da cultura banto, yorùbá e do espiritismo europeu. Assim, Exu na Quimbanda não é apenas um intermediário dos òrìṣà, mas um Mestre Espiritual, um espírito humano divinizado que alcançou um grau superior de deificação e poder. Ele é um senhor da encruzilhada, do destino e do desejo, um guia para aqueles que buscam o caminho da feitiçaria e da libertação da alma.
Para compreender a natureza de Exu dentro da Quimbanda, é essencial entender a diferença entre égún (espíritos de mortos de todo tipo) e os Glorificados no Inferno (ancestrais divinizados que atuam como mestres espirituais). No dialeto yorùbá, a palavra égún pode significar cadáver, osso, ancestral ou espírito, mas no contexto religioso se refere ao espírito de uma pessoa falecida, independentemente de sua afiliação religiosa ou grau de iniciação.
Os égún de todo tipo são simplesmente os mortos, mas há uma categoria distinta chamada égúngún, que são ancestrais deificados, assim como são os Exus na Quimbanda. No culto yorùbá, os égúngún são reverenciados e se manifestam em rituais específicos para aconselhar, proteger e guiar seus descendentes.
A Quimbanda desenvolveu seu próprio conceito de ancestrais divinizados, os Glorificados no Inferno, que são os Exus e Pombagiras que atingiram um grau superior de evolução espiritual. Esses espíritos eram bruxos, feiticeiros, magos, curandeiros e sacerdotes em vida, e após a morte, tornaram-se guias espirituais capazes de auxiliar os adeptos no caminho da magia e da feitiçaria. Táta Nganga Kamuxinzela em sua obra Daemonium: a Quimbanda no Renascer da Magia, escreve:
Os Poderosos Mortos são os
mestres invisíveis de muitas tradições uma vez encarnados na matéria e que
estão em conexão com muitos adeptos segundo suas próprias tradições e que os
inspiram, protegem e instruem. Mestres Ascensionados (teosofia), bodhisattvas
(budismo), Nemos (thelema), Grande Fraternidade Branca (teosofia-thelema),
Adeptos dos Planos Internos (Aurora Dourada), Santos Iluminados (cristianismo
católico), Heróis e Semideuses (religião e teurgia gregas), Companhia dos
Guardiões de Avalon (mitologia britânica arturiana), Einherjar (mitologia
nórdica), Antigos da Casa de Israel (religião judaica), Tzaddikim e Maggid
(misticismo judaico), Exus e Pombagiras (Quimbanda), Ngangas (cultura banto
africana), Pretos-Velhos e Caboclos (Umbanda), etc.[2]
Esses Poderosos Mortos ou Glorificados no Inferno não são apenas guias espirituais, mas agentes da transformação da alma, auxiliando o adepto no processo de deificação e libertação dos ciclos de nascimento e morte. O escritor Danilo Coppini reforça essa visão em Venerando os Poderosos Mortos:
A Quimbanda Brasileira
destaca-se pela conexão íntima entre vivos e Poderosos Mortos. A ação desses
espíritos provoca uma alteração progressiva da consciência do adepto, levando à
quebra da previsibilidade causal e à expansão excepcional da mente.[3]
A progressão espiritual da Quimbanda é um caminho de deificação da alma, onde o praticante busca ultrapassar os limites da condição humana e se tornar um ser divino. Esse conceito ressoa em diversas tradições esotéricas, desde o Hermetismo até o Budismo Tântrico. No Livro do Apocalipse (2:11), encontramos um conceito similar: Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas: O vencedor não sofrerá o dano da segunda morte.
A segunda morte representa o apagamento da identidade espiritual no ciclo reencarnatório. Os Glorificados no Inferno da Quimbanda são aqueles que superaram esse ciclo e se tornaram deidades independentes, preservando sua individualidade além da morte. De outro modo, os Glorificados no Inferno são espíritos desencarnados que alcançaram um estado de santificação e deificação, verdadeiros Mortos Sagrados que, por meio de um árduo e profundo processo de apoteose, elevaram suas almas acima da condição comum dos mortos, distinguindo-se do termo geral égún dentro da estrutura da Quimbanda. Enquanto o égún são aqueles que partiram sem conquistar a divinização da alma, os chamados Kiumbas são feiticeiros que buscaram essa deificação, mas fracassaram, tornando-se muitas vezes entidades parasitárias, semelhantes a vampiros espirituais. Já os mortos deificados da Quimbanda são almas de feiticeiros, bruxos, magos, alquimistas e xamãs, indivíduos que, por meio do domínio das artes mágicas e dos mistérios da natureza e das correntes mortuárias, transcenderam a condição humana, tornando-se divindades ancestrais, como os heróis divinizados das culturas arcaicas. Estes conquistaram a imortalidade espiritual ao superar os danos da segunda morte, um processo onde a alma, ao reencarnar repetidamente, perde suas memórias, sua identidade e todo o conhecimento adquirido. Os que ultrapassam a Roda do Saṃsāra (os ciclos de morte e renascimento), libertando-se do ciclo de reencarnação e assumindo sua natureza deificada, não perdem sua identidade no pós-morte, mas a preservam, ingressando nas Falanges e Legiões da Quimbanda sob a autoridade do Chefe Império Maioral, o Diabo, tornando-se os próprios Exus e Pombagiras, os Senhores do Culto.
Assim como os Exus e
Pombagiras da Quimbanda, os Mestres do Oriente ou Chefes Secretos da Grande
Fraternidade Branca – identificados como Adeptos dos Planos Internos – foram
magos, feiticeiros e alquimistas que conquistaram a iluminação espiritual por
meio da deificação da alma. Aleister Crowley, assim como Mathers, afirmava
estar em contato com esses Chefes Secretos, e a partir deles codificou uma
doutrina mística chamada Thelema. (...) É na Wicca de Gardner que, pela
primeira vez, os Chefes Secretos da Grande Fraternidade Branca são apresentados
como os Poderosos Mortos da tradição da feitiçaria, ecoando as vozes da
feitiçaria praticada na Europa dos séculos XV e XVI.[4]
O termo catiço tem uma origem de difícil definição formal, sendo mais facilmente interpretado através do seu uso na linguagem coloquial. Catiço carrega um sentido de agilidade, esperteza e hiperatividade, sendo frequentemente usado para descrever pessoas hábeis, astutas e naturalmente dotadas de malícia e sagacidade. Dentro da Quimbanda, os Exus-Ekuruns ou Exus-Catiços, manifestam-se através de atos de evocação e incorporação, acoplando-se aos pontos de força do corpo astral do médium, intermediando a descarga energética entre a matéria densa e o corpo espiritual dos desencarnados. Assim, o médium torna-se um canal entre os mundos, um intercessor entre os vivos e os mortos.
Conforme já discutido, ao desencarnar, o ser humano se torna um égún, e estes são classificados de diversas maneiras. No entanto, quando falamos de Exu na Quimbanda, não estamos nos referindo ao òrìṣà Èṣú, tampouco a um aspecto dele. Exu, na Quimbanda, é um espírito humano desencarnado que retorna sob esse arquétipo para guiar seus devotos, mas não realiza por eles o caminho que precisam percorrer. Assim como no arquétipo herdado de Èṣú, que carrega uma lâmina sobre a cabeça para não absorver os problemas dos outros, Exu Catiço apenas aponta a direção, mas não trilha o caminho pelo adepto – pois ele próprio já o percorreu. Cabe ao iniciado fazer sua própria jornada.
Os égún são a matéria-prima espiritual da Quimbanda e a estrutura oculta que fundamenta os Senhores do Culto. São eles que integram os Reinos dos Exus, que são trabalhados e elevados até se tornarem Exus Verdadeiros. No entanto, como já esclarecido, o termo égún refere-se às almas não deificadas. Por isso, Fernanda Laux identificou os Glorificados no Inferno da Quimbanda como nganga, ou seja, espíritos ancestrais feiticeiros, que atuam na manutenção do moyo – a força vital das comunidades. Esse conceito se aproxima dos Bakulu, os espíritos ancestrais familiares.
As Pombagiras são, sem dúvida, as entidades mais mal interpretadas dentro da Quimbanda e mesmo na Umbanda. Sua origem etimológica é complexa. Alguns relatos mencionam que a primeira entidade feminina a manifestar-se sob essa forma se apresentou como Pangila em um antigo terreiro. Esse nome remete ao nkisi Mpambu Njila, divindade banto associada às encruzilhadas e caminhos, erroneamente sincretizada como um òrìṣà feminino de Exu por alguns grupos modernos. De fato, relatos históricos sugerem que o culto das Pombagiras pode ter surgido a partir das Mouras Encantadas, espíritos da cultura galega e portuguesa, muitas vezes relacionados às Moiras e Janas, que habitavam encruzilhadas e lugares ocultos, sendo cultuadas pelas prostitutas e feiticeiras ibéricas que vieram para o Brasil durante o período colonial.
Dessa forma, as Pombagiras são a encarnação do arquétipo da feiticeira, herdeiras da tradição das bruxas ibéricas, das donzelas mouras, das grandes feiticeiras da história, como Maria Padilha e a Bruxa de Évora. Não são apenas diabas ou esposas de Exu, mas sim expressões vivas do Sagrado Feminino na Quimbanda.
Dentro dos costumes e
tradições da Quimbanda, a grande maioria dos templos usa uma imagem semelhante
à Deusa Baphomet para representar o Imperador Maioral. [...] Baphomet, segundo
nossos entendimentos, não é a figura panteística do Absoluto [...]. Baphomet é
a junção das palavras gregas Baphe-Metra, que correspondem a Mãe
tingida/sangrenta. O nome representa o Grande Útero Negro, o poder criador da
Grande Mãe, a Deusa Sinistra.[5]
Os Exus e Pombagiras são espíritos materiais, portadores de uma alma viva, conectada ao Reino da Geração e ao poder da Natureza. Essa conexão torna a sacralização animal essencial dentro das práticas da Quimbanda, pois o sangue é um dos cinco elementos fundamentais para a magia: Terra, Água, Fogo, Ar e Espírito. Como espíritos imersos no Reino da Geração, os Exus e Pombagiras operam por meio dos próprios princípios da Criação, jamais sendo entidades anticósmicas, como alguns erroneamente tentam afirmar. Sua função, como daimēnes das culturas antigas, sempre foi manter a ordem do Cosmos, atuando dentro do plano sublunar e dos éteres, sustentando a harmonia do Universo.
Os Exus e Pombagiras atuam
no Reino da Geração utilizando os poderes do Reino da Geração. Por isso possuem
zonas de poder específicas para sua atuação. A combinação dos elementos é um
dos fundamentos da ciência do corte, pois o sangue sacrifical vivifica a magia
e torna possível a taumaturgia da Quimbanda.[6]
Dessa forma, Exu e Pombagira são os verdadeiros Mestres da Magia, os Glorificados no Inferno que, tendo conquistado a imortalidade espiritual, guardam os mistérios profundos do Cosmos e orientam aqueles que ousam trilhar o Caminho da Feitiçaria.
Na Quimbanda, o conceito de ser como os deuses é fundamental, ecoando a antiga serpente do Gênesis (3:4-5): Então a serpente disse à mulher: Certamente não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se abrirão os vossos olhos, e sereis como Deus, conhecendo o bem e o mal. Esse processo de deificação pela transgressão está presente em inúmeras tradições, desde os mistérios de Lúcifer até os ensinamentos dos mestres ascensionados da Grande Fraternidade Branca.
A Quimbanda é um culto brasileiro autêntico que preserva os segredos da feitiçaria, da necromancia e do poder ancestral. Seus Exus e Pombagiras são espíritos elevados, mestres da magia e do destino, e sua tradição ecoa os cultos antigos aos mortos divinizados de todas as culturas.
Dessa forma, os adeptos da Quimbanda não apenas
cultuam os Exus Glorificados no Inferno, mas buscam se tornar um deles,
atingindo a verdadeira imortalidade espiritual e se libertando das ilusões do
mundo material.
[1] Veja Apêndice 1: Notas
do Editor.
[2] Fernando Liguori. Daemonium: a Quimbanda no Renascer da Magia. Clube de
Autores, 2022, pp. 302. O termo poderosos mortos foi cunhado por Gerald
Gardner (1884-1964) em seu livro The Meaning of
Witchcraft de 1959, se referindo aos ancestrais das antigas feiticeiras
dos Sécs. XV e XVI.
[3] T.Q.M.B.E.P.N., 2015. Arquivo
disponível na Internet.
[4] Fernando Liguori. Daemonium: a Quimbanda no Renascer da Magia. Clube de Autores, 2022, pp. 304.
[5] Danilo Coppini. Quimbanda:
O Culto da Chama Vermelha e Preta. Via Sestra, 2019.
[6] Fernando Liguori. Daemonium:
a Quimbanda no Renascer da Magia. Clube de Autores, 2022, pp. 304.