Aforismos de Táta Kamuxinzela concernentes aos Segredos & Mistérios da Quimbanda
Por Táta Nganga Kamuxinzela
@tatakamuxinzela
| @tatangangakamuxinzela | @goeteia.com.br
1. OS REINOS DA QUIMBANDA
A cosmogonia da Quimbanda Nàgô descreve a criação do mundo de forma simbólica, com base em nove reinos que representam as forças e os ciclos essenciais da existência. Diferente do Candomblé, a Quimbanda foca em reinos metafísicos que estruturam a realidade espiritual e material, sem a adoração direta a um ser criador.
Resumo dos conceitos fundamentais:
1. Nzambi-mpungu: Um ser supremo invisível
que cria o mundo, mas não interage diretamente com ele, sendo venerado apenas
indiretamente. A Quimbanda não cultua diretamente esse ser.
2. Nove Reinos da Quimbanda:
o Reino da Terra: Representa a formação
inicial do planeta como uma esfera incandescente que se resfria e solidifica.
o Reino das Águas: Surge quando a Terra
resfriada cria vapor e precipitação, formando corpos d'água.
o Reino das Matas: Desenvolve-se com o
surgimento da flora e fauna, estabelecendo a base para a vida.
o Reino Africano: Relaciona-se com o
surgimento do homem no continente africano e sua conexão com as matas.
o Reino das Almas: O homem passa a ter
contato com seus ancestrais e espíritos, criando a conexão com o plano
espiritual.
o Reino das Encruzilhadas: Simboliza as escolhas e
a expansão dos caminhos humanos.
o Reino do Oriente: Representa o aprendizado
e a expansão da humanidade por meio de comércio e trocas culturais.
o Reino das Trevas: Reflete a compreensão do
homem sobre o uso da feitiçaria para defesa e ataque.
o Reino da Lira: Surge com a organização
social, cultura, arte e filosofia, representando a vida urbana e boêmia.
3. Interação entre homens e
espíritos:
As almas ocupam diferentes reinos, refletindo suas naturezas, e se comunicam
com os vivos, oferecendo proteção e orientação.
4. Aspecto Filosófico e
Evolutivo:
A cosmogonia na Quimbanda Nàgô é mais filosófica, centrada na evolução
humana e na interação espiritual do que nas forças da natureza.
5. Naturezas específicas dos espíritos: Cada reino abriga entidades com características próprias, como Exus nas matas, encantados aquáticos nas águas, e espíritos do cemitério no Reino das Almas.
Essa cosmogonia reflete uma visão simbólica da criação que integra evolução, vida espiritual, e os desafios humanos ao longo do tempo, formando a base para os rituais e práticas da Quimbanda.
1.1. Os Nove Reinos
O Reino da Terra, o primeiro dos nove reinos da Quimbanda Nàgô, simboliza a base material de toda a existência e representa as forças telúricas e ancestrais da criação. Neste reino, os Exus e Pombagiras que agem como intermediários espirituais da natureza são divididos em Povos, cada um com uma relação específica com os elementos da Terra, como rochas, montanhas, fogo e minerais. É também um reino associado ao fortalecimento da saúde física, raízes ancestrais e prosperidade material.
Principais Povos do Reino da Terra:
1. Povo da Terra: Ligado às raízes e
ancestralidade, com destaque para os Pretos-Velhos, conselheiros e curandeiros
com sabedoria tradicional.
2. Povo dos Vulcões: Relaciona-se ao magma e
ao poder formador e destrutivo dos vulcões, simbolizando criação e
transformação.
3. Povo do Lodo: Representa a origem da
vida no lodo primordial, bem como a estagnação, podendo paralisar ou nutrir.
4. Povo do Pó: Liga-se aos minérios e
ervas reduzidos a pó, usados em encantamentos e rituais.
5. Povo do Fogo: Associa-se ao espírito,
iluminação e clareza, sendo o mais etéreo deste reino.
6. Povo das Montanhas: Reflete a conexão com o
divino, representando locais sagrados de elevação espiritual.
7. Povo das Minas: Conecta-se ao submundo,
à escuridão e às riquezas da terra, sendo um portal para o contato com mortos.
8. Povo da Lomba: Representa ascensão e
descenso, ligando-se aos montes de terra que facilitam um breve encontro
espiritual.
9. Povo das Pedras: Inclui todos os espíritos ligados às rochas e cristais, simbolizando a firmeza e durabilidade da criação.
Cada povo manifesta aspectos do mundo físico e espiritual, orientando a prática mágica e a busca por força e sabedoria na Quimbanda.
O Reino das Águas na Quimbanda Nàgô simboliza a criação, as emoções e o subconsciente humano. Após a formação do planeta, a precipitação e a criação dos corpos aquáticos (mares, rios, lagos e oceanos) estabeleceram este reino, que abrange energias de nutrição, transformação e perigos ocultos.
Principais Povos do Reino das Águas:
1. Povo do Mar: Ligado à origem da vida,
com Exus como o Exu Marinho, que representam as transformações emocionais e
fluxos da vida.
2. Povo dos Rios: Atua no comércio e fluxo
emocional, com entidades como o Exu dos Rios, associado à serpente e à magia.
3. Povo das Cachoeiras: Representa mudanças
rápidas e limpezas emocionais, incluindo Exus como Exu 7 Cachoeiras.
4. Povo das Ondas: Ativo nas marés e no
fluxo entre mar e praia, com o Exu 7 Ondas.
5. Povo da Chuva: Representa recomeços e a
sabedoria ancestral, com entidades como o Exu dos Ventos.
6. Povo das Profundezas: Relacionado a medos e
mistérios nas regiões abissais, com o Exu Calunga e a Pombagira Calunga.
7. Povo da Praia: Marca o limiar entre
vivos e mortos, com uma forte presença de Pombagiras.
8. Povo dos Marinheiros: Espíritos de caiçaras,
pescadores e marinheiros que navegaram os mares em vida.
9. Povo da Ilha: Representado por Exus alegres e profundos, como o Exu do Coco e Exu Baiano, associados a práticas festivas e magia.
Cada povo do Reino das Águas lida com diferentes aspectos emocionais e espirituais, reforçando o papel da água como elemento de criação e transformação na cosmogonia da Quimbanda.
O Reino das Matas, na Quimbanda, representa a origem da vida a partir da água e da vegetação, e compreende todos os ecossistemas vegetais, como florestas e pântanos. Associado ao desenvolvimento de organismos vivos, este reino simboliza sabedoria, cura, prosperidade, harmonia com a natureza e, também, a morte, já que a floresta serve de lar para a vida e a decomposição natural. A presença das cores preto e verde simboliza o equilíbrio entre vida e morte.
Principais Povos do Reino das Matas:
1. Povo das Árvores: Representa as árvores
sagradas, como a Jurema, vistas como moradas espirituais.
2. Povo dos Parques: Atua nos espaços verdes
urbanos, preservando o espírito da floresta nas cidades.
3. Povo das Matas de Praia: Conecta energias
aquáticas e da floresta, representando antigas tribos litorâneas.
4. Povo das Serras: Reflete a continuidade
da floresta nas montanhas.
5. Povo das Cobras: Relacionado à cura,
sabedoria e venenos das serpentes.
6. Povo das Panteras: Composto por guerreiros
e xamãs, simbolizando a conexão com os felinos e a natureza selvagem.
7. Povo das Flores: Associado às fragrâncias
e filtros de amor, domínio do Exu do Cheiro.
8. Povo das Raízes: Representa a nutrição
profunda e a vitalidade da terra.
9. Povo das Campinas: Encabeçado por Caboclos Kimbandas, representa a abertura de espaços para comunidades.
Este reino traz uma conexão profunda com a natureza, onde os espíritos das matas são guias e alquimistas. Dotados de sabedoria e ferocidade, esses espíritos ensinam sobre sobrevivência e coragem e promovem a criação de poções e encantamentos. A influência do Reino das Trevas confere a este reino um aspecto sombrio, desafiando aqueles que o exploram e reforçando o respeito pela complexidade da vida natural.
O Reino Africano representa a ascensão da humanidade, simbolizando o surgimento dos primeiros seres humanos no continente africano e o desenvolvimento de habilidades para manipular e adaptar a natureza. Este reino reflete o respeito e a preservação dos saberes ancestrais africanos, sendo fundamental na estrutura espiritual da Quimbanda. Suas cores são o preto, verde e vermelho, simbolizando a conexão com a ancestralidade e a resistência.
Principais Povos do Reino Africano:
1. Povo do Cativeiro: Espíritos de
escravizados que pereceram em cativeiro, guardiões da sabedoria e feitiçaria.
2. Povo do Quilombo: Espíritos de
escravizados que alcançaram a liberdade e morreram nos quilombos, representando
a ancestralidade das comunidades.
3. Povo dos Guerreiros: Inclui guerreiros e
soldados de várias etnias africanas, espíritos focados em proteção e combate.
4. Povo de Ganga: Feiticeiros e sacerdotes
que manipulavam magia e se comunicavam com divindades ancestrais.
5. Povo Mossurumim: Negros islamizados que
combinavam práticas islâmicas com feitiçaria tradicional.
6. Povo de Angola e Povo do
Congo:
Ligados ao uso de feitiçaria e tradições de defesa mágica, sendo o Povo do
Congo mais agressivo.
7. Povo do Daomé: Focado em práticas vodu
e forte conexão com a ancestralidade, como os Voduns e a linhagem de Agassu.
8. Povo Nàgô: Representantes da cultura yorùbá, conhecidos pelo culto ao Òrìṣà Exu e pela criação de fetiches e assentamentos sagrados.
Este reino simboliza a importância das práticas ancestrais na Quimbanda e na preservação das culturas afro-brasileiras, destacando a riqueza espiritual e a diversidade de povos que compõem suas bases.
O Reino das Almas na Quimbanda é o espaço dedicado à conexão entre o plano físico e o espiritual, simbolizando o aprendizado humano sobre a continuidade da vida além da morte. Este reino honra os ancestrais e o culto familiar, proporcionando cura espiritual e fortalecimento das raízes. Regido por figuras como Exu Rei das Almas e Pombagira Rainha das Almas, o reino se liga à sabedoria ancestral e à superação dos medos.
Principais Povos do Reino das Almas:
1. Povo das Almas: Espíritos antigos e
libertos que ajudam na cura e aconselhamento espiritual.
2. Povo dos Cruzeiros: Guardiões dos cruzeiros,
portais entre o mundo espiritual e o material.
3. Povo dos Caveiras: Espíritos relacionados à
morte e à transformação, regidos por Exu Caveira.
4. Povo das Tumbas: Conectados à memória dos
mortos e ao culto ancestral.
5. Povo das Covas: Representantes da
putrefação e transformação da matéria.
6. Povo do Cemitério: Espíritos do cemitério
que auxiliam em diferentes demandas espirituais.
7. Povo da Calunga: Regentes dos espaços do
além, abrangendo o abismo e o oceano profundo.
8. Povo dos Templos: Espíritos ligados a
lugares de culto e espiritualidade, como igrejas e santuários.
9. Povo dos Hospitais: Almas que promovem cura e sustentam locais de restauração física e espiritual.
Este reino enfatiza o respeito aos espíritos ancestrais e à transição da alma, conectando a vida e a morte num fluxo contínuo de aprendizado e transformação.
O Reino das Encruzilhadas na Quimbanda simboliza os pontos de encontro e transição, onde diversos caminhos e possibilidades se cruzam. Representado pelas figuras de Exu e Pombagira, ele rege a comunicação, o movimento e a abertura de caminhos. As encruzilhadas são espaços de limbo, nem pertencentes a um lado nem ao outro, sendo lugares ideais para pactos e oferendas espirituais.
Principais Povos do Reino das Encruzilhadas:
1. Povo das Encruzilhadas das
Ruas:
Conectados às encruzilhadas urbanas, associados aos pactos e ao convívio
humano.
2. Povo das Encruzilhadas de
Lira:
Presentes em áreas noturnas e boêmias, como ruas com bares e teatros.
3. Povo das Encruzilhadas da
Lomba:
Associados a lugares elevados, como montanhas e colinas.
4. Povo das Encruzilhadas dos
Trilhos:
Ligados aos caminhos rápidos e estradas de ferro.
5. Povo das Encruzilhadas da
Mata:
Habitam encruzilhadas em áreas florestais, representados por caboclos e Exus
das matas.
6. Povo das Encruzilhadas da
Calunga:
Guardiões das encruzilhadas nos cemitérios e locais de descanso dos mortos.
7. Povo das Encruzilhadas da
Praça:
Presentes em praças urbanas, interagem com espíritos e figuras de origem
cigana.
8. Povo das Encruzilhadas do
Espaço:
Associados a planos superiores, e aos movimentos cósmicos e eólicos.
9. Povo das Encruzilhadas da Praia: Conectados aos caminhos aquáticos e ao mar.
O Reino das Encruzilhadas é um elo central na Quimbanda, interligando todos os reinos e permitindo a manifestação de Exu e Pombagira em diversos domínios, mantendo a comunicação entre o plano espiritual e o terreno.
O Reino do Oriente na Quimbanda representa a expansão, o movimento e o intercâmbio cultural e espiritual. Relacionado à busca por conhecimento, magia e rotas comerciais, ele abrange povos diversos e suas práticas ancestrais e místicas. Este reino não se limita ao Oriente geográfico, mas inclui todos os povos estrangeiros ao Brasil, especialmente aqueles que contribuíram com saberes espirituais e de cura.
Principais Povos do Reino do Oriente:
1. Povos Indianos: Focados em curas
holísticas e práticas antigas, como a medicina ayurvédica.
2. Povos do Oriente Próximo: Incluem árabes, persas e
hebreus, conhecidos por sua sabedoria e mistérios espirituais.
3. Povos do Oriente Distante: Representam chineses,
tibetanos, japoneses e mongóis, ligados à energia e comércio.
4. Povos Egípcios: Sacerdotes e
conhecedores de ritos da vida e morte, com conhecimentos astrológicos e
mágicos.
5. Povos Ameríndios: Incluem maias, toltecas
e astecas, reconhecidos por seus sacrifícios rituais.
6. Povos Europeus: Engloba antigos romanos,
celtas e guerreiros místicos da Europa.
7. Povos Ciganos: Especialistas em
divinação, manipulação dos quatro elementos e magia do amor e comércio.
8. Povos do Norte: Habitantes das regiões
gélidas, como escandinavos e xamãs siberianos.
9. Povos das Ilhas: Povos de culturas isoladas em ilhas da Ásia, Oceania e outros arquipélagos.
As cores deste reino são o branco, rosa e verde, com Exu Cigano e Pombagira Cigana como principais regentes. O Reino do Oriente simboliza o mistério e a diversidade espiritual, sempre voltado à busca de prazer, bem-estar, e a troca entre diferentes culturas e conhecimentos místicos.
O Reino das Trevas na Quimbanda representa o uso dos poderes ocultos da feitiçaria para defesa, ataque e proteção pessoal. Ele é associado a aspectos sombrios, temores noturnos e forças ocultas, sem ser considerado maligno ou benigno, mas sim um reino de magia poderosa e complexa. No contexto das Trevas, os espíritos manipulam as energias de escuridão, doenças, venenos e animais totêmicos para garantir proteção ou atingir objetivos específicos.
Principais Povos do Reino das Trevas:
1. Povo do Luar: Trabalham com o poder da
Lua e aspectos da magia noturna.
2. Povo dos Terrores: Associados aos medos e
representados por animais noturnos como morcegos e lobos.
3. Povo da Escuridão: Habitantes das áreas
escuras e das sombras urbanas, como espiões e informantes.
4. Povo das Sombras: Entidades que usam as
sombras para entrega de feitiços e manipulação oculta.
5. Povo das Mirongas: Feiticeiros
especializados em magia para malefícios.
6. Povo das Trevas: Espíritos profundos que
absorvem toda a luz, como Exu Rei das Trevas.
7. Povo dos Assassinos: Mestres na arte da morte
oculta e dissimulação.
8. Povo do Inferno: Representam forças
infernais e o diabolismo.
9. Povo dos Venenos: Conhecedores de plantas e venenos para fins mágicos e bélicos.
Com regentes como Exu Rei das Trevas e Pombagira Rainha das Trevas, este reino é essencial para rituais de feitiçaria intensa e se manifesta em escuridão completa, sendo sua cor associada o preto profundo.
O Reino da Lira é o domínio da Quimbanda onde se manifestam as artes, a música, a boemia e os prazeres humanos. Ele reflete tanto a expressão artística e cultural quanto o lado sombrio das compulsões, vícios e paixões descontroladas. A Lira une forças criativas e destrutivas, incentivando a inspiração, mas também o engano e a ilusão. A regência deste reino é do Exu Rei das 7 Liras, que se associa ao próprio Lúcifer, representando o fascínio e os desafios da cultura e do prazer.
Principais Povos do Reino da Lira:
1. Povo da Lira (Música): Espíritos de artistas e
músicos, que inspiram e influenciam a criatividade.
2. Povo dos Cabarés: Pombagiras e entidades
que lidam com sedução e intimidade, conhecendo os segredos humanos.
3. Povo do Lixo: Inclui mendigos e
nômades que vivem em ambientes de decadência e sobrevivência.
4. Povo do Comércio: Focados na prosperidade
e riqueza, como o Exu Chama-Dinheiro.
5. Povo dos Malandros: Personagens carismáticos
e boêmios, exemplificados por Zé Pelintra.
6. Povo do Cais: Malandros associados à
vida noturna e atividades ilegais nos portos.
7. Povo das Ruas: Espíritos de marginais e
bandidos urbanos que garantem ou perturbam a segurança.
8. Povo das Artes Teatrais: Atores e atrizes,
figuras de talento que oscilam entre fama e decadência.
9. Povo Vagante: Almas perdidas e entorpecidas, representando o esgotamento e a perda de propósito.
As cores do Reino da Lira são preto, vermelho e branco, simbolizando tanto a vitalidade quanto o conflito e a complexidade das emoções humanas.
A cosmovisão da Quimbanda, ao organizar seus Reinos, revela uma complexa estrutura espiritual e cultural que reflete a própria luta e adaptação de povos e tradições em resposta a realidades de dominação e resistência. A Quimbanda, através de seus nove Reinos, apresenta um universo onde o ser humano interage com o visível e o invisível, assimilando forças naturais, sociais e espirituais. Essa organização permite um intercâmbio entre o pandemonium eurasiano e o pandemonium brasileiro, ambos sendo espaços onde a alteridade e a resistência se manifestam de formas distintas e complementares.
1.2. Reinos da Quimbanda e o Pandemonium
Os Reinos da Quimbanda representam esferas de atuação dos Exus e Pombagiras, cada uma com suas especificidades e formas de influência no mundo material e espiritual. Esses reinos organizam as forças que dialogam com as necessidades humanas, como proteção, cura, riqueza, prazer e justiça, e incorporam a presença das almas ancestrais e das forças do desconhecido, como o Reino das Trevas e das Encruzilhadas.
No pandemonium eurasiano, encontramos um conceito semelhante, um espaço onde se encontram entidades e espíritos que fogem da norma das divindades ou santos, revelando um mundo de espíritos ambíguos, complexos e, muitas vezes, paradoxais, que atendem tanto às necessidades quanto aos temores humanos. Esse pandemonium se manifesta em cultos e crenças que envolvem seres espirituais associados às sombras e ao desconhecido, refletindo a alteridade e o desafio à ordem estabelecida.
No pandemonium brasileiro, essa ideia foi adaptada e recontextualizada pela Quimbanda, que absorveu influências indígenas, africanas e europeias, organizando seus próprios reinos espirituais e ampliando seu sistema de crenças em resposta à realidade do Brasil colonial e pós-colonial. O pandemonium brasileiro se torna, assim, uma expressão de resistência e preservação cultural, onde os Exus e Pombagiras, figuras de alteridade, defendem, protegem e atendem aqueles que os veneram, independentemente de status social ou hierarquia religiosa.
1.3. Alteridade e Resistência
A Quimbanda é, essencialmente, uma prática de alteridade e resistência. Suas divindades e práticas se situam fora do espaço ortodoxo religioso, nascendo da convergência das culturas banto, tupi e ibérica, o que criou um sistema de forças que resistem às pressões sociais. A alteridade na Quimbanda se manifesta na figura dos Exus e Pombagiras, espíritos de estrada, de encruzilhadas, de cabarés, de cemitérios e de outros espaços liminares que representam aqueles que desafiam as fronteiras do aceitável ou do normal segundo a moralidade cristã ocidental.
A resistência está, então, embutida na própria existência desses reinos e pandemoniums. Eles preservam o conhecimento ancestral e mantêm vivas as práticas culturais e espirituais que foram historicamente marginalizadas e perseguidas. A Quimbanda usa a alteridade como ferramenta de resistência cultural e espiritual, ao mesmo tempo em que se apropria de elementos da própria cultura estabelecida para reconfigurar sua prática.
1.4. O Reino do Oriente & o Pandemonium Eurasiano
O Reino do Oriente na Quimbanda e o pandemonium eurasiano possuem uma conexão espiritual e simbólica fundamentada na ideia de alteridade e na busca por sabedoria mística e conhecimentos ocultos que transcendem fronteiras culturais e geográficas. Ambos compartilham uma essência que valoriza o outro, o desconhecido e o estrangeiro, que simbolicamente se traduz em uma expansão de consciência e ampliação de perspectivas espirituais.
1.5. A Expansão Cultural e o Conhecimento Oculto
O Reino do Oriente representa, na Quimbanda, o espaço das trocas culturais, o movimento e a expansão para além do familiar. Ele agrega povos de diferentes culturas e tradições que, ao longo dos séculos, trouxeram saberes espirituais e práticos que enriquecem a compreensão da existência humana. O Oriente é, assim, o reino das rotas de comércio e das viagens, mas também da busca espiritual que muitas vezes é velada e oculta.
De forma semelhante, o pandemonium eurasiano é o espaço de manifestação dos conhecimentos esotéricos e espirituais que resistem à uniformização e à ortodoxia. Ele incorpora entidades e arquétipos que representam a sabedoria mística do Oriente próximo e distante, mas também de culturas européias nativas e de tradições marginalizadas ou relegadas ao oculto pela visão cristã ocidental. Dessa forma, ambos os espaços agem como portais espirituais que conectam tradições e saberes distintos, unificando o que é considerado marginal ou estrangeiro.
1.6. A Magia e o Sincretismo
O Reino do Oriente e o pandemonium eurasiano representam também a capacidade de sincretismo e adaptação dos conhecimentos ocultos e mágicos. No Reino do Oriente, essa adaptação ocorre à medida que figuras como Exus e Pombagiras de origem cigana, árabe, asiática ou indígena trazem ensinamentos específicos de suas tradições e práticas mágicas, mesclando-se ao sistema da Quimbanda sem perder sua essência. O Oriente na Quimbanda, portanto, funciona como um elo entre a espiritualidade local e as influências estrangeiras, reforçando a capacidade da Quimbanda de incorporar e transformar elementos externos em suas próprias práticas.
De forma parecida, o pandemonium eurasiano incorpora figuras espirituais e práticas esotéricas que variam de mitos celtas a tradições xamânicas da Ásia e práticas de feitiçaria europeia medieval, promovendo um espaço de encontro e fusão espiritual que não se submete a uma única identidade cultural. Ele é um reflexo do sincretismo cultural e espiritual que atravessa continentes, criando uma arena simbólica onde o estrangeiro e o oculto são reconhecidos como fundamentais para a compreensão da própria espiritualidade e identidade.
1.7. Símbolos de Conexão e Autodescoberta
Assim, o Reino do Oriente na Quimbanda e o pandemonium eurasiano são espaços simbólicos que compartilham a busca pelo conhecimento que transcende fronteiras e desafia normas culturais e religiosas. Eles operam como pontes entre diferentes tradições e sistemas espirituais, promovendo uma integração que valoriza a alteridade. Cada um, à sua maneira, reflete o papel do estrangeiro e do oculto como catalisadores para o autoconhecimento e a expansão espiritual.
1.8. O reino da Lira, Dionísio e a Cultura do Êxtase
O Reino da Lira na Quimbanda, o culto de Dionísio na Grécia e os mistérios e cultos de êxtase têm uma relação profunda baseada no uso ritualístico do prazer, da arte e do êxtase como portais para a transcendência espiritual e a transformação pessoal. Esses elementos aparecem tanto no Reino da Lira quanto no culto dionisíaco como uma celebração e um domínio que envolve tanto o prazer quanto a subversão dos limites sociais e morais, explorando as esferas do espírito humano que desafiam o controle e abraçam o caos como uma força criativa e transformadora.
1.9. O Êxtase e o Transe como Portais de Conexão
No Reino da Lira, a presença de figuras como o Exu Rei das 7 Liras e entidades ligadas aos prazeres e vícios da vida boêmia remete diretamente aos estados de êxtase e transe, muito próximos dos experimentados no culto de Dionísio. Nos rituais dionisíacos, a música, o vinho e a dança eram instrumentos que levavam os participantes a estados alterados de consciência, onde o espírito coletivo e individual se uniam a uma experiência de fusão com a divindade e o Cosmos. Esse tipo de êxtase é uma característica central dos ritos da Lira, onde o álcool, a música e a dança são utilizados para romper com a racionalidade e promover uma entrega espiritual e pessoal.
1.10. A Subversão e o Caos como Elementos Criativos
O culto de Dionísio era um espaço onde as normas sociais eram subvertidas, onde o caos e a embriaguez ofereciam uma saída das estruturas da civilização. O Reino da Lira age de forma semelhante ao abrir espaço para comportamentos e expressões muitas vezes marginalizados, como a boemia, a arte, a luxúria e o vício. Assim como o culto dionisíaco atraía aqueles que buscavam uma ruptura com a vida cotidiana e seus papéis sociais restritivos, o Reino da Lira na Quimbanda congrega espíritos e praticantes que buscam nas artes, na música e nos prazeres mundanos uma forma de expressão e libertação espiritual.
1.11. Arte, Música e a Sedução do Inconsciente
No Reino da Lira, a música e a arte são portas de entrada para o inconsciente e instrumentos que promovem uma reflexão mais profunda sobre os aspectos mais ocultos e obscuros da psique humana. De maneira semelhante, o culto de Dionísio era conhecido por suas encenações teatrais e pela sua ligação com as artes dramáticas, que exploravam as profundezas da psique e da tragédia humana. Essa conexão entre arte e mistério, teatro e êxtase, é um ponto comum entre os dois sistemas, onde a criação artística não é apenas um meio de expressão, mas uma via para acessar o divino e expandir a percepção do sagrado.
1.12. O Êxtase e o Desejo como Forças de Transcendência
Tanto no Reino da Lira quanto nos cultos dionisíacos, o desejo é visto como uma força poderosa que pode tanto elevar quanto destruir. Dionísio, o deus do vinho, do êxtase e da loucura, também representa o poder do desejo e da embriaguez em seus aspectos transformadores. No Reino da Lira, vemos uma ênfase semelhante na ideia de que a entrega aos prazeres da vida e à intensidade das emoções humanas pode levar a uma compreensão mais profunda do eu e das forças espirituais que moldam a existência. Ambos os cultos entendem o êxtase e o prazer não como fraquezas, mas como expressões de uma conexão divina que transcende os limites da experiência ordinária.
1.13. Os Caminhos de Dionísio e da Lira na Transformação Espiritual
Assim, o Reino da Lira e o culto de Dionísio compartilham uma essência comum: ambos celebram o êxtase, a arte, a música e o desejo como meios de transcendência, convidando o praticante a explorar o limite entre o controle e a entrega. Eles oferecem uma visão de espiritualidade onde o prazer e a expressão criativa são valorizados como caminhos válidos para a comunhão com o divino e a libertação das limitações do ego, abrindo espaço para uma experiência mais completa e integrada do ser.
1.14. O Reino das Trevas & a Busca do Poder da Magia
O Reino das Trevas na Quimbanda se relaciona diretamente com a prática da magia negra voltada a conflitos espirituais e a busca pelo poder oculto. Esse reino representa a exploração das forças sombrias, a manipulação das energias densas e ctônicas que habitam os planos materiais mais profundos.
1.15. Poder das Sombras e Conflitos Mágicos
O Povo das Sombras exemplifica o poder de manipular o invisível e utilizar o ambiente sombrio e oculto das ruas e dos becos como canais para a magia e feitiçaria de ataque e defesa. Esses espíritos, como Exu Sete Sombras e Exu Penumbra, operam como mensageiros sutis, sendo capazes de influenciar situações e desestabilizar emocional e espiritualmente o alvo. Em conflitos mágicos, essa habilidade de manipulação das sombras possibilita a entrega de maldições, influências psíquicas e a criação de barreiras.
1.16. Fogo e Destruição Espiritual
O Povo do Fogo, associado ao fogo das fornalhas e crematórios, representa o espírito combativo e a chama inextinguível do poder destrutivo. Os espíritos deste grupo, como Exu Braseiro e Exu Labareda, lidam com as energias elementares do fogo como força transformadora, mas também como arma espiritual. Assim como Prometeu trouxe o fogo como símbolo de conhecimento e poder, esses Exus carregam a chama do saber oculto, usando-a para abrir caminhos para aliados e aniquilar inimigos espirituais.
1.17. Alquimia das Trevas e Venenos
No Povo dos Venenos, os espíritos, como Exu Sete
Venenos e Pombagira Cascavel, simbolizam a prática de uma alquimia obscura, na
qual as ervas e raízes se transformam em elementos bélicos. A atuação deste
grupo nas zonas de tensão e repressão, como prisões e vielas, reflete a ideia
de resistência através da magia, utilizando venenos físicos e espirituais para
minar a saúde, a vitalidade e a estabilidade emocional dos inimigos. Esse
conhecimento é tanto um recurso de defesa quanto de ataque, misturando cura e
destruição, similar à figura do curador-venenoso.
1.18. Espaços Abissais e Segredos Profundos
O Povo dos Abismos e dos Infernos remete a uma profundidade extrema no sentido espiritual, simbolizando áreas de conhecimento e magia que estão ocultas e inexploradas. Esses locais, como as zonas abissais dos mares ou os vulcões, são visualizados como portais para o desconhecido e são considerados pontos de acesso ao poder ancestral da Terra. Exus como Exu Kalunga e Exu Sete Caldeiras do Inferno trabalham nesses ambientes para alcançar poderes primordiais e ctônicos, usados tanto para defesa quanto para a proteção de segredos profundos que sustentam o poder do Reino das Trevas.
1.19. Maldições e Defesa
O Povo das Maldições, formado por entidades como Exu Sete Maldições e Exu Mau Olhado, usa suas habilidades para lançar maldições e atuar em rituais de magia negra, os quais podem enfraquecer ou derrubar o inimigo. Esses espíritos, que habitam túmulos e locais abandonados, são conhecidos pela capacidade de canalizar rancores e injustiças para criar maldições e feitiços duradouros. Essa prática reflete o uso da magia como resistência e vingança, um meio de garantir justiça ao recorrer às forças do além e à escuridão.
1.20. Alteridade e a Busca pelo Poder
O Reino das Trevas é uma representação da alteridade e da resistência espiritual. Ele explora as forças contrárias ao convencional, atraindo espíritos e praticantes que buscam poder através do oculto e das forças das sombras. Este reino resgata a luta pelo poder em seus aspectos mais crus e primitivos, utilizando o simbolismo das sombras, do fogo, do veneno e da morte para estabelecer uma prática mágica que desafia o status quo e resiste às forças que tentam impor limites à liberdade e ao conhecimento espiritual.
Assim, a magia negra no contexto do Reino das Trevas é tanto uma busca pelo poder como uma resistência ativa ao domínio e ao controle, sendo que as energias densas e as práticas de conflito mágico encontram aí seu terreno fértil para se expressar e transformar a realidade.
2. A QUIMBANDA & A ARTE DA GUERRA ESPIRITUAL
A Quimbanda, como tradição espiritual e mágica, oferece uma estrutura única para a prática da guerra espiritual, alinhando-se com táticas de resistência e domínio simbólico e real, especialmente em contextos de luta contra sistemas de poder. Com raízes no saber ancestral africano, a Quimbanda utiliza conhecimentos profundos sobre manipulação de forças espirituais, encantamentos e proteção mágica para assegurar a sobrevivência e empoderar seus praticantes em conflitos, sejam eles pessoais, sociais ou espirituais.
2.1. Estratégias de Defesa e Ataque: Conexão com Milícias Africanas no Congo
Na República Democrática do Congo, milícias e forças locais tradicionalmente utilizam artes mágicas para ganhar vantagem sobre seus inimigos, seja em emboscadas, proteção contra a violência física, ou para confundir os oponentes. Esses grupos de resistência frequentemente recorrem a rituais específicos, símbolos de proteção e amuletos consagrados, destinados a canalizar a energia ancestral, comumente chamada de ngolo (força ou poder vital) na cultura banto, que é essencial para triunfar em batalhas desiguais. Da mesma forma, a Quimbanda enfatiza a defesa mágica e o uso estratégico de espíritos e encantamentos que atuam tanto na proteção dos praticantes quanto na desestabilização de inimigos espirituais e físicos.
2.2. Espíritos de Guerra: Exus e Pombagiras como Guerreiros
Exus e Pombagiras na Quimbanda não são apenas espíritos de comunicação e mediação; eles também atuam como guardiões, mensageiros e guerreiros, prontos para assumir um papel combativo nas batalhas espirituais. Esses espíritos são evocados em práticas de proteção e contra-ataque para neutralizar feitiços, amaldiçoar inimigos e até mesmo proteger fronteiras espirituais e físicas. Nas milícias africanas, práticas mágicas semelhantes incluem a evocação de espíritos dos mortos e dos ancestrais para blindar combatentes contra balas ou ataques surpresa, ajudando-os a confrontar forças maiores e mais armadas.
2.3. Alquimia de Defesa: Feitiçaria de Proteção e Invulnerabilidade
Em práticas tradicionais do Congo, como as empregadas por grupos armados, as poções e pós (chamados atins ou dawa) são preparados com elementos da flora e fauna locais, usados tanto para invulnerabilidade quanto para invisibilidade ou camuflagem mística. Similarmente, a Quimbanda valoriza o uso de pós, raízes e folhas consagradas em seus rituais, principalmente dentro do Reino das Matas e do Reino das Trevas. Essas substâncias são empregadas para proteção física, fortalecer a coragem dos praticantes e desestabilizar o emocional e espiritual dos inimigos. A prática de aplicar venenos ou remédios mágicos — ambos capazes de cura ou de prejuízo — reflete diretamente o modo como se desenvolvem as práticas de resistência entre grupos de guerrilha e defensores de territórios no Congo.
2.4. Magia Negra e Resistência ao Poder Estatal
A Quimbanda ensina que a magia pode ser um ato de resistência. Exus e Pombagiras associados ao Reino das Trevas, como Exu Sete Sombras e Exu Calunga, operam como mediadores de poder, capazes de envenenar, amaldiçoar e conduzir rituais de quebra de feitiços impostos por opressores. Na prática das milícias africanas, encontramos técnicas de feitiçaria que também se configuram como um desafio direto à autoridade do Estado, permitindo aos combatentes resistirem a forças armadas e a intervenções externas. A magia serve, assim, para empoderar combatentes e revigorar seu espírito de luta, subvertendo as tentativas de controle e manipulação por parte das autoridades.
2.5. Espaços de Poder e Territórios de Guerra Espiritual
Tanto na Quimbanda quanto nas práticas de resistência mágica no Congo, os territórios simbólicos são elementos fundamentais na guerra espiritual. Locais específicos, como encruzilhadas, cemitérios, florestas e até ruínas, são pontos de concentração de poder espiritual e de resistência. Os praticantes da Quimbanda utilizam esses espaços para evocar energias densas e guias espirituais que defendem ou contra-atacam, como os Exus dos Abismos ou dos Venenos. Da mesma forma, as milícias do Congo incorporam esses espaços como territórios de poder onde encantamentos e proteção mágica podem ser garantidos, permitindo que sua força espiritual seja intensificada nesses locais.
2.6. Quimbanda, Arte de Guerra Espiritual e Resistência Mágica
A Quimbanda e as práticas mágicas das milícias africanas exemplificam a busca pela autodefesa e pela autonomia por meio da manipulação do poder espiritual. Ambas as tradições revelam como a magia negra pode funcionar como uma forma de resistência e sobrevivência em contextos de conflitos extremos, colocando em jogo o poder oculto como ferramenta essencial para contestar a opressão, afirmar a soberania espiritual e desafiar forças aparentemente insuperáveis.
A Quimbanda enfatiza a magia de combate e proteção através dos Exus e de suas diversas formas de atuação, situando-se como uma prática profundamente voltada para a guerra espiritual. Este conceito está enraizado na habilidade dos Exus em manipular energias de alta intensidade, muitas vezes alinhadas a armas espirituais como punhais, facas, lanças e tridentes, que são consagrados dentro dos assentamentos dos Exus para realizar ataques e defesas, simbolizando hierarquia e poder dentro da magia belicosa. Estas armas espirituais, como o tridente, representam o domínio dos elementos e têm uma função essencial tanto em ataques diretos quanto em defensas estratégicas. Esse tipo de magia pode ser vista nas práticas de feitiçaria voltadas à guerra e ao conflito, onde cada Exu, dependendo do seu domínio, age em função de sua especialidade.
No contexto africano, especificamente entre as milícias do Congo, práticas mágicas também têm sido historicamente utilizadas como formas de resistência e domínio de poder sobre o território e sobre os próprios inimigos. Essas práticas incorporam elementos da natureza e rituais de proteção que visam fortificar o guerreiro e invocar poderes ancestrais, muitas vezes através de amuletos e substâncias naturais que conferem invulnerabilidade ou potencializam a força física e espiritual. Na Quimbanda, esta prática se manifesta na interação com o Povo dos Venenos, espíritos que conhecem profundamente a flora e a fauna e utilizam de substâncias para criar feitiços que atingem emocional e espiritualmente o adversário, similar às práticas de envenenamento simbólico ou real usadas para deter ou desestabilizar o inimigo.
Dessa forma, os Exus, sobretudo aqueles pertencentes ao Reino das Trevas e ao Reino das Encruzilhadas, desempenham o papel de generais espirituais e se especializam em subverter o equilíbrio de poder, seja para ataque ou defesa. As artes mágicas de Quimbanda utilizam uma vasta gama de elementos simbólicos e materiais que, quando manipulados, transformam o ambiente ao redor, criando proteção ou mesmo campos energéticos de combate, um ponto essencial para a compreensão de sua aplicação em conflitos e resistências modernas e ancestrais.
3. QUIMBANDA, O LIVRO DE
SÃO CIPRIANO & A ARTE DA GUERRA ESPIRITUAL
A feitiçaria da Quimbanda encontra uma forte intersecção com os ensinamentos e práticas descritos em O Livro de São Cipriano, onde a magia ibérica e a magia fáustica exercem influência significativa. O Livro de São Cipriano é um grimório clássico do Ocultismo, conhecido por compilar feitiços, invocações e práticas de necromancia que são utilizados para defesa espiritual, ataque e proteção, elementos essenciais no contexto da guerra mágica e do combate espiritual que também são centrais à Quimbanda.
Influência Cipriânica na Quimbanda: A Quimbanda utiliza-se de práticas ligadas a São Cipriano, considerado o santo bruxo da magia cristã ocidental, cujos feitiços e orações têm como foco a invocação de poderes espirituais para proteção e subjugação de inimigos. Muitos dos rituais de São Cipriano são voltados ao domínio sobre entidades e energias astrais, incluindo feitiços de proteção e feitiços de ataque, que podem ser relacionados aos Exus do Reino das Trevas e do Sub-Reino das Sombras, os quais agem estrategicamente em locais escuros e sob condições astrais adversas para realizar ataques e se proteger.
Magia Ibérica e Fáustica: A influência da magia ibérica é especialmente forte nos encantamentos e invocações de São Cipriano, que trazem elementos de tradições da Península Ibérica e da magia cristã medieval. A Quimbanda incorporou parte desse legado, especialmente na forma de uso de palavras de poder e conjurações que lembram o sistema simbólico cristão adaptado em O Livro de São Cipriano, e na utilização de cruzes, caldeirões e vasos em rituais. A magia fáustica, por sua vez, encontra similaridade nos pactos e conjurações feitas para Exus e Pombagiras, onde há uma negociação explícita de poderes e vantagens espirituais em troca de oferendas ou obrigações, assemelhando-se ao pacto com o Diabo no mito de Fausto, adaptado na Quimbanda para uma lógica de relacionamento de poder.
Aplicação na Guerra Espiritual e Combate Mágico: Nos feitiços de São Cipriano, encontramos rituais de amarração, destrancamento e defesa, que têm sua equivalência direta nos trabalhos de Quimbanda voltados à resolução de conflitos e à abertura de caminhos. Exus como Tranca-Ruas, que possuem domínio sobre as encruzilhadas e caminhos de poder, são diretamente evocados em rituais de combate, onde a proteção contra inimigos, o ataque a adversários espirituais e a defesa da própria energia são prioridades. A arte de combate espiritual, por meio de feitiçaria, evoca na Quimbanda esses aspectos de São Cipriano: a utilização de sigilos, rezas cifradas e elementos naturais para construir barreiras espirituais e atacar energeticamente os opositores.
4. A TEOLOGIA NOTURNA DA QUIMBANDA
A Teologia Noturna da Quimbanda é um modelo cosmovisivo onde o poder, a sabedoria e a atuação dos Exus e Pombagiras se enraízam em uma matriz lunar e noturna. Esse modelo é um reflexo da ancestralidade sublunar, que compreende a realidade espiritual em um espectro entre a Terra e a Lua, distanciando-se do reino dos espíritos solares e celestiais. Essa visão reflete um sistema onde a Lua e a escuridão estão no ápice, enquanto o Sol ocupa as profundezas, simbolizando o conhecimento e o poder oculto, um conceito paralelo ao Sol da Meia-Noite nas cosmologias antigas, onde a luz e o poder são encontrados no interior da escuridão e nos mundos inferiores.
A Quimbanda adota a perspectiva de que a espiritualidade, o poder e os mistérios não estão ligados a uma força celestial superior, mas aos reinos telúricos e aos éteres sublunares. Esta corrente se diferencia das cosmologias que definem os deuses e espíritos em esferas superiores; na Teologia Noturna da Quimbanda, os Exus e Pombagiras são Filhos da Lua e de forças elementais e ctônicas, possuindo uma presença atrelada à Terra, com domínio sobre os quatro elementos em uma perspectiva de Submundo. Esse domínio não é meramente abstrato, mas funcional, dando-lhes poder sobre as direções e as esferas de influência material e espiritual.
4.1. Estrutura Sublunar e os Reinos dos Exus
A Quimbanda vê o reino sublunar como composto de sete níveis, onde o primeiro e mais elevado é a Lua. Os Exus e Pombagiras, espíritos regentes desse reino, são responsáveis pela transição e movimentação de energias entre esses níveis, com a Lua e o Sol como polos opostos que garantem equilíbrio e continuidade cíclica. Sob esse prisma, o Sol ocupa o fundo do Submundo, onde se estabelece como um Sol Noturno que governa os processos ocultos e alquímicos de transformação.
4.2. Quatro Elementos e Povos Espirituais
A Teologia Noturna organiza os Exus e Pombagiras em função dos quatro elementos, cujos poderes são expressos nas formas simbólicas da Terra, Água, Ar e Fogo. Esses elementos são a essência do poder natural que Exus e Pombagiras utilizam para se manifestar e exercer sua autoridade. Por exemplo:
·
Fogo:
Associado ao Submundo, o fogo na Quimbanda é o espírito, a gnose e a luz oculta
nas sombras. Espíritos como Exu Fogo e Pombagira Espalha Brasas dominam esse
elemento, utilizando-o tanto como proteção quanto como arma espiritual.
·
Terra: Ligada ao mundo material e à força telúrica, os Exus das
Pedras e os espíritos que habitam cemitérios expressam essa energia,
representando a sabedoria e o poder dos antigos.
·
Água:
Como nos antigos sistemas gregos, o oceano é uma via de transição para o
Submundo. Espíritos aquáticos da Quimbanda utilizam esse elemento como passagem
e meio para a manifestação.
· Ar: Simbolizando o espírito errante, o ar é associado aos daimōnes e espíritos intermediários que vagam entre as regiões da Terra e da Lua.
4.3. A Lua e os Exus como Guardiões Noturnos
A Lua é a soberana do céu noturno e, na Quimbanda, simboliza a influência espiritual sobre os ciclos da natureza e o mistério. A associação de Exu e Pombagira com a Lua representa o poder de atuar nas sombras e manejar forças invisíveis. Isso reflete o entendimento de que Exus e Pombagiras são, em essência, entidades de mistério e transição, guardiões das encruzilhadas noturnas que operam no limiar entre o mundo visível e o invisível, o consciente e o inconsciente.
4.4. A Herança da Goécia e a Tradição Subterrânea
A influência da goécia sobre a Quimbanda, conforme transmitida pelo Grimorium Verum, introduz a ideia de que os espíritos da Quimbanda são descendentes das tradições sublunares e aéreos, sendo os Exus e Pombagiras os herdeiros dessas linhagens espirituais. Esse aspecto evidencia uma continuidade com as tradições de magia europeias, em que entidades da Terra e do Ar são invocadas para realizar grandes feitos de proteção, ataque e manipulação dos elementos.
4.5. A Profundidade dos Reinos Inferiores e o Poder do Oculto
A Quimbanda vê o Submundo não como um local de sofrimento eterno, mas como um campo fértil de transformação e aprendizado. É onde se encontram os Exus e Pombagiras que detêm o conhecimento das sombras, da magia profunda e da alquimia espiritual. Esse reino oferece tanto o poder de destruição quanto o de renovação, um reflexo da necessidade de integração das forças luminosas e sombrias na jornada espiritual, ao invés de suprimir as partes ocultas da psique.
A Teologia Noturna da Quimbanda oferece uma visão da espiritualidade como uma força que emerge das profundezas da Terra e das regiões sublunares. Ao invés de buscar uma ascensão celestial, a Quimbanda valoriza o mergulho profundo nas sombras e o entendimento de que o verdadeiro poder espiritual reside na aceitação e manipulação de todas as facetas do mundo material e espiritual. Essa teologia é uma celebração do mistério, do poder noturno e da complexidade do Universo, onde o conhecimento reside tanto na luz quanto na escuridão, e onde os Exus e Pombagiras atuam como senhores de uma noite sagrada, guardiões das forças mais antigas e, ao mesmo tempo, guias para a transformação e emancipação espiritual.
5. QUIMBANDA & OCULTISMO
A Quimbanda e o Ocultismo partilham uma base comum na prática da magia, especialmente na manipulação de energias através da doutrina da simpatia. A Quimbanda brasileira e os sistemas ocultistas ocidentais, como o descrito em textos clássicos do Ocultismo e na obra O Livro de São Cipriano, utilizam práticas que visam a manipulação das forças da natureza e das energias sutis presentes no mundo visível e invisível. Estas energias são entendidas como fluxos de uma força vital, ou força ódica na terminologia da Quimbanda, um conceito semelhante ao magnetismo animal de Mesmer e à luz astral de Eliphas Levi.
5.1. A Doutrina da Simpatia e a Manipulação de Energias na Quimbanda e Ocultismo
Na Quimbanda, a doutrina da simpatia refere-se à capacidade de conectar elementos materiais e espirituais em uma rede de correspondências, onde objetos, oferendas, pontos riscados e cantados são empregados para canalizar e direcionar as energias necessárias para a manifestação de desejos e vontades dos operadores. Essa técnica está intimamente ligada à utilização dos Exus e Pombagiras como agentes universais, representando forças masculinas e femininas que interagem para gerar equilíbrio no campo espiritual e realizar milagres através da magia.
Essa visão de simpatia e correspondência está presente também em sistemas mágicos europeus, particularmente no hermetismo alexandrino e nas obras de pensadores neoplatônicos como Jâmblico e Proclo. Para esses sistemas, os elementos terrestres e astrais estão interligados e, como na Quimbanda, podem ser influenciados e movidos por uma série de ritos e objetos que servem como condutores de energia. Na prática da Quimbanda, essa simpatia se expressa através da macumba. i.e. feitiços e ritos em que Exus e Pombagiras aceitam pagamento e oferendas para realizar trabalhos direcionados, seja para proteção, atração ou combate espiritual.
5.2. A Herança da Magia Ocidental e o Papel dos Espíritos Mercuriais
A Quimbanda incorpora muitas técnicas de controle e manipulação espiritual que se alinham com práticas ocultistas da magia europeia, como a evocação de demônios e daimōnes na goécia. Os Exus e Pombagiras da Quimbanda desempenham papel semelhante aos espíritos mercúrios da goécia, que são neutros e podem agir segundo a vontade do operador, contanto que sejam devidamente recompensados. Esta relação é visível no início do Grimorium Verum, onde se afirma que os espíritos atendem a contratos desde que recebam suas devidas oferendas, e reflete a ideia na Quimbanda de que sem Exu não se faz nada, uma alusão direta ao papel crucial dos intermediários espirituais no êxito dos trabalhos.
Esse pragmatismo mágico está profundamente enraizado no que Wouter J. Hanegraaff define como práticas de controle para influenciar a realidade, ou seja, rituais e encantamentos que agem sobre forças naturais e sobrenaturais. Na Quimbanda, esses elementos de controle são os agentes mágicos universais: a cachaça, o fumo, o sangue, a pólvora e os padês (oferendas rituais), que são cuidadosamente escolhidos de acordo com suas correspondências espirituais. Essa escolha ressoa com o platonismo teúrgico, que usava a mesma lógica de correspondência para atrair deuses e espíritos por meio de oferendas apropriadas.
5.3. Magia Ibérica e São Cipriano na Quimbanda: Influências Diretas na Guerra Espiritual
A magia ibérica e O Livro de São Cipriano também influenciaram a Quimbanda, especialmente nas práticas de combate espiritual e defesa mágica. A obra de São Cipriano, com seus feitiços para proteção e ataques, deu à Quimbanda ferramentas para enfrentar forças hostis, um reflexo direto do pragmatismo presente na macumba, onde a magia pode ser tanto protetora quanto ofensiva. Na Quimbanda, a feitiçaria se expande para o uso de pontas, pontos riscados e amuletos, práticas herdadas e adaptadas da magia cipriânica, que são executadas com uma intenção voltada ao confronto de inimigos espirituais e à manutenção de domínio e equilíbrio.
A tradição cipriânica também trouxe à Quimbanda o uso de invocações, selos e objetos de poder carregados com força espiritual e que representam, no contexto da feitiçaria, a influência dos espíritos sobre o mundo físico. Esse elemento de magia prática e ritual se encontra em muitas receitas de Cipriano e reforça a conexão espiritual ibérica na Quimbanda, que busca não apenas a realização de desejos pessoais, mas a supremacia espiritual.
5.4.A Força Ódica e o Equilíbrio entre Exus e Pombagiras
Assim como o Ocultismo europeu utiliza a polaridade de forças para efetivar ritos, a Quimbanda funciona por meio da interação de energias masculinas e femininas, refletindo um equilíbrio na natureza. A força ódica da Quimbanda é polarizada por Exus e Pombagiras que representam o dualismo essencial para a prática mágica, onde Maioral, a figura andrógina central, aglutina essas forças. Esse equilíbrio é fundamental para o operador manipular as energias de maneira eficaz e vincular a feitiçaria à sua intenção.
A Quimbanda, ao se alinhar com o Ocultismo, permite ao operador não apenas compreender, mas dominar forças externas ao conjurar espíritos e direcionar energias por meio da simpatia. Isso reforça uma visão onde o praticante, por meio da ciência sagrada mencionada por Proclo, utiliza a Quimbanda e o Ocultismo para transcender e manipular as barreiras entre o visível e o invisível, entre o físico e o espiritual, buscando não apenas influência, mas também poder sobre sua própria realidade.
CONCLUSÃO
Os Reinos da Quimbanda, o pandemonium eurasiano e o pandemonium brasileiro se entrelaçam como espaços de alteridade que permitem que indivíduos e coletividades marginalizadas fortaleçam suas identidades e resistam a processos de opressão e assimilação. Na Quimbanda, essa resistência é uma prática viva, sustentada por uma relação dinâmica com o mundo espiritual, onde os reinos e suas entidades proporcionam não apenas proteção, mas uma reinterpretação contínua da identidade e da força coletiva dos praticantes. Em suma, a Quimbanda se revela como um movimento de resistência cultural e espiritual que valoriza o poder transformador da alteridade, desafiando hierarquias e reconquistando a autonomia dos que se encontram na margem.
A Quimbanda emerge como uma prática onde a manipulação das forças espirituais e naturais se torna uma arte complexa de feitiçaria, enraizada em tradições de várias partes do mundo. Ao integrar elementos do Ocultismo, da magia ibérica e das doutrinas de simpatia e polaridade, a Quimbanda se revela como um sistema de magia altamente pragmático e adaptável. Ela abraça a ideia de que a espiritualidade não está desvinculada das forças telúricas e sublunares, mas sim que opera nelas e através delas, refletindo uma teologia noturna em que a Lua, as sombras e os espíritos intermediários (os Exus e Pombagiras) são centrais.
A influência de O Livro de São Cipriano e das tradições ibéricas trouxe à Quimbanda uma herança de magia de combate e proteção, enquanto as ideias de simpatia e correspondência moldam a maneira como os rituais e as oferendas são preparados. Na Quimbanda, o praticante aprende que as energias, aqui entendidas como correntes ódicas, se movem conforme a vontade do operador, e que o equilíbrio entre as forças masculinas e femininas – representadas por Exus e Pombagiras – é essencial para a realização eficaz de um trabalho mágico. Esse equilíbrio não é meramente um conceito de harmonia, mas uma estrutura de poder, uma ferramenta de domínio espiritual.
Assim, a Quimbanda aparece como uma síntese mágica que não impõe julgamentos morais sobre o uso da feitiçaria. Em vez disso, enfatiza o valor do conhecimento técnico e da experiência no uso das forças espirituais, celebrando a capacidade do operador de se comunicar, negociar e pactuar com entidades espirituais autônomas. Esse pacto, similar à ideia de contrato no Grimorium Verum e nos tratados de magia europeia, faz da Quimbanda um sistema em que o operador e o espírito trabalham em um acordo direto, onde Exu, como intermediário, é fundamental para que qualquer ação mágica se efetive.
Por fim, a Quimbanda se destaca como uma prática
em que a espiritualidade e a feitiçaria são expressões inseparáveis de uma
visão de mundo dinâmica e relacional, que se ajusta às necessidades do
praticante e o capacita a dominar, moldar e transformar sua realidade através
do poder da magia. Com essa amálgama de influências, a Quimbanda reafirma-se
como uma prática onde o invisível e o visível, o espiritual e o material, se
encontram em perfeita simbiose, uma expressão de resistência cultural e
autodomínio espiritual, onde cada operação mágica reafirma o papel do ser
humano na contínua criação e transformação do mundo ao seu redor.