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QUIMBANDA, SACRIFÍCIO & TRANSMISSÃO

Série: Teurgia & Cabalá Crioula

 

 Por Táta Nganga Kamuxinzela 

@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago

 

Quimbanda é transmissão! Esse é um dos bordões mais utilizados por nós, porque Quimbanda se trata de transmissão de àṣẹ (yorùbás), moyo (bantos), mana (polinésios), hekau (egípcios), imperium (romanos), dynamis ou charis (gregos), pneuma (Hermética), i.e. força mágica de realização. Essa definição é técnica, porque tudo o que possui existência e devir, para realizar-se, deve nutrir-se através dessa força mágica que a tudo permeia e vivifica; em outras palavras, é o àṣẹ que propicia a realização de todas as coisas na existência e no devir. Por isso Quimbanda é progresso, como dizemos, porque ela transmite essa força mágica. No contexto do culto essa força mágica é transmitida de inúmeras maneiras de um táta-nganga (mestre) para os kimbandas (iniciados) e ngangas (sacerdotes), na forma de fundamentos, dentre os quais, instruções magísticas, tecnologias mágicas, outorgas hierárquicas, sacrifícios e alimentação, i.e. o consumo da carne dos sacrifícios. O àṣẹ, a força mágica, permeia todas essas formas de transmissão, alimentando, vitalizando, enriquecendo o àṣẹ pessoal de todos que o recebem. 

O sacrifício animal foi o primeiro impulso religioso que o homem desenvolveu para reverenciar os deuses ancestrais (theo-chthonius) conectados aos poderes da terra. Como mencionei no texto Telestikē, a morte foi o primeiro símbolo hierático do homem, a primeira experiência de conexão com o mundo dos espíritos, no qual habitam os ancestrais. A morte, por meio do sacrifício, passou a ser reverenciada religiosamente e, portanto, tornou-se deificada e como tal, passou a deificar os ancestrais.[1] 

No texto Telestikē também menciono que o sacrifício é o eixo teúrgico da Quimbanda, porque dele dependem todos os fenômenos e processos do culto: o refinamento da capacidade oracular, da incorporação mediúnica, o processo iniciático da catabáse etc. O sacrifício é o motor que aciona e o combustível que impulsiona o aprimoramento das faculdades paranormais. No momento da imolação animal, abre-se um portal de poder que coloca em movimento a força mágica de realização através do sangue do animal. É um pensamento religioso do Mundo Antigo que essa força mágica está diretamente conectada ao sangue enquanto o animal ainda está vivo. Na Hermética esse poder mágico, o pneuma, está diretamente associado ao sangue que, ao perdê-lo, se coagula: o pneuma, passando através das veias e artérias e do sangue, move o ser vivo e, de certa forma, o sustenta. Por isso, alguns consideram a alma como sendo o sangue, errando quanto à natureza, não sabendo que primeiro o pneuma deve retornar à alma e então o sangue coagular e as veias e artérias esvaziar-se, e então o ser vivo perecer; e isto é a morte do corpo.[2] Tanto no Mundo Antigo quanto nas tradições de cabalá crioula, é uma prática ritual comum verter o sangue do animal imolado, mas ainda vivo, sobre os fetiches do culto: estátuas, assentamentos, instrumentos ritualísticos diversos etc. que, a partir daí, têm seu poder mágico renovado. 

Os yorùbás têm um termo técnico para o indivíduo que possui e é capaz de transmitir a força mágica: ìyálàṣẹ, a mãe do àṣẹ, e bàbálàṣẹ, o pai do àṣẹ. Este indivíduo transmite e planta o àṣẹ nos seus filhos, i.e. os iniciados no culto. Na Quimbanda o táta-nganga é o pai do àṣẹ e a mameto é a mãe do àṣẹ. Eles são os responsáveis dentro do culto por plantar e transmitir o àṣẹ da Quimbanda a candidatos a iniciação, adeptos em desenvolvimento, e aos táta-ngangas aprontados. O àṣẹ recebido é acumulado, enriquecido e desenvolvido a cada nova transmissão. A força mágica recebida na forma de fundamentos distintos, por outro lado, i. alimenta a alma e o resultado psiúrgico dessa transmissão é o refinamento das qualidades mediúnicas, i.e. da paranormalidade, e o recondicionamento das forças e capacidades da mente (memória, cognição, imaginação etc.); ii. aumenta e atualiza as técnicas e tecnologias mágicas do feiticeiro, preparando-o magisticamente para imersões mais profundas na feitiçaria ctoniana da Quimbanda, seja para fins de guerras mágicas, portanto, ataque e defesa, ou para objetivos de crescimento e aprimoramento pessoal. 

Sendo o sacrifício a ferramenta mágico-religiosa par excellence para a comunicação e reverência aos deuses, uma das principais funções soteriológicas e, portanto, purificatórias e revitalizantes do sacrifício nas crenças religiosas do Mundo Antigo, foi o consumo da carne dos animais imolados. Na Grécia antiga o valor do sacrifício estava associado diretamente ao consumo da carne, e não a matança, uma crença religiosa hierática das mais primitivas. O indivíduo responsável por cortar e distribuir a carne para população possuía o mesmo valor sacerdotal do indivíduo responsável pela imolação sacrificial.[3] 

Os deuses reverenciados na Quimbanda são os Heróis do culto, os Exus e Pombagiras. Assim como os magos e teurgos (sacerdotes dos deuses), os feiticeiros (sacerdotes dos deuses ancestrais) do Mundo Antigo faziam, os kimbandas no Brasil também reverenciam seus deuses compartilhando com eles a carne dos animais abatidos no sacrifício. O momento do consumo da carne do sacrifício coroa toda a cerimônia sacrificial, quando homens e deuses se sentam juntos para comer. Nas crenças religiosas do Mundo Antigo o banquete ofertado aos deuses não possui finalidade apenas soteriológica, mas fundamentalmente social e política.[4] Como mencionei no livro Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia, o rito imita e reforça o mito, cristalizando no imaginário de uma comunidade, religião, estado, cultura etc. os padrões simbólicos e códigos hieráticos que ele contém, que se disseminam no comportamento cotidiano da vida social e no folclore que se desenvolve a partir daí. O consumo da carne dos animais imolados no rito sacrificial é o ápice hierofântico deste processo, pois ao se consumir a carne ofertada aos deuses, consome-se os próprios deuses, suas virtudes, força e poder através de seus códigos e símbolos. 

Ao se consumir a carne ofertada aos deuses, em outras palavras, recebe-se uma parte do poder deles. Na Quimbanda, portanto, o consumo da carne dos ritos sacrificiais aos Gangas também é muito importante: quando nos sentamos a mesa de Exu para compartilharmos com ele seu banquete, recebemos dele uma parte de seu àṣẹ, de seu poder. O momento da alimentação é, dessa maneira, um ritual antropofágico onde se pode assimilar toda força e poder despertos e colocados em movimento no momento da imolação sacrificial. 

O sacrifício e o consumo da carne do animal imolado, portanto, tem uma função civilizatória, porque integra em um só momento sociedade e Cosmos; para primeira, com objetivos de progresso; para o segundo, com objetivos de manutenção da ordem. 

Para manutenção da força e coesão de um templo ou chão de Quimbanda, o sacrifício e o banquete que dele se deriva é um evento-ritual dos mais importantes. É neste momento que o táta-nganga ou a mameto reforçará seu àṣẹ na alma de todos os seus iniciados, que o receberão e o assimilarão como alimento. É, deste modo, uma comunhão de deuses e homens, estruturando os laços de fraternidade e união entre todos. Compartilhar da mesa de um táta-nganga de Quimbanda é, portanto, compartilhar de seu àṣẹ. De igual modo, no Mundo Antigo, essa estrutura ritual remonta a um período anterior a formação da pólis, quando o pater famílias (o pai da família) era o sacerdote que sacrificava e ofertava a carne em banquete aos deuses ancestrais. Era um momento de comunhão entre vivos e mortos, que celebravam em família consumindo a carne e obtinham, do pai da família, as orientações dos espíritos ancestrais. Encerro com Fustel, que disserta sobre o tema: 

Vimos acima que a principal cerimônia do culto doméstico era um banquete, chamado sacrifício. Comer um alimento preparado sobre o altar foi, segundo parece, a primeira forma dada pelo homem ao ato de religião. A necessidade de se comunicar com a divindade era satisfeita por esse banquete, para o qual a própria divindade era convidada, recebendo a parte que lhe cabia. A principal cerimônia do culto da cidade consistia também em um banquete semelhante; devia ser realizado em comum, por todos os cidadãos, em honra das divindades protetoras. O costume desses banquetes públicos era universal na Grécia; acreditava-se que a salvação da cidade dependia de sua realização.[5]

O costume dos banquetes sagrados estava em vigor tanto na Itália quanto na Grécia. Aristóteles afirma que já existiam entre os antigos enótrios, oscos e ausônios. Virgílio conservou sua lembrança por duas vezes na Eneida: o velho Latino recebe os enviados de Enéias, não em sua casa, mas em um templo «consagrado pela religião dos antepassados, onde se realizam os festins sagrados, após a imolação das vítimas, e onde todos os chefes de família sentam-se juntos em longas mesas.» — Mais adiante, quando Enéias chega à casa de Evandro, encontra-o celebrando o sacrifício; o rei está no meio povo; todos, coroados de flores, e sentados à mesma mesa, cantam um hino em louvor do deus da cidade.[6]

Esses costumes antigos dão-nos ideia do vínculo estreito que unia os membros de uma cidade. A associação humana era uma religião; seu símbolo era o banquete público.[7]

Imaginemos uma daquelas pequenas sociedades primitivas reunidas, pelo menos os chefes de família, em uma mesma mesa, vestidos de branco e coroados de flores; todos fazem juntos a libação, recitam as mesmas preces, cantam os mesmos hinos, comem a mesma comida, preparada sobre o mesmo altar; no meio deles estão presentes os antepassados, e os deuses protetores participam da refeição. Daí se originou a união íntima entre os membros da cidade. Vem a guerra, e os homens se lembrarão, segundo uma expressão antiga, «de que não devem abandonar o companheiro de fileiras, com o qual ofereceu os mesmos sacrifícios e as mesmas libações, e a cujo lado participou dos banquetes sagrados». — Com efeito, esses homens estão ligados por algo mais forte que o interesse, a convenção, o costume, une-os a comunhão sagrada, piedosamente realizada na presença dos deuses da cidade.[8]



[1] Walter Burket. Homo Necans. The Anthropology of Ancient Greek Sacrifical Ritual and Mith. University of California Press, 1983, pp. xxiii. Veja também Fustel de Coulanges. Cidade Antiga. Editora das Américas S.A. EDAMERIS, 1961, caps. 1 e 2.

[2] Vinicius Pimentel Ferreira. Doxografia hermética: estudo dirigido do Hermetismo antigo. Publicação do autor, pp. 90. Corpus Hermeticum, Capítulo X, Verso 13.

[3] Jennifer W. Knust e Zsuzsanna Várkelyi, Ancient Mediterranean Sacrifice. Oxoford University Press, 2011, pp. 9.

[4] Ibidem, pp. 10.

[5] Fustel de Coulanges. Cidade Antiga. Editora das Américas S.A. EDAMERIS, 1961, pp. 110.

[6] Ibidem, pp. 111.

[7] Ibidem.

[8] Ibidem, pp. 112.




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