Série:
Teurgia & Cabalá Crioula
Por Táta Nganga
Kamuxinzela
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AS
CORRENTES DE FORÇA ÓDICA
O termo força ódica foi cunhado como sinônimo de energia vital (o moyo dos bantos ou àṣẹ dos yorùbás) em meados do Séc. XIX pelo Barão Carl von Reichenbach (1788-1869), que buscou demonstrar que se tratava da natureza dos mesmos fenômenos demonstrados anteriormente por Franz Anton Mesmer (1734-1815) com o magnetismo animal. Eliphas Levi (1810-1875) posteriormente postulou que a força ódica se manifesta como correntes ou fluxos de força (energia) polarizada dentro da Luz Astral, que é a própria Alma do Mundo platônica. Aluísio Fontenelle (1913-1952) foi o ocultista brasileiro que trouxe esses conceitos para dentro da Quimbanda na síntese que estabeleceu e deu forma ao culto, estruturando o ambiente mágico da Quimbanda por meio da interação equilibrada da força ódica. No terceiro volume do Daemonium menciono:
A
Quimbanda opera por meio da interação e do equilíbrio das forças ódicas
positivas (ativa, masculina) e negativas (receptiva, feminina) no corpo do Chefe Império Maioral, a Luz Astral, por meio de agentes mágicos universais, os Exus (que
representam a potência ativa-masculina), e as Pombagiras (que representam a
potência receptiva-feminina). O equilíbrio dessas forças que hora se opõem e
hora se congruem, está em Maioral, a potência andrógena que as aglutina e as
manipula.
E na Revista Nganga No. 11, explicando o Brasão Imperial do Chefe Império Maioral, menciono: O magista está lidando com as correntes opostas de força ódica dentro da luz astral e que mantêm unidas a dinâmica do Cosmos manifesto. O equilíbrio entre luz e escuridão, positivo e negativo, requer a compreensão de um importante princípio dos polos opostos, caracterizados como masculinos e femininos. Foi assim, pensando nisso, que Levi apresentou ao mundo a imagem teriomorfa de Baphomet.
A magia da Quimbanda opera por meio do equilíbrio de forças ódicas polarizadas. Em sua concepção mítica, a partir da demonologia do Grimorium Verum, essas forças polarizadas são representadas como provenientes de uma fonte: Lúcifer, uma potência andrógena, que projeta duas forças polarizadas, Beelzebuth (a corrente solar masculina) e Ashtaroth (a corrente lunar feminina). No texto Beelzebuth é Chefe na Quimbanda, disponível na Revista Nganga No. 11, eu menciono:
Todo
esse simbolismo mítico-sexual do Mundo Antigo e no culto de Baal representado
por sua relação com Astarte em Canaã, é herdado pela Quimbanda nas relações que
se estabelecem i. entre os Maiorais, onde o Lúcifer andrógeno manifesta o deus
Beelzebuth e a deusa Ashtaroth, que mantêm relações mítico-sexuais na criação
dos Reinos da Quimbanda e individualidade humana; ii. entre Exu e Pombagira, os
Gangas polarizados macho-fêmea que nascem da interação sexual de Beelzebuth e
Ashtaroth.
E no meu texto O Chefe Império Maioral: Rei do Inferno, também disponível na Revista Nganga No. 11, menciono que a manipulação das forças ódicas é o que permite a criação do ato mágico no Corpo de Maioral:
A luz astral trata-se de uma força
cósmica impessoal sobre a qual é possível o mago imprimir a sua vontade, daí o receptáculo das formas. Quer dizer,
trata-se de um meio onde qualquer tipo de criação é possível através da
manipulação das correntes mágicas de força ódica, i.e. a energia vital, o moyo dos bantos ou o àṣẹ dos yorùbás, o magnetismo animal de Mesmer. Eliphas Levi desenvolve a essa ideia, atribuindo a luz
astral ou Baphomet um poder cego e moralmente neutro: «Já dissemos que o Diabo não é uma pessoa. É uma força [...], uma
corrente ódica ou magnética.
Eliphas Levi define: Falamos de uma substância espalhada no Infinito. A substância una que é céu e terra, isto é, conforme seus graus de polarização, sutil ou fixa. [...] É um fluído e uma vibração perpétua. A força que a põe em movimento e que lhe é inerente, chama-se magnetismo. No Infinito esta substância única é o éter ou a luz etérica. Nos astros que ela imanta, se torna luz astral. Nos entes organizados, luz ou fluído magnético.[1]
O
COSMOS NÃO RESPONDE A MORAL
Duas perguntas recorrentes são: i. como a Quimbanda vê ou lida com a Lei do Retorno? ii. por que a Quimbanda é amoral? Sobre a Quimbanda, a Causalidade e a Lei do Retorno, recomendo o estudo de dois artigos que produzi anteriormente: Tudo Volta e A Quimbanda & a Lei do Retorno. No primeiro me baseio na cosmovisão africana dos bantos acerca do moyo, a força de vida; no segundo me baseio na Hermética na intenção em demonstrar que o kimbanda está livre da lei do retorno, mas não da causalidade.
Estes artigos, portanto, introduzem o tema e facilitam a compreensão de que as forças do Cosmos não respondem a moral. Isso está na Hermética: no Logos Teleios as forças do Cosmos (o destino, a necessidade e a ordem) são impassíveis diante da ira, imperturbadas diante da gentileza, elas se subscrevem à necessidade do plano eterno. E o plano é a própria eternidade: irresistível, inerte, inexorável.[2]
Mas a que, então, respondem as forças do Cosmos? A padrões de energia e magnetismo; e no caso da magia, respondem as técnicas de manipulação destes padrões de energia e magnetismo. A Quimbanda, portanto, é amoral porque se trata de feitiçaria, que tecnicamente é a manipulação dos padrões de energia e magnetismo por meio de bases materiais. Por se tratar de técnica de feitiçaria, i.e. a arte de manipular padrões de energia, tanto a fé quanto a moral não têm valor material algum na Quimbanda. Em outras palavras, o resultado da magia não depende nem da fé e nem da moral, mas da sábia manipulação dos padrões de energia.
Na Revista Nganga Nos. 8 e 11, nos artigos O Baphomet de Eliphas Levi & o Maioral da Quimbanda, e O Chefe Império Maioral: Rei do Inferno, eu explico que esses padrões de energia são as correntes de força ódica dentro da luz astral, o corpo de Maioral, a Alma do Mundo, o ambiente mágico da Quimbanda. Eliphas Levi, entretanto, atribui a luz astral um poder cego e moralmente neutro: uma força, uma corrente ódica ou magnética.[3] Essa agência neutra, impessoal e amoral da luz astral, que é a Alma do Mundo, está em sincronia com a Hermética. No Corpus Hermeticum[4] Hermes fala acerca da natureza do Cosmos, que não está separado da Alma do Mundo, e é o repositório de todas as formas que nele se encontram: o Cosmos não é, na verdade, mau, mas também não é bom, como Deus é bom; pois é material, e sujeito a perturbação. No Timeu, Platão expressa essa mesma ideia quando diz que a Alma do Mundo é a fonte do bem e do mal. Está presente nesse desenvolvimento da Alma do Mundo ou luz astral em Eliphas Levi a própria ideia dessa força como o movimento potencial de todas as coisas.[5] Isso nós encontramos também em Platão, que define a Alma do Mundo como: primordial surgimento e movimento de tudo o que existe, existiu ou existirá, bem como de todos os seus opostos, uma vez que ela se revelou como a causa universal de toda mudança e movimento.[6]
Mas se a fé e a moral são dispensáveis na manipulação das forças ódicas, a vontade e a imaginação não são; e a qualidade da manipulação dessas forças, por outro lado, está diretamente conectada a qualidade da vontade e da imaginação. Se a luz astral, o Corpo de Maioral, é a fonte de todas as formas, a vontade e a imaginação, aliadas as técnicas materiais de manipulação do magnetismo, agem diretamente sobre esta luz e, por seu meio, sobre toda a Natureza submissa às modificações da Inteligência.[7] Neste caminho, portanto, a sábia manipulação das correntes de força ódica do Corpo de Maioral, a luz astral, é o instrumento da taumaturgia e da divinação,[8] o que nada tem a ver com a moral.
O
KIMBANDA & A ORDEM DO COSMOS
Todas as ações do kimbanda estão em conformidade com a ordem do Cosmos, no sentido em elas partem da inferência oracular, e não de seus desejos. Na Quimbanda não fazemos nada de nossa cabeça, diz o bordão, porque todas as ações magísticas são orientadas através do oráculo por intermédio do Exu tutelar. O kimbanda é, portanto, de acordo com suas funções sacerdotais, um ajustador de padrões energéticos que estão em desordem na sua vida e na vida de seus consulentes; é quando ele assume a função de acusador e punidor (satanás). No oráculo o Exu tutelar mostrará se é adequado aplicar uma pena/vingança (timoros) caso haja um fado (quinhão) a ser liquidado dentro da ordem do Cosmos.
Na Hermética cada um tem àquilo que merece,
quer dizer, àquilo que é de seu quinhão. As catástrofes que causam dor e
sofrimento, i.e. o mal, não ocorrem por meio de uma agência – daimones –
maligna, mas ao fado (destino) de um indivíduo, povo, cultura ou
civilização. No Corpus Hermeticum (Livro XVI, Verso 10), quando o desastre ocorre, quando o Cosmos tem de punir
alguém, ele o faz aos bons e aos maus segundo o quinhão de cada um: E
como sua luz é poderosa, assim também sua ação de criar é algo de grande e
incessante tanto em espaço quanto em riqueza, pois os coros dos daimones ao
redor dele são muitos e semelhantes a diversos exércitos, os quais, embora
sendo companheiros dos imortais, não estão distantes, e aqui assumindo o lugar
por meio do fado, supervisionam as coisas dos homens, as que sendo impostas
pelos deuses, eles as executam com furacões, tempestades, relâmpagos, mudanças
do fogo e terremotos, e ainda com calamidades e guerras, repelindo a impiedade.
Pois este é o grande mal dos homens para com os deuses; pois, deveras, dos
deuses é o bem fazer; dos homens, o reverenciar; e, dos daimones, o repelir.
Pois as outras coisas são por conta e risco (ousadia) dos homens: por engano,
por atrevimento, por necessidade, a qual chamam de heimarmene, ou por
ignorância, todas essas coisas não são responsabilidades por parte dos deuses;
mas somente a impiedade tem estado sob suspeita.
[1] Eliphas Levi. A Chave
dos Grandes Mistérios. Pensamento, 1997, pp. 104.
[2] Logos Teleios, 40.
Em Pedro Barbieri Antunes. Soteriologia e cosmogonia no Corpus hermético: o
caminho iniciático do hermetismo antigo. Universidade de São Paulo, 2022,
pp. 314.
[3] Eliphas Levi. Dogma e
Ritual de Alta Magia. Pensamento, 2017, pp. 246.
[4] Cap. X, Verso 10.
[5] Eliphas Levi. A Chave
dos Grandes Mistérios. Pensamento, 1997, pp. 104.
[6] Platão. Leis. Livro
X, Verso 896. Edipro, 210, pp. 413-14.
[7] Eliphas Levi. A Chave
dos Grandes Mistérios. Pensamento, 1997, pp. 104.
[8] Ibidem.