Por Táta Nganga
Kamuxinzela
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Nota: este texto é um excerto do terceiro volume do Daemonium: a Quimbanda & a Nova Síntese da Magia, no prelo.
Na Quimbanda Mussurumin existe uma linha de trabalho exclusiva, somente a iniciados, conhecida como Cabalá Francesa (às vezes também chamada de Cabalá Europeia). Pelo termo linha de trabalho, entenda como um ramo ou braço paralelo ao trabalho central com os Exus e Pombagiras, quer dizer, separado, mas que faz parte do escopo total da banda. Essa linha de trabalho da Quimbanda Mussurumin está completamente alinhada a nova síntese da magia e aos interesses do grimoire revival, temas sobre os quais venho me debruçando desde o segundo volume do Daemonium.
A Cabalá Francesa na Quimbanda Mussurumin consiste no trabalho prático com a magia cerimonial em seus diversos sistemas, antigos ou modernos, derivados dos grimórios ou de escolas de iniciação, adaptados ao sistema prático de macumba da Quimbanda, a gosto do operador. Esse é um trabalho particular da Quimbanda Mussurumin, que diferente das vertentes tradicionais Nàgô e Malê, não sincretiza demônios diretamente com os Exus. Todo o trabalho com esses demônios e outros espíritos (anjos cabalísticos ou enoquianos, espíritos olímpicos, genii-loci encantados ou mortos diversos etc.), no contexto da magia cerimonial europeia de modo geral, é executado a parte, fora dos rituais tradicionais de atuação dos Exus e Pombagiras (giras, toques e orôs). Para tal fim são construídos dois templos ou duas áreas ritualísticas distintas dentro de um mesmo templo, uma destinada aos rituais tradicionais da Quimbanda, outra para realização das cerimônias de Cabalá Francesa.
Diferente das vertentes Nàgô e Malê, a Cabalá Francesa na Quimbanda Mussurumin utiliza as regalias tradicionais da magia cerimonial (robe, círculo mágico, baqueta, triângulo, reis nos quadrantes etc.) e respeita seus princípios segundo o conhecimento da Arte que possui o operador. Mas muito embora o templo ou a área ritualística de magia cerimonial seja construído a parte daquela onde se realizam as operações magísticas da Quimbanda, o Exu-Táta do templo permanece o patrono do trabalho de Cabalá Francesa. No Templo Maioral Exu Pantera Negra e Pombagira Dama da Noite da família Cova de Cipriano Feiticeiro, a Cabalá Francesa foca na Ciência (conhecimento) e Arte (técnica) da magia com inteligências terrestres (i.e. sublunares) da tradição salomônica-cipriânico-fáustica da goécia, quer dizer, todo o trabalho se concentra em espíritos ctônicos, telúricos e aéreos que na literatura tradicional dos grimórios são chamados na grande maioria das vezes de demônios e que, como vimos no Capítulo 12, são antigas deidades pagãs. A regência deste trabalho é de Exu Pantera Negra, que fornece instruções para estrutura do templo, tecnologias mágicas utilizadas (círculo, armas, pantáculos etc. quando necessários), e a construção das moradas de poder dos espíritos. Em outras palavras, as inteligências terrestres ganham corpo físico por meio das tecnologias mágicas da Quimbanda para este trabalho. As implicações práticas desse tipo de abordagem magística com esses espíritos é de uma envergadura taumatúrgica para muito além da experiência ordinária experienciada pelos magistas cerimoniais médios. Estes demônios tornam-se diabos pessoais dos Gangas da Quimbanda. Muito diferente da abordagem moderna de convocar esses espíritos em folha de papel sulfite, eles são literalmente assentados, ganhando corpo físico, porque é uma crença antiga na tradição da magia que para exercerem total influência mágica na vida dos operadores, os espíritos têm de ter corpo físico.
Como delineei no Capítulo 7, a prática da individualização do Exu trará uma inteligência terrestre para servir de espírito assistente (servidor, capataz) no Reinado do Exu-Táta do templo. Na prática, neste trabalho exclusivo de Exu Pantera Negra, trata-se da vinculação do poder de uma inteligência terrestre do sistema do Grimorium Verum ao trabalho do Exu, para agregar força e potência. Então diferente das vertentes tradicionais Nàgô e Malê, não ocorre um sincretismo, mas a convocação de uma inteligência terrestre para atuar junto do Exu-Táta em seus trabalhos, sob sua autoridade direta. Veja que isso está alinhado a fórmula mágica universal do espírito tutelar presente em muitos sistemas, como da magia salomônica tradicional de O Testamento de Salomão, datado dos Sécs. II-III d.C., ou a magia sagrada do Livro de Abramelin, de 1387.
Não é uma obrigatoriedade que o templo ou a área destinada as cerimônias de magia cerimonial, permanentes ou temporárias, necessitem de absolutamente todas as regalias tradicionalmente exigidas para realização dos rituais conforme as orientações gerais dos grimórios. Isso significa que o uso do círculo mágico, triângulo da arte, robes e insígnias, correspondências e signos astrais, quadrantes nas direções do espaço etc. está sujeito ao gosto e conhecimento do operador, e as instruções do Exu-Táta do templo. O requerimento tradicional no contexto da Quimbanda Mussurumin é apenas que os rituais da Quimbanda não sejam misturados com àqueles da Cabalá Francesa. A nova síntese da magia consiste em dissolver a difícil e intricada operacionalidade dos rituais de magia cerimonial, substituindo-as pelos métodos da cabalá crioula ou de suas variantes na diáspora africana nas Américas. Para tal, o operador é livre para adaptar como quer, assim como formular o sistema que desejar, para colocar em prática a Cabalá Francesa. Aqui no Templo Maioral Exu Pantera Negra e Pombagira Dama da Noite, o sistema e teologia para Cabalá Francesa envolve apenas as inteligências terrestres do orbe sublunar. E este será o caminho que iremos tomar nesse capítulo de apontamentos práticos que poderão inspirar ou poderão ser adaptados na prática ritual, a gosto do operador. Mas é possível adaptá-los a qualquer sistema, como do Arbatel e seus espíritos olímpicos, de 1559.
Como temos estudado desde o segundo volume do Daemonium e do Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia, o Grimorium Verum dissolveu as difíceis e intricadas instruções dos grimórios salomônicos que o precederam, e restaurou as antigas técnicas pagãs de comunicação com os espíritos como sacrifícios e oferendas, presentes no Hygromanteia ou Tratado Mágico de Salomão, de 1440. Além disso, como temos explorado por esses três volumes, o sistema de magia do Grimorium Verum influenciou profundamente a mecânica de culto na Quimbanda, unindo as duas correntes ctônicas – a do grimório e a da Quimbanda – em uma só na síntese de Fontenelle. Por esse motivo, esse capítulo se concentrará em oferecer um pequeno conjunto de ferramentas e apontamentos que possam introduzir elementos práticos na ritualística dos admiradores da Quimbanda e de outros magistas interessados em trabalhar com o Grimorium Verum no estilo da Quimbanda. A Cabalá Francesa na Quimbanda Mussurumin não se limita a operações com inteligências terrestres do orbe sublunar. Mas para o trabalho aqui apresentado, sob a tutela e comando de Exu Pantera Negra, esses serão os espíritos explorados. Nossa intenção é mergulhar profundamente no grande abismo da terra desta goécia infernal e diabólica que vivifica tanto a Quimbanda quanto o Grimorium Verum.
Isso significa incluir as inteligências terrestres em inúmeros feitiços da Quimbanda, assimilando-os não apenas na perspectiva prática da magia, mas também na perspectiva mítica. Por causa disso incluímos no Capítulo 15 uma lista dos diabos do Grimorium Verum como associados aos Exus na síntese estabelecida por Fontenelle. A lista incluirá uma breve descrição das inteligências terrestres e dos Gangas associados a estes espíritos.
A importante distinção entre a maneira de se operar descrita aqui e a forma cerimonial tradicional que a goécia a partir dos grimórios normalmente assume, é que a ênfase desse estilo de trabalho, que constitui a nova síntese da magia, é estabelecida a partir do sistema mágico da Quimbanda. Em outras palavras, ao padrão ritual estabelecido pela Quimbanda é infundida a corrente mágica da goécia noturna do Grimorium Verum. As assinaturas mágicas (pontos riscados) dos Gangas serão associadas diretamente as assinaturas mágicas (selos cabalísticos) das inteligências terrestres em pergaminhos ou metais preparados com condensadores fluídicos, pedras, gemas ou pembas, a depender da operação.
Uma vez que a inteligência terrestre convocada se torna um diabo pessoal sob a autoridade do Exu-Táta, um servidor do operador, não se faz necessário, via de regra, tecnologias como o círculo mágico e o triângulo da arte, bem como será dispensado qualquer tipo de comunicação ofensiva ou coerciva com os espíritos. O operador deverá ter uma abordagem prática da perspectiva ancestral, i.e. as inteligências terrestres, astrais, celestes, os espíritos dos decanatos e as mansões lunares etc., todos são considerados espíritos ancestrais do operador, que se vê, em meio a operação, dentro de um círculo familiar de dimensões cósmicas. É quando o círculo mágico dissolve suas bordas e deixa de ser uma divisão entre o operador e o círculo de ancestrais cósmicos na pluralidade das formas. O que foi romanticamente citado por Frater Archer, como vimos na Apresentação deste volume:
Se
tirássemos uma foto da família dos ancestrais espirituais com os quais [...]
nos ajudou a nos reconectar, veríamos uma vasta cripta cheia de parentes: mais
perto a frente encontraríamos os majestosos quatro reis e rainhas das direções
cardeais, logo atrás deles as fileiras dos 36 espíritos dos decanatos, seguidas
pelas 28 mansões lunares.[1]
Como ficou claro até aqui, a goécia como estilo de vida daemônico está diretamente conectada a fórmula mágica do espírito tutelar na forma de uma alma que desceu aos Infernos (catábase) e ascendeu (anábase) glorificada das profundezas do Submundo, e que muitas vezes é representada miticamente por um herói, como São Cipriano, Salomão ou Fausto. Os heróis da goécia brasileira são os Gangas da Quimbanda, espíritos com os quais mantemos laços ancestrais estreitos. A fórmula mágica do espírito tutelar, portanto, exigirá que o operador estabeleça uma relação familiar com o diabo pessoal. Para tal, a abordagem mágico-pedagógica deste livro consiste de quatro passos técnicos fundamentais para o conhecimento e conversação com o espírito tutelar: i. estabelecer uma comunicação adequada; ii. feitio apropriado das oferendas e sacrifícios; iii. a construção do corpo físico do espírito; iv. operar a magia segundo a natureza peculiar do espírito, que na Quimbanda chamamos de conhecer e operar com a linha de trabalho do Ganga cultuado.[2] E insiro essa palavra, cultuado, em um sentido técnico: a atitude para com todos os espíritos aqui listados é devocional, não imprecatória. Em certa ocasião, recebendo instruções do Exu Sete Catacumbas, ele me falou: esses espíritos dos grimórios da magia que vem da Europa são divindade esquecidas, e que não gostam de serem tratadas com grosseria e ameaças. Basta tratar eles com educação e pagar-lhes os tributos que solicitam e pronto, deixa acontecer, que você vai ver seu Exu carregado com muito mais poder e força. O espírito dessa sabedoria de Exu Sete Catacumbas vivifica o espírito deste livro. Jake Stratton-Kent diz:
O trabalho mágico [que] diz
respeito aos processos da goécia envolve um forte aspecto devocional enquanto se
lida com espíritos da terra e do Submundo. [...] A abordagem aos espíritos
difere da demonologia medieval e dos derivados posteriores. A palavra grega
antiga goeteia é entendida de maneiras diferentes nos tempos modernos. Alguns
refletem seu status desvalorizado na cultura clássica e medieval, outros a
importância exagerada da Goécia de Salomão [tradicional], ambos criando uma
impressão estereotipada de verdadeira e real goécia. Em essência, no entanto, a
goécia de raiz arcaica tem uma grande quantidade de [influência no] trabalho
espiritual na magia ocidental, e é o ancestral principal e venerável da magia
ritual moderna.
Na antiguidade clássica, o
termo goécia geralmente se referia a rituais de uma fase mais arcaica da
cultura, ou práticas que as refletissem. Lidou particularmente com os espíritos
do submundo ou da terra, em oposição às divindades e entidades celestiais ou urânicas.
Estes [espíritos terrestres] variaram de fantasmas e demônios a divindades como
Deméter, Hades e Perséfone. Minha compreensão de tal trabalho compartilha com
muitas religiões tradicionais africanas a ideia de que Deus é uma figura remota
e inacessível, em grande parte despreocupada com o universo material. Em graus
variados, o mesmo se aplica a outros seres celestes. Os espíritos ctônicos, por
outro lado, são acessíveis, e relações mágicas práticas podem ser facilmente
formadas com eles [por meio de elos mágicos], onde esses relacionamentos são de
longo prazo e um relacionamento definido é formado. Manter esse relacionamento
envolve atividades de culto por parte do magista, como fazer oferendas
regularmente.
Isso é adoração? Responder
a isso envolve um simples exercício de semântica. É significativo que, no
casamento cristão, a frase com o meu corpo que eu cultuo seja usada de parceiro
para parceiro. Se examinarmos a palavra, encontramos que adoração deriva da
mesma raiz que valor, dignidade etc. Portanto, se desejamos usar a palavra adoração,
deve ser entendido que ela representa o reconhecimento da parceria dos
espíritos com o magista e não diminui o magista em relação a eles.[3]
A nova síntese da magia parte de uma premissa fundamental: para revitalizar qualquer aspecto da magia cerimonial ocidental o operador deve mergulhar profundamente nas raízes ancestrais da goécia como tradição viva e fonte primeva dos alicerces mágicos e religiosos da magia no Ocidente. E para fazê-lo, ele precisa encontrar o caminho por si mesmo. A Quimbanda oferece um acesso a essas raízes, preservadas e atualizadas.
Na prática, o trabalho poderá incluir a confecção de patuás, o uso de óleos e pós, efígies, lanternas mágicas (amuletos, pantacléias, talismãs, garrafas etc.) tradicionais da Quimbanda, carregados com a força mágica de uma inteligência terrestre do Grimorium Verum a partir do poder e autoridade do Exu-Táta do kimbanda. Daí a importância de se possuir de fato o fundamento da Quimbanda, como veremos na seção que segue, para incluir a Cabalá Francesa no arranjo de técnicas magísticas possuídas pelo kimbanda.
No contexto da nova síntese da magia, um
adicional importante: as inteligências terrestres comem absolutamente tudo que
os Gangas da Quimbanda comem. Toda a culinária da Quimbanda, que em si
constitui um sistema de magia como veremos ainda neste capítulo, também é
associada as inteligências terrestres.
[2] Neste
livro, no entanto, não nos debruçaremos profundamente sobre alguns desses
pontos, por causa do segredo de culto.
[3] Jake
Stratton-Kent. Geosophia. Vol. 2. Scarlet Imprint, 2023, pp. 215-6.