Por Táta Nganga
Kamuxinzela
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A Quimbanda é uma corrente mágica lunar. Isso significa dizer que sua teologia e cosmovisão é noturna. Por diversas vezes tenho utilizado o termo sublunar associado hora ao sistema de magia, hora aos espíritos da Quimbanda. Nessa seção vamos nos debruçar melhor sobre o tema, esclarecendo os níveis ou éteres sublunares e suas atribuições planetárias correspondentes, associadas aos dias da semana.
Na Antiguidade o reino sublunar era também chamado de Reino dos Quatro Elementos, porque tudo o que envolve a realização da magia no pensamento daquele período estava diretamente associado a Natureza, ao reino da geração. Michael Psellus diz:
Mas a magia, de acordo com
os gregos, é uma coisa de natureza muito poderosa. Eles dizem que isso forma a
última parte da ciência sacerdotal. A magia, de fato, investiga a natureza, o
poder e a qualidade de tudo o que é sublunar; a saber: dos elementos, e suas
partes, de animais, todas as várias plantas e seus frutos, de pedras e ervas e,
em suma, explora a essência e o poder de cada coisa. A partir daí, portanto,
produz seus efeitos.[1]
No pensamento ocidental desde antes da era cristã e bem dentro dela, considerou-se que o reino sublunar abrangia toda a extensão de mudança da Natureza. É neste reino sublunar que se encontram todos os espíritos dos grimórios de acordo com a teologia cristã, começando com Santo Agostinho, precedido pela cosmovisão neoplatônica e caldéia, todos com base em modelos de classificação ainda mais arcaicos. A concepção de espíritos aéreos associados aos quatro elementos tem como pano de fundo essa percepção de que o reino sublunar é o reino dos elementos. Este é o mesmo habitat dos Gangas da Quimbanda. Toda teologia da Quimbanda envolve as correntes noturnas do Cosmos, tendo a Lua no ápice do Céu e o Sol nas profundezas do Inferno. Essas concepções chegaram a Quimbanda através do Grimorium Verum, que as herdou da Antiguidade.
Nos sistemas órfico e
teúrgico há ecos incorporados de tradições mais antigas relevantes hoje –
imaginando o Sol e a Lua como as Ilhas de Hades e Perséfone, respectivamente,
por exemplo. Associar claramente Hades ao Sol faz sentido dentro dessa
modelagem. Que Perséfone é tradicionalmente próximo ou sinônimo de Hécate
também adiciona todos os tipos de nuances importantes. Por exemplo, nossos
Quatro Elementos (com seus Reis, ministros e espíritos) muitas vezes respondem
perante Satanás na tradição [deste] grimório, enquanto nas tradições da
Antiguidade tardia Hecate (Astaroth) tem autoridade idêntica sobre espíritos,
elementais e fantasmas na região aérea.[2]
O que possibilita a fusão, conexão ou relação entre os Gangas da Quimbanda e os espíritos dos grimórios é o reino sublunar, que se divide em sete níveis que refletem virtudes planetárias, distintas, no entanto, das relações tradicionais usuais.
Segunda-feira como o
primeiro dia da semana lunar é o [dia] de Lúcifer, o Imperador dos espíritos,
seu chefe preeminente. A associação de Lúcifer com este dia implica nos domínios
da Lua como governante do Tempo. As horas empregadas também são as da noite. O
contraste desses princípios operacionais com a ênfase solar usual é fortemente
reminiscente do conceito de «seitas» na astrologia, em que a Lua governa a
seita noturna e o Sol a seita diurna. O conceito da Lua como governante da
semana (ou de um ciclo de tempo, de quatro semanas a um mês lunar e assim por
diante) também sugere conexões com as mansões lunares ao invés de dos decanatos
solares.[3]
Os ciclos de mitos de antigas deidades possuem núcleos ou recessões míticas terrestres, i.e. sublunares. É por isso que deuses como Hermes, Hélio ou Zeus têm versões ctônicas. É necessário compreender isso nos termos das correspondências planetárias também: todas elas são terrestres, e não urânicas, i.e. celestiais.
Este modelo, enquanto mede
o Tempo, também se refere ao espaço físico ou às suas contrapartes míticas. O
esquema não é planetário como tal, mas sublunar com atribuições planetárias
distintamente secundárias. Na verdade, é importante não entender os espíritos
dentro desse esquema como planetários; em termos neoplatônicos, os mundos
planetários são «refletidos» no mundo sublunar. Como os níveis mais antigos de
compreensão mitológica estão envolvidos neste modelo, essa suposta
correspondência com hipotéticos mundos superiores é sugestiva e não definitiva.
Da mesma forma, a tradicional atribuição aos elementos dentro deste modelo
também está subordinada ao conceito mais antigo e fundamental de direção [e não
de qualidade].[4]
Então temos a seguinte divisão:
1. A Lua no
ápice do Céu. Enquanto em esquemas cosmológicos
posteriores a Lua é retratada como inferior aos mundos planetário e estelar,
nesta e em concepções anteriores, a Lua governa o céu noturno e é líder das
estrelas.
2-5. As
quatro direções, atribuídas aos éteres ou elementos (sendo estes também um
conceito histórico, são atribuídos secundariamente às direções do espaço).
1. A Terra.
2. O Sol no fundo do Submundo. Nesta concepção cosmológica o Sol governa o Submundo, sendo portanto, o Sol da Meia Noite, o Sol Noturno, e não o Sol Diurno.[5]
Podemos, embora tendo em mente que são qualidades
secundárias, atribuir a esses éteres os sete planetas, dos quais – novamente –
as divisões do reino sublunar podem ser consideradas o protótipo, ao invés
de vice-versa. Essa atribuição obviamente começa com a Lua, e tomando a semana
planetária como nosso modelo, o restante segue em ordem decrescente: Marte,
Mercúrio, Júpiter, Vênus, Saturno e o Sol.
Os fundamentos deste modelo são antigos. A região sublunar, tal como entendida na Antiguidade tardia, era vista como o mundo dos Elementos. A separação dos espíritos elementais ou aéreos em qualidades, como o vemos na magia moderna, é deveras simplista. Contudo, o Sol no Submundo aponta para uma percepção mais orgânica dos elementos sublunares, espelhando a descrição dos espíritos elementais no Grimorium Verum:
Na primeira parte [deste grimório] são ensinados os meios para convocar os espíritos elementais do Ar, Terra, Mar e Inferno, de acordo com as correspondências corretas.[6]
A classificação dos Elementos como segue abaixo é deveras importante para aqueles que trabalham com os grimórios e, particularmente, com os Quatro Espíritos Reis ou Chefes dos quadrantes e seus subordinados. O fato destes espíritos serem chamados de espíritos aéreos ou espíritos do ar deriva da antiga visão da região entre a Terra e a Lua. A distinção de espíritos aéreos, que se aplica às quatro direções/elementos, deve ser feita cuidadosamente. Na verdade, uma classificação sublunar mais significativa a teologia noturna da goécia aplica-se não às direções do espaço, mas diretamente aos éteres sublunares.
1. Fogo:
correspondendo ao Submundo (a Casa Noturna do Sol, Infernus, a Morada
das Salamandras).
2.TTerra: correspondendo à região terrestre/telúrica (a morada dos Gnomos).
3. Água:
concebida primeiramente como o oceano circundando a terra seca e conectado ao
Submundo, particularmente por meio de rios e nascentes (morada das Ondinas).
4. Ar: a região aérea acima da Água e da Terra, as quatro direções do espaço (a morada dos silfos e dos espíritos ascendendo e descendo da Lua).
Sobre a visão do mundo sublunar na Antiguidade, Jake Stratton-Kent faz um resumo:
No mito de Platão, o prado
asfódelo do Hades é um lugar aéreo, na atmosfera superior, enquanto o Tártaro
permanece no subsolo. Posteriormente, isso foi estendido, como em Plutarco,
para quem o rio Estige fluiu para cima da Terra para a Lua, e os Prados de
Asfódelos são transferidos para o espaço entre a Terra e a Lua, cujo luminar
desempenha um papel muito visível na escatologia de Plutarco: Cada alma,
seja sem mente, ou unido à mente, ao sair do corpo, é ordenado a vagar na
região situada entre a lua e a terra por um período, não igual em todos os
casos; mas os ímpios e os incontinentes pagam uma penalidade pelos seus
pecados; de ar, que eles chamam de Prado do Hades.
De forma
tentadora, Platão nos diz que os especialistas em rituais – ou goetes,
se descreviam como «Filhos da Lua», então talvez essas associações lunares
sejam mais antigas do que se pensa atualmente. Em qualquer caso, em várias
religiões da Antiguidade tardia a deslocalização é ainda mais alargada.
A
transferência das Ilhas dos Abençoados por Platão para lugares indeterminados
no céu foi rapidamente esclarecida por Jâmblico [...] que registra um ditado
atribuído aos pitagóricos localizando as Ilhas dos Abençoados no Sol e na Lua;
apresentando toda uma paisagem escatológica lunar, que ilustra simultaneamente a
transferência de divindades ctônicas: [...] há lugares profundos e
semelhantes a golfos na lua, dos quais o maior é chamado de masmorra de Hécate,
em que as almas sofrem ou infligem punição, pelas coisas que fizeram ou
suportaram.
O esquema é
construído conscientemente em Platão, a Lua é uma região de transição entre a
terra inferior e as esferas planetárias superiores que levam às Estrelas Fixas
e além. Assim, Plutarco a investe de portais superior e inferior: Quanto às
duas profundezas menores, porque as almas passam por elas no caminho para o céu
e para a terra novamente, aquela (voltada para o Sol) é denominada Planície
Elísia, a outra (de frente para a Terra) a Passagem de Perséfone a Terrestre!
Os mundos
superiores são ocupados pelos deuses e seus séquitos, mas a Lua é reservada aos
daimones terrestres, ou seja, os mortos [ou cuja categoria certamente
inclui os mortos como uma proporção maior]. O próprio termo terrestre parece
contraditório neste contexto, e a sua utilização mostra o ritmo a que as ideias
evoluíam, enquanto a terminologia lutava para acompanhar esse ritmo. Esses
espíritos formam uma classe muito importante e não são distintos das almas
mencionadas anteriormente. A ideia de um mundo sublunar entre a Terra e a Lua,
ocupado por espíritos ou demônios, durou muito tempo; foi simplesmente
esquecido que a maioria deles eram antigos seres humanos. Reclassificados como
demônios aéreos, eles são rastreáveis em Agripa e em muitas tradições
demonológicas, sendo os anjos [considerados] residentes em níveis superiores,
de acordo com as ideias neoplatônicas cristãs. Os aspectos positivos dos
espíritos sublunares foram erradicados de muitas dessas redações posteriores,
juntamente com a sua identidade com os mortos. Em Plutarco, o papel
essencialmente benigno de alguns dos daimones terrestres lunares é muito
aparente, e ele cita alguns nomes muito interessantes: Os daimones nem
sempre passam seu tempo sobre ela (a Lua), mas eles descem para cá e se
encarregam dos Oráculos. Eles estão presentes e auxiliam nos mais avançados dos
ritos de iniciação (Mistérios). Eles agem como punidores e guardiões dos
malfeitores e brilham como salvadores na batalha e no mar. Qualquer coisa
nessas capacidades que eles façam errado, seja por despeito, parcialidade
injusta ou inveja, são punidos por isso, pois são empurrados para baixo de novo
à terra e acoplados a corpos humanos. Dos melhores desses gênios, eles disseram
a ele, eram aqueles que servem (o deus) Saturno (no Elísio) agora – e [eram] os
mesmos em tempos antigos os Dáctilos – em Creta, os Curetes na Frígia, os
Trofonianos – na Boeotia Lebadea, e outros sem número – em várias partes do
mundo.
Embora eu
não esteja sugerindo que a crença popular no mundo antigo aderisse fielmente
aos princípios de Plutarco ou Platão, sem dúvida havia formas populares dessas
ideias. Na verdade, Plutarco foi tão influenciado pelas tradições populares
como foi por Platão, e tem a virtude adicional de ilustrar e fornecer modelos
para o assunto em questão. Por outro lado, subestimar a influência de Platão e
dos seus sucessores nas classes letradas do mundo greco-romano também seria um
erro. O que poderia ser chamado de baixo platonismo estava, sem dúvida, muito
em voga no mundo greco-romano posterior. Consequentemente, encontramos sua
influência em vários textos gnósticos, e perfeitamente visível nos Papiros
Mágicos Herméticos baixos. No que diz respeito aos grimórios, o baixo neoplatonismo
geralmente tipifica o que poderíamos chamar de escola de Agripa [uma vez
penetrada a ênfase exagerada do Século XIX nos elementos «cabalísticos» de sua
Filosofia Oculta]. Na verdade, a passagem acima lembra surpreendentemente as ideias
do Conde de Gabalis, citadas em meu True Grimoire. Seus escritos foram
contemporâneos e influenciaram importantes manuscritos e grimórios impressos.[7]
OS TRÊS ÉTERES SUBLUNARES
Em várias cosmologias antigas, incluindo cosmovisões xamânicas, o universo é visto como consistindo de três mundos. É conveniente estratificá-los, tradicionalmente, em termos de mundos superior (aéreo), médio (telúrico) e inferior (ctônico). O mundo superior ou celestial significa o mundo das estrelas e dos planetas: o céu diurno e noturno, lar não apenas de deuses e espíritos astrológicos, mas também dos trovões, relâmpagos e chuvas. Apesar da aparente estratificação e das comparações enganosas dos esquemas de emanação, é melhor não compreender este mundo como superior, mas simplesmente diferente. Em particular, na perspectiva noturna da goécia, deve-se notar que o Sol, a Lua, os planetas e todas as estrelas, exceto as estrelas circumpolares, surgem do Submundo e retornam a ele no pôr-do-sol. Assim, os deuses celestiais e ctônicos não estão tão distantes como faz parecer os diagramas dos livros modernos de Ocultismo.
O mundo intermediário, o Midgard da mitologia nórdica, surpreendentemente é a Terra, nosso lar. Aqui presidem deuses e espíritos da Natureza, aqueles da geografia (genni loci) e outros.
O mundo inferior é o mais complexo, problemático e incompreendido, especialmente se considerarmos o preconceito derivado dos esquemas de emanação. É o Submundo, a morada dos mortos, mas também de outros espíritos naturais, associado a sementes e raízes, minérios metálicos como ouro e ferro e, frequentemente, à água, como lagos, rios, nascentes e o oceano. Esta ideia pode ser facilmente encontrada nos mitos gregos primitivos, onde o mar era inseparável das concepções do Submundo e da vida após a morte; na magia dos papiros gregos (e de alguns grimórios posteriores), a água de nascente era empregada nas operações com os mortos. O Submundo é um lugar complexo nessas mitologias. Existem aspectos celestiais nele, como os Campos Elísios ou as Ilhas dos Abençoados; também descobrimos que o Hades tem semelhanças com o Purgatório, e o Tártaro com o Inferno, uma espécie de mundo de masmorras do qual não há escapatória. Cada um é igualmente parte do mesmo mundo, ao invés de ser separado, como ocorre nas religiões reveladas posteriores. Esta região também é frequentemente referida como o lar dos deuses.
A partir disso podemos ver que as ideias de céu e inferno não são apropriadas para essa visão de mundo, e que as raízes de toda a cosmologia ocidental estão abaixo, e não acima, quer dizer, vêm da terra, e não do céu. Isto novamente se reflete na cosmologia grega antiga, antes de sua reformulação pelos filósofos. Nas recessões primitivas, Zeus o Rei dos Deuses – que eventualmente será retrabalhado como uma divindade mais parecida com Jeová do que com seu mito original – do céu, é na verdade uma divindade da terra. Ele compartilha essa origem com inúmeras outras divindades importantes. Além disso, os Elementos são ativos em todos os três mundos.
Essa é a cosmovisão antiga da goécia, preservada no
Grimorium Verum e transferida a Quimbanda na síntese promulgada por
Aluízio Fontenelle.
[1] Michael
Psellus. Citado em. Jake Stratton-Kent. Pandemonium. Hadean Press, 2016,
pp. 31.
[2] Jake
Stratton-Kent. Pandemonium. Hadean Press, 2016, pp. 33.
[3] Ibidem,
pp. 36.
[4] Ibidem,
pp. 33-4.
[5] No
contexto da astrologia, o Sol no Submundo pode ser associado a Quarta Casa,
associada às raízes e ancestralidade. Também simboliza passado, base,
construção de laços afetivos e senso de pertencimento.
[6] Jake
Stratton-Kent. The True Grimoire: Encyclopaedia Goetica, Vol. I. Scarlet
Imprint, 2022, citação pp. 130.
[7] Jake
Stratton-Kent. Cyprian’s Offices of Spiritis or The
Terrestrial Intelligencer. Hadean Press, 2024, pp. 7-10.