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A MAGIA DA QUIMBANDA #10: QUIMBANDA, EXUS & DEMÔNIOS

ENTREVISTA VIA ITÁLIA

 

Por Táta Nganga Kamuxinzela

@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago 

 

O que segue são as minhas respostas para uma entrevista no YouTube via Itália, canal da La Societa ‘dello Zolfo (@la_societa_dello_zolfo), dia seis de junho de 2024, disponível na íntegra no canal. O objetivo da entrevista foi apresentar a Quimbanda para ocultistas italianos (e europeus de modo geral). Como as perguntas são relevantes também para um público brasileiro, decidi fazer uma versão escrita das respostas, completando a entrevista para o YouTube com detalhes que não me aprofundei ao vivo. 

Vou dividir toda a entrevista em postagens individuais para cada pergunta no blog. O propósito disso é criar postagens com textos pequenos ao invés de uma postagem apenas com o texto extenso, com mais de 40 laudas.

10. Por que os demônios são sincretizados em alguns textos com o Exu? É a mesma coisa que aconteceu no Vodu com os Santos? Ou seja, eles têm características em comum e, portanto, são associados? 

A Quimbanda e sua teologia é fruto de um intenso sincretismo cultural que começou muito antes da diáspora africana nas Américas, mas que continuou a se desenvolver durante e perdura até os dias de hoje. Sobre isso um etnólogo brasileiro escreveu na década de 1930: O comércio de africanos desde o século XV colocou africanos e europeus em contato direto uns com os outros. Europeus católicos, europeus protestantes. Na própria população (no Brasil) encontramos nativos, muçulmanos, judeus e uma série de outros. E assim, o desorganizado tráfico negreiro luso-brasileiro reuniu, num mesmo lugar, africanos das mais diversas províncias, o que possibilitou uma fusão de mitologias à medida que novas eram erigidas e outras eram esquecidas.[1] 

No meu texto Macumba, Exu & Quimbanda, disponível no site, faço uma breve introdução a demonização de Èṣú òrìṣà, seu translado atlântico e assimilação na cultura afro-brasileira, e sua metamorfose no Exu-Diabo da Quimbanda. Para explicar como os Gangas estão associados aos espíritos (demônios) ctônicos, telúricos e aéreos dos grimórios, é necessário primeiro compreender esse processo de demonização. Para um aprofundamento ainda maior, indico o estudo de dois outros artigos: As Origens da Demonologia de Aluízio Fontenelle e A Incursão Diabólica na Quimbanda, ambos disponíveis no site. 

Como falei na resposta 3 acima, a teologia da Quimbanda é lunar. Os espíritos da Quimbanda são inteligências terrestres, quer dizer, são espíritos que habitam os três éteres sublunares: Inferno (ctoniano), Terra (telúrico) Céu (aéreo). A Quimbanda é uma corrente mágica lunar tal qual eram os cultos ctônicos do Mundo Antigo. Isso significa dizer que sua teologia e cosmovisão é noturna. Por diversas vezes tenho utilizado o termo sublunar associado hora ao sistema de magia, hora ao ambiente mágico, hora aos espíritos da Quimbanda. Na Antiguidade o reino sublunar era também chamado de Reino dos Quatro Elementos, porque tudo o que envolve a realização da magia no pensamento daquele período estava diretamente associado a Natureza, ao reino da geração. No pensamento ocidental desde antes da era cristã e bem dentro dela, considerou-se que o reino sublunar abrangia toda a extensão de mudança da Natureza. É neste reino sublunar que se encontram todos os espíritos demoníacos dos grimórios, o mesmo habitat dos Gangas da Quimbanda. Toda teologia da Quimbanda envolve as correntes noturnas do Cosmos, tendo a Lua no ápice do Céu e o Sol nas profundezas do Inferno. Essas concepções chegaram a Quimbanda através do Grimorium Verum, que as herdou da Antiguidade. 

O que possibilita a fusão, conexão ou relação entre os Gangas da Quimbanda e os espíritos (demônios) dos grimórios, tecnicamente e para além do sincretismo popular e folclórico, é o reino sublunar, que se divide em sete níveis que refletem virtudes planetárias distintas, no entanto, das relações astrais tradicionais; são virtudes ctonianas. Isso é demonstrado, por exemplo, nos ciclos de mitos de antigas deidades que possuem núcleos ou recessões míticas terrestres, i.e. sublunares. É por isso que deuses como Hermes, Hélio ou Zeus têm versões ctônicas. É necessário compreender isso nos termos das correspondências planetárias também: abaixo do orbe da Lua todas as correspondências planetárias são terrestres, não astrais; são poderes sublunares conectados a geração, a terra, não aos astros diretamente no Céu. 

Por exemplo, a primeira organização dos Reinos da Quimbanda em um agrupamento de sete faixas de vibração aparece pela primeira vez na obra Reino de Kimbanda do uruguaio Osvaldo Omotobàtálá, de 2008. Em seu trabalho Omotobàtálá atribui aos reinos conexões planetárias, e muitos que seguiram a sua estrutura repetiram suas atribuições ou fizeram pequenos ajustes. A partir dessas atribuições planetárias, muitos caíram em erro ao pensarem que as influências planetárias sobre os reinos eram astrais, quando, de fato, elas são ctonianas. 

É somente na síntese de Aluísio Fontenelle, portanto, que a Quimbanda ganha definitivamente uma associação direta dos Exus com os éteres sublunares e os espíritos dos grimórios a eles associados. Essa compreensão só começa com Fontenelle. Quando repito enfaticamente que é somente na síntese de Fontenelle que Exu é cristalizado definitivamente como Diabo no imaginário cultural brasileiro (para muito além do que se compreende como afro-brasileiro), o motivo fundamental é essa associação que proveu, iconograficamente, os símbolos hieráticos demoníacos que os Gangas assumiram na Quimbanda. 

Mas Fontenelle, de fato, não compreendeu profundamente a teologia da goécia noturna do Grimorium Verum e sua organização dos Gangas sincretizados com as inteligências terrestres deste grimório apresenta incoerências. A partir disso começou um problema: assim como ocorreu no trabalho de Omotobàtálá citado acima, muitos repetiram a tabulação de Fontenelle e outros, tentaram estabelecer tabulações próprias, mas basearam-se nos mesmos equívocos de Fontenelle, que leva em conta somente a conexão aparente entre os espíritos. Outro problema, ainda maior, envolve essas tabulações: muito embora possam ser estabelecidas relações corretas entre os Gangas e os demônios nas tabelas de correspondências, uma parte importante da equação tem sido omitida, que é o médium e sua relação pessoal com o Exu tutelar. 

São três indivíduos: o médium, o Exu e o demônio. Todos têm de estar em sincronia direta uns com os outros. Por causa disso, na família Cova de Cipriano Feiticeiro, Exu Tranca-Ruas de Embaré ensinou a estabelecer a conexão entre os Gangas e os demônios a partir do médium, e não a partir da conexão aparente dos espíritos, como se propõe nas tabulações populares. O método é muito similar àquele da tradição salomônica em que o mago, através de suas características astrais natais, obtém um diabo pessoal, i.e. um demônio tutelar dos grimórios. 

E por conta de entendermos que essa equação é perigosa, deixamos essa associação entre os Gangas e os demônios apenas para àqueles que se tornam Mestres (táta-nganga) de Quimbanda. O objetivo dessa associação, por outro lado, é simples: prover mais força ao trabalho que o Exu faz na vida do médium.



[1] Edison Carneiro. Religiões Negras: Notas de Etnographia Religiosa. Civilização Brasileira, 1936, pp. 88.




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