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ONDE NASCE A QUIMBANDA?

 

Por Táta Nganga Kamuxinzela

@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago 

 

. I .  HISTÓRIA VS IDEALISMO HISTÓRICO 

Ao falar sobre o nascimento da Quimbanda em um contexto histórico é necessário discernir entre história e idealismo histórico. A história trabalha com verificação de fatos; o idealismo histórico trabalha com suposições, às vezes idealizadas politicamente, e às vezes fantasiosas, utópicas. Dizer, por exemplo, que a Quimbanda começa quando o europeu pisou no Brasil, trata-se de idealismo histórico. Isso é tanto informação que não pode ser verificada por fontes históricas confiáveis, quanto uma opinião, um achismo, sobre o que o autor gostaria que tivesse ocorrido. No meu trabalho procuro me ater as fontes verificáveis na linha do tempo, fundamentalmente se o tema é sobre a origem de alguma coisa. 

Nas pesquisas históricas acerca da Quimbanda, desenvolvemos a seguinte classificação. A história da Quimbanda se divide em dois momentos: i. do período colonial até 1950, a primeira fase e; ii. de 1950 até os dias de hoje, a segunda fase. O primeiro momento consiste das raízes nágico-religiosas ancestrais da Quimbanda: os calundus, candomblés, cabulas, macumbas e a eclosão das umbandas. Como um sistema de magia organizado, a Quimbanda toma forma e identidade própria a partir de 1950, início do segundo momento. Veja o texto: Macumba, Exu & Quimbanda, no site. Veja também a Revista Nganga No. 8. 

A partir de 1950 a Quimbanda começa a ganhar forma e estrutura como uma tradição, um sistema operacional de magia que nasceu com o propósito de preservar e atualizar segredos religiosos ancestrais da Macumba carioca, formado da amalgama das práticas mágicas de três culturas ancestrais: africana, europeia e ameríndia. Esse sistema operacional vem sendo apresentado desde então em ondas de manifestação por todo território brasileiro. 

Vertentes de Primeira Onda (1950-1970):

As chamadas vertentes tradicionais são àquelas que derivam do tronco tradicional de Quimbanda, e são derivadas diretas da síntese promulgada por Aluízio Fontenelle na década de 1950, quando os Exus da Macumba carioca foram definitivamente sincretizados com os demônios (i.e. espíritos ctônicos) do Grimorium Verum, um manual franco-italiano de feitiçaria fáustico-diabólica do Séc. XVIII. São as vertentes de primeira onda as mais antigas e, portanto, as genuinamente tradicionais: Quimbanda Nàgô, Quimbanda Mussurumin, Quimbanda Malê, Quimbanda de Almas etc. 

Vertentes de Segunda Onda (1970-1990):

Com a expansão das vertentes tradicionais nascidas da Macumba carioca na região Sudeste do Brasil, começaram a aparecer as vertentes derivadas dos Candomblés baianos e o Batuque gaúcho. São as vertentes de segunda onda: Quimbanda de Angola e Almas, Quimbanda de Cruzeiro e Almas, Quimbanda de Mussifin, Quimbanda de Angola etc. 

Vertentes de Terceira Onda (2000-2024):

São as vertentes novas, que flertam com a magia-psiúrgica moderna, derivada direta do renascer da magia que ocorreu a partir da escola inglesa de magia em 1875, e tradições reconstrucionistas contemporâneas como o luciferianismo, thelema e o satanismo brasileiro que operava nas penitenciárias de São Paulo na década de 1990. São as vertentes de terceira onda: Quimbanda Xambá, Quimbanda Luciferiana, Quimbanda Kongo, Quimbanda Kongo-Luciferiana etc. 

Das vertentes nascidas em cada onda derivam uma miríade de famílias, tornando a Quimbanda um multifacetado e de rica diversidade. 

 

. I I .  QUIMBANDA COMO SISTEMA MÁGICO-RELIGIOSO 

Como um sistema mágico-religioso, a Quimbanda nasce entre as décadas de 1940 e 1950, através da engenhosidade de dois médiuns umbandistas: Lourenço Braga (década de 1940) e Aluísio Fontenelle (década de 1950). Lourenço Braga era um umbandista conceituado na época, tendo palestrado sobre a Quimbanda como sistema no Primeiro Congresso de Umbanda, neste período. É ele quem lança as bases da Lei de Quimbanda. Aluísio Fontenelle, uma década depois, dá continuidade ao trabalho iniciado por Lourenço Braga, sistematizando inicialmente a Quimbanda como a conhecemos hoje. É Fontenelle que provê, de verdade, a estética diabólica do culto. 

Aluísio Fontenelle era da mesma safra de intelectuais umbandistas a qual pertencia Lourenço Braga, safra esta que na época empreendia uma salubrização ou embranquecimento da Umbanda. Essa história começa assim: antes de haver a separação entre Umbanda e Quimbanda, o que havia era a Macumba, que trabalhava com muitos elementos fetichistas africanos, como o sacrifício, possessões ou incorporações, e o uso de oráculos. Essas práticas fetichistas africanas ofendiam a população, pelo menos as classes mais altas do Rio de Janeiro, capital do Brasil na época, sendo a Macumba, portanto, considerada um culto da população menos privilegiada, em sua maioria negros, criminosos e prostitutas. Os espíritas kardecistas tiveram a ideia de salubrizar a Macumba, na intenção de adequá-la as classes mais privilegiadas da sociedade carioca. Para tal, eliminaram todos os elementos fetichistas africanos e o que sobrou eles chamaram de Umbanda. No entanto, esses elementos fetichistas crioulos expurgados da Macumba foram preservados e atualizados em um outro culto que se formava, a Quimbanda. É assim que nasce a separação da Umbanda e Quimbanda a partir da matriz da Macumba, que passava a ser conhecida doravante como Quimbanda apenas. Eu fiz uma introdução bem rica sobre o tema na Revista Nganga No. 8. 

Interessante dar ênfase a um processo natural: a literatura de um culto só nasce muito tempo depois do culto se estabelecer, e não antes disso. Braga e Fontenelle são os primeiros intelectuais que pensaram e delinearam a estrutura inicial da Quimbanda como sistema religioso de magia. A Lei de Quimbanda apresentada por Braga na década de 1940 com suas Sete Linhas é aperfeiçoada e modificada por Fontenelle na década de 1950, que inaugura a ideia de reinos na Quimbanda, descrevendo os Exus associados a dois reinos: o Reino das Encruzilhadas e o Reino do Cemitério. É seguro dizer que Braga e Fontenelle colocaram no papel àquilo que já vivenciavam ou, pelo menos conheciam em termos práticos, nos seus dias no contexto dos terreiros. 

 

. I I I .  A QUIMBANDA NÃO SURGE DO NADA 

Nessas observações [...] que encontramos a origem das linhas de Quimbanda que Leal de Souza desenvolveu já em 1925. Naquele ano ele havia gerado uma protolinha onde a macumba e o Espiritismo se fundiam com as influências do Candomblé ao apresentar as primeiras linhas da Umbanda. O que chama a atenção aqui é que aos espíritos Yorubás, os Orixás, é dada uma posição elevada, enquanto as heranças Banto, Angolana e Kongo, foram aglutinadas em uma linha, a linha das almas, a linha africana [de São Cipriano], que era na prática a linha da Quimbanda.[1]

 

Essa é a seção mais importante de nossa apresentação. A citação de Frisvold acima demonstra que muito embora como um sistema mágico-religioso a Quimbanda tenha se organizado a partir dos esforços de Lourenço Braga e Aluízio Fontenelle nas décadas de 1940-50, a ideia de Quimbanda já existia desde o primeiro autor de Umbanda: Leal de Souza (1880-1948). Por diversas vezes tenho ressaltado que a ideia de reinos na Quimbanda nasce da ideia de linhas de trabalho dos espíritos da Macumba carioca. A primeira abordagem literária sobre essas linhas de trabalho já na Umbanda, aparece no livro de Leal de Souza, O Espiritismo, a Magia e as Sete Linhas de Umbanda, de 1925. A própria ideia de Quimbanda como um sistema de magia nasce, também, como uma derivação da ideia de linhas de trabalho, a Linha Africana regida por São Cipriano. 

Por um momento pense no imaginário de Leal de Souza ao congregar em uma linha de trabalho o fetichismo mágico congolês aliado ao espiritismo (ou baixo espiritismo a partir dessa junção), com a necromancia ibérica de O Livro de São Cipriano. Essa é a origem real da Quimbanda, uma origem cipriânica. Leal de Souza não usa o nome Quimbanda, mas chama de linha negra ou magia negra, onde diz: os despachos aos elementos da Linha Negra, isto é, a Exu, ao povo da Encruzilhada, são feitos nos lugares que lhe deu essa designação.[2] 

A ideia de um tipo ou qualidade de trabalho mágico designado de magia negra foi a associação da feitiçaria fetichista congolesa com as ideias correntes do espiritismo e a necromancia ibérico-cipriânica, rotulada como baixo espiritismo e ganhando equivalência com o corpo mágico desenvolvido pela Macumba carioca. E é interessante que nessa passagem de Leal de Souza Exu esteja associado diretamente as encruzilhadas. Nascia aqui na Linha Africana a protoideia do reino das encruzilhadas que apareceria somente com Fontenelle na década de 1950. 

Mas Leal de Souza também cria a protoideia do reino do cemitério que também só apareceria em Fontenelle, associando a ele a ação de espíritos maléficos: Localiza-se nos cemitérios uma vasta massa de espíritos inconscientes, semi-inconscientes; ou tendo uma noção confusa da morte e fazendo um conceito errôneo de sua triste condição: - é o chamado povo do cemitério.[3] E a própria ideia do tipo de trabalho característico dessa Linha Africana que viria a se tornar a Quimbanda também já era descrita pelo autor: Na noite das grandes meditações piedosas, quando através de oceanos e continentes, a cristandade comemora, com sentimento uníssono, o martírio de Jesus, o Cristo, é que se fazem os mais funestos despachos macabros da banda negra. Violam-se túmulos, roubam-se cadáveres, profana-se a maternidade, em operações de magia sobre o ventre de mulheres grávidas, e uma onda sombria de maldade se alastra, espalhando o sofrimento e o luto.[4] Muito embora essa descrição possa parecer em grande parte fruto da imaginação de Leal de Souza, ela reflete uma prática comum que hoje existe na Quimbanda, herança das antigas Macumbas cariocas: os trabalhos de Semana Santa. 

Essa fusão mágico-cultural que viria a se agrupar em um primeiro momento na linha de trabalho africana regida por São Cipriano era inevitável: Os cultos africanos não chegaram em estado puro da África. O comércio de africanos desde o século XV colocou africanos e europeus em contato direto uns com os outros. Europeus católicos, europeus protestantes. Na própria população (no Brasil) encontramos nativos, muçulmanos, judeus e uma série de outros. E assim, o desorganizado tráfico negreiro luso-brasileiro reuniu, num mesmo lugar, africanos das mais diversas províncias, o que possibilitou uma fusão de mitologias à medida que novas eram erigidas e outras eram esquecidas.[5] A partir da fusão católico-congolesa, inúmeros santos populares na África, como Santo Antônio de Pádua e Santa Catarina de Siena, chegaram também ao Brasil para logo serem sincretizados com os espíritos da Macumba e posteriormente aparecerem de igual modo associados a Linha Africana. Fisvold fala deste desenvolvimento da Linha Africana da década de 1920 até a síntese de Fontenelle na década de 1950, quando os Exus da Quimbanda ganharam no imaginário brasileiro características demoníacas: 

Do início da década de 1920 até 1955, São Cipriano passou por uma grande transformação. Na década de 1920 foi eleito chefe da «linha africana» da Umbanda. Nesta linha encontramos espíritos africanos e santos cristãos particulares que tiveram sucesso na África. Esta linha foi, ao longo de um par de décadas, transformada na «linha das almas». Neste ponto os espíritos pertencentes à linha das Almas foram retratados com orelhas compridas, chifres e características diabólicas gerais. Esta foi a continuação da «linha africana» dentro da Umbanda. Aconteceu que o chefe da linha, São Cipriano, foi substituído por Omolu, outro Orixá africano que foi sincretizado com São Brás e São Nicolau. Em pouco tempo ele estava entendido como um Exu e dado a regência do Campo Santo - o cemitério.[6]

 

A Quimbanda como sistema mágico religioso se desenvolve, portanto, a partir dessa gênese, passando pelas elaborações de Lourenço Braga e Aluízio Fontenelle nas décadas de 1940-50, encerrando o primeiro momento da Quimbanda no Brasil. 

A Macumba foi um fenômeno religioso que nasceu no Rio de Janeiro, logo ganha São Paulo, Minas Gerais e Santos. Com as perseguições religiosas por parte do Estado, como descrevi na Revista Nganga No. 8, e a consolidação da Umbanda como religião popular, todo o segredo mágico-ancestral da Macumba passou a ser preservado e atualizado na Quimbanda. Assim, como sistema de magia e fenômeno religioso, a Quimbanda é filha do Sudeste, se espalhando para o Sul e Norte do Brasil a partir de sua gênese. 

Na Revista Nganga No. 8 coloco ênfase que o trabalho individual com Exu já existia antes da Quimbanda nascer como sistema mágico-religioso. Nas pesquisas entográficas, encontramos Exus assentados já em 1934 com a Mãe Cacilda no Rio de Janeiro e nos candomblés da Bahia entre 1936 e 1957. Mas fato é que o uso do termo Quimbanda associado a um sistema de magia só aparece com Lourenço Braga a partir da década de 1940.[7] Como destaco, kimbanda antes de Lourenço Braga era o indivíduo que trabalhava com Exu, não um sistema de magia. 

Assim, diferente do idealismo histórico de que a Quimbanda é um sistema ancestral cuja data é impossível de rastrear, como postulam alguns, a história demonstra com fatos rastreáveis que a Quimbanda como sistema de magia nasce dos esforços de Lourenço Braga e Aluízio Fontenelle nas décadas de 1940-50, a partir da Macumba carioca, no Sudeste do Brasil.



[1] Nicholaj de Mattos Frisvold. Seven Crossroads of Night: Quimbanda in Theory and Practice. Hadean Press, 2023, pp. 10.

[2] Leal de Souza. Citado em Humberto Maggi. Encruzilhadas e Cemitérios: Uma Introdução Histórica à Quimbanda. Clube de Autores, 2024, pp. 369.

[3] Ibidem, pp. 370.

[4] Ibidem.

[5] Edison Carneiro. Religiões Negras: Notas de Etnographia Religiosa. Civilização Brasileira, 1936, pp. 88.

[6] Nicholaj de Mattos Frisvold. Saint Cyprian: and the Sorcerous Transmutation. Hadean Press, 2013, pp. 10.

[7] Veja Humberto Maggi. Encruzilhadas e Cemitérios: Uma Introdução Histórica à Quimbanda. Clube de Autores, 2024, pp. 74-5.




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