Série:
Teurgia & Cabalá Crioula
Por Táta Nganga
Kamuxinzela
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O sacrifício tem sido considerado um impulso natural da religiosidade humana[1] desde os primórdios da humanidade e, por conta disso, tratou-se da experiência religiosa fundamental do homem no Mundo Antigo. Essa experiência religiosa começa como um impulso de reverência ao Sagrado em detrimento de um sentimento de culpa: como parte integrante da Natureza e participante ativo de seus ciclos, o homem se valia da violência da caça e do abate animal para sobreviver e, por conta disso, teve a necessidade de deificar essa ação natural. É assim que nasce o sacrifício animal, quando o homem entendeu que o animal abatido para sua sobrevivência deveria ser deificado e entregue ao Sagrado em um ato de reverência religiosa.[2]
Como um impulso natural da religiosidade humana, o sacrifício era uma prática natural, cotidiana, do homem antigo ou tradicional. Os homens comiam com os deuses ancestrais nas suas refeições diárias, quer dizer, toda e qualquer refeição era compartilhada com os deuses ancestrais no fogo das lareiras, onde toda a gordura animal, por exemplo, era consagrada a manutenção do fogo nos lares. Era comum, na imolação animal em reverência aos deuses ancestrais, o fogo da lareira comer a primeira parte do sangue,[3] porque ele era tanto o altar da família – e como tal uma fonte de conexão com a ancestralidade – quanto continha a pedra consagrada a um espírito ancestral familiar deificado, reverenciado como divindade.[4] O reconhecimento desta prática ritual está na Hermética. O Kore Kosmos diz:
Que os homens sejam
ensinados a temer a justiça penal dos deuses, e então nenhum homem pecará.
Conceda paz à humanidade e, assim, encha o mundo com boas esperanças; e que
eles aprendam a dar graças a ti por teus benefícios, para que assim eu, o Fogo,
possa prestar serviço em seus sacrifícios, e enviar vapores fragrantes para ti
da lareira do altar.[5]
A fundação do espaço sagrado em muitas culturas sempre dependeu do sacrifício, porque o rito repete e atualiza o mito. Neste caso, o mito cosmogônico do sacrifício primordial que dá nascimento ao Cosmos. Fazendo isso o homem cosmificava a aldeia, a cidade, o templo ou a casa como o centro de todo o Cosmos, tornando-o consagrado aos ritos hieráticos. Essa é a mecânica hierática do sacrifício animal como fundador de um centro ou até de uma morada de espíritos, como um assentamento ou imagem animada, porque para fazer durar uma construção adequada a comunicação com o Sagrado (um templo ou o corpo físico de um espírito), portanto uma construção mágica, esta deve ser animada, i.e. deve receber vida e uma alma. O sacrifício aqui, portanto, representava o acesso ou o translado da alma sacrificada para animação da construção.[6]
Como uma ferramenta hierática soteriológica, o sacrifício foi utilizado em cultos ctonianos e em cultos urânicos; em religiões naturais e em religiões reveladas no Mundo Antigo, servindo tanto a catábase (descida ao Submundo) quanto a anábase (subida aos éteres superiores). Mas o sacrifício também era usado para fins estritamente mágicos, como a aplacação da violência da Natureza, i.e o controle sobre as forças do Cosmos. Assim, como uma ferramenta usada indiscriminadamente pelo homem pelos motivos que deseja, o sacrifício tem sido utilizado para fins transcendentes (i.e. místicos) ou para fins estritamente materiais (i.e. mágicos, taumatúrgicos) até os dias de hoje, porque ele sempre foi considerado como a ferramenta par excellence tanto para acessar e se comunicar com as forças do Cosmos, quando para obter controle sobre elas. É dessa maneira que o sacrifício era utilizado no hermetismo e na teurgia, e é também assim, da mesma maneira, utilizado na Quimbanda.
Quando um indivíduo é iniciado na Quimbanda, ele recebe o fundamento da mão de faca ou mão de corte, termos para a mesma função hierática: a tarefa sacerdotal (i.e. hierofânica) de sacrificar animais aos deuses. Neste caso os deuses da Quimbanda, os Exus e Pombagiras. Ao receber o fundamento – i.e. o racional – da mão de faca, o kimbanda iniciante compreende as razões pelas quais o homem sacrifica animais aos deuses. Este fundamento, no entanto, já havia sido mencionado por Jâmblico: por sermos dotados das capacidades (ou virtudes) da razão (logos) e da inteligência divina (nous), somos superiores aos seres que não as possuem, quer dizer, todos os animais do reino da geração e a miríade de espíritos sublunares que o compõem.
Existe
outra classe de seres, presentes ao nosso redor, destituída de razão (logos)
e inteligência (nous), à qual foi atribuído um único poder, segundo a
distribuição de tarefas que lhe foram designadas em cada parte do Universo.
[...] Existem certos espíritos invisíveis, a cada qual atribuída uma esfera
específica de atuação, sendo naturalmente adaptados para cumprir unicamente o
papel designado a eles. [...] Uma vez que nosso espírito é naturalmente dotado
da capacidade de raciocinar e discernir a natureza das coisas, e abriga
múltiplas capacidades vitais, estamos acostumados a dar ordens a seres
irracionais, que se dedicam a executar uma única tarefa de cada vez.[7]
É por esse motivo, portanto, que temos a capacidade de, tanto comandar os espíritos (daimones) da região sublunar que se dedicam a executar apenas uma tarefa na demiurgia do Cosmos, quanto somos capazes de manipular os símbolos (symbolon) e os sinais (sunthēmata) que articulam e estruturam os ritos da teurgia. Por esses termos – símbolos (symbolon) e sinais (sunthēmata) – na linguagem da Quimbanda entenda agentes mágicos universais, i.e. todos os elementos utilizados para confecção de fetiches (como uma estátua animada ou firmeza), realização dos feitiços nos pontos de força (as zonas de poder da Quimbanda), o feitio das oferendas (os padês e os sacrifícios), e a veneração dos espíritos cultuados; todos os elementos, dessa maneira, devem ser apropriados as deidades do culto e servem tanto para atraí-los quanto para representa-los. N.A. Molina em sua obra Saravá Exu diz:
Caro Irmão de Fé, ao
escrever este pequeno trabalho, foi com o intuito de esclarecer e ensinar aos
Irmãos de Fé, diversos tipos de Magias, Feitiços, Oferendas e Despachos,
diversos Trabalhos de defesa e de ataque. Enfim procurei ensinar de tudo um
pouco sobre o Agente Mágico Universal, suas cores, seus locais certos onde
devem ser colocados seus despachos. Torna-se necessário que se esclareça
tudo a respeito deste Povo, pois utilizado com sapiência, através deles
consegue-se verdadeiros milagres.[8]
O fundamento basilar do sacrifício, portanto, é que são as nossas capacidades ou virtudes que nos colocam acima dos animais na cadeia (seirai) hipostática divina, o que nos confere o direito sagrado hierático de utilizá-los, seja para alimento, vestimenta, remédio ou ação religiosa.
O uso dos elementos materiais adequados, os agentes mágicos universais, propicia uma melhor conexão com os espíritos Gangas da Quimbanda, por causa da simpatia (sympatheia) entre os espíritos e os elementos materiais. Assim também é na teurgia: a funcionalidade hierática dos sinais e símbolos nos ritos teúrgicos depende deste conceito central na síntese de Jâmblico, a simpatia. O efeito milagroso dos sacrifícios, a razão particular pela qual eles alcançam resultados tão impressionantes, a ponto de não haver a cessação de pragas, fome ou esterilidade sem eles, nem petições de chuva, nem ainda fins mais honrosos do que estes, tais como contribuir para a purificação e perfeição da alma, ou para sua libertação dos laços da geração,[9] está na correta observação da simpatia. Jâmblico diz:
É mais prudente, portanto,
buscar a causa subjacente à eficácia dos sacrifícios na simpatia, afinidade e
interconexão que unem os criadores às suas criações e os geradores aos seus
deuses descendentes. Quando, sob a orientação deste princípio comum,
compreendemos que um animal ou planta que cresce na terra mantém de forma pura
e simples a intenção de seu criador, então, por seu intermédio, acionamos de
maneira apropriada a causa criadora que, sem comprometer sua pureza, governa
essa entidade.[10]
É a simpatia o meio através do qual os deuses se fazem presentes em todas as coisas, i.e. nos seus símbolos e sinais. Daí que Proclo diz: todas as coisas estão cheias de deuses.[11] A sábia manipulação destes elementos materiais atrai a ação dos deuses, do mesmo modo que dá acesso a eles. A noção de simpatia de Jâmblico deriva de Plotino (205-270 d.C.), que vê o Cosmos como um todo grandioso, harmonioso e orgânico no qual todas as partes correspondem umas às outras sem a necessidade de elos intermediários ou cadeias de causalidade.[12] E é um entendimento basilar na tradição da magia que a simpatia é uma das causas fundamentais pelas quais a magia opera e funciona:
Esta primeira categoria [controle]
diz respeito a práticas pelas quais se tenta ganhar algum tipo de influência ou
poder sobre a realidade. Muitas delas têm sua origem, de forma bastante
simples, no fato básico da vulnerabilidade humana: em maior ou menor medida,
todos estamos à mercê de circunstâncias externas que podem nos prejudicar de
uma forma ou de outra, e assim é bastante natural que os seres humanos reajam
tentando encontrar alguma forma de controle em um mundo ameaçador. Um exemplo
óbvio é o uso generalizado de amuletos ou talismãs para fins como proteção
pessoal contra perigos naturais, como doenças ou morte, mas também contra as
intenções maliciosas (imaginadas ou reais) de outros seres humanos. Pois, além
de as pessoas sentirem a necessidade de proteção contra danos, elas também
podem tomar a iniciativa e realmente tentar prejudicar seus inimigos, por meio
de ferramentas e técnicas semelhantes.
Claro,
infligir dano ou proteger-se contra ele é apenas uma das possíveis motivações
para se engajar em práticas de controle: por exemplo, ao longo da história,
homens e mulheres usaram encantos ou poções para fazer com que outros homens ou
mulheres se apaixonassem por eles ou consentissem em fazer sexo, mas técnicas
semelhantes também foram aplicadas a objetivos como a busca por poder ou
riqueza (por exemplo, encontrar tesouros escondidos). As explicações para o
motivo pelo qual essas práticas funcionariam variam desde causas naturais, como
poderes ocultos e as forças cósmicas de simpatia e antipatia [de Plotino], até
assistência de agentes [mágicos universais] sobrenaturais, como demônios
ou anjos.[13]
Para Jâmblico o sacrifício era sinônimo do ritual sagrado da teurgia. Os símbolos (symbolon) e os sinais (sunthēmata),[14] as músicas e os nomes bárbaros de evocação (voces magicae), os cálculos astrais corretos e a simpatia (sympatheia) estabelecida entre todos os materiais usados no ritual, suas partes constituintes e suas contrapartes cósmicas, a presença do fogo sagrado etc. no ritual, eram elementos que gravitavam ao redor do eixo ou motor da teurgia, i.e. o sacrifício. De igual modo é na Quimbanda: todas as etapas do culto gravitam ao redor do sacrifício, que sempre coroará os toques, quer dizer, os rituais. É por esse motivo a impossibilidade da existência de uma Quimbanda sem sacrifício ou sem sangue, como tolos costumam postular.
Os ritos da teurgia, segundo Jâmblico, podem levar a gradual purificação e harmonização dos complexos que compõem a alma, promovendo o equilíbrio entre o conjunto de seus complexos e os poderes divinos do Cosmos. Isso é compreendido no Livro V do De Mysteriis, onde Jâmblico elabora como as práticas ritualísticas, que incluem orações e sacrifícios, são fundamentais para a elevação e purificação (anábase) da alma e, acima de tudo, para a aproximação, conexão e comunhão com os seres superiores. Essa é a função soteriológica do sacrifício a partir da reforma estabelecida por Jâmblico no paganismo greco-sírio do fim da Antiguidade.
Assim como os deuses
purificam a matéria por meio do fogo do raio, separando dela os elementos que
são imateriais em sua essência, mas que estão subjugados e aprisionados pela
matéria, e os tornam impassíveis ao invés de passíveis, da mesma maneira o fogo
[sacrificial] do nosso reino, imitando a ação do fogo divino, consome tudo o
que é material nos sacrifícios, purifica as oferendas com suas chamas e
liberta-as dos laços da matéria. Assim as oferendas tornam-se aptas, por meio
da purificação de sua natureza, para o convívio com os deuses, e por meio deste
mesmo procedimento, nós também somos liberados dos laços da geração,
assemelhando-nos aos deuses e nos tornando dignos de desfrutar de sua amizade.
Nossa natureza material é transformada em imaterial.[15]
Assim como o fogo não admite nele nada que seja diferente dele, de igual modo o fogo divino dos deuses não aceita nele algo que seja distinto dos deuses. Na teurgia o fogo sacrificial é um sunthēmata do fogo divino dos deuses, que tanto purifica a natureza essencial das oferendas, libertando-as dos acidentes da matéria – i.e. fazendo reluzir e resplandecer a natureza divina que existe nelas, em conformidade com a imaterialidade dos deuses –, quanto purifica a alma de seus acidentes materiais impuros, invertendo seu anatropismo. Dessa forma, tanto as oferendas quanto a alma assumem uma natureza mais elevada, condizente com a natureza dos deuses, proporcionando a comunicação, conexão e convívio, a amizade mencionada por Jâmblico, com eles.
Na Quimbanda o fogo é um agente mágico universal que emula o próprio fogo das profundezas do Inferno, quer dizer, do Submundo. Assim como na teurgia de Jâmblico – e nos antigos cultos familiares greco-romanos (e indo-arianos) – o fogo na Quimbanda tanto pode comer, i.e. ele recebe oferendas e as purifica, quanto tem um efeito purificador na alma, como na calcinação da alquimia, em ambos os casos. Na Quimbanda o fogo é um símbolo vivo de Exu, cuja natureza é a mesma do magma, o fogo líquido das profundezas da terra. Por isso o fogo é um elemento essencial nos toques de Quimbanda. Sendo o fogo um símbolo vivo de Exu, um agente mágico universal, manipulá-lo é também manipular o próprio fogo das profundezas. E é isso que o kimbanda faz, no entanto, sem queimar as mãos. O fogo na Quimbanda tanto representa a natureza essencial de Exu, quanto a alma deificada do kimbanda, símbolos par excellence do Sol que brilha no Submundo. Existe um ditado na Quimbanda que diz: Exu só é Exu de verdade na Quimbanda. Porque miticamente a Quimbanda lida com o Reino de Fogo do Inferno, o Submundo: somente Exus genuínos podem habitar a Quimbanda, porque o fogo não aceita nada que seja diferente dele nele. Só reina no Inferno quem é Diabo de verdade! Desde a Antiguidade tanto a anábase quanto a catábase necessitam de purificação e era senso comum que nem todos conseguiam adentrar aos portões do Hades.[16]
Porfírio em sua Carta a Anebo demonstra total desprezo pelo culto tradicional da religião grega no que concerne a ação e finalidade do sacrifício animal, interpretando-o como prejudicial a alma humana. Ele alega, inicialmente, que a única função do sacrifício é alimentar os daimones sublunares do reino da geração. Os daimones sublunares são parte da função criativa, cosmogônica e cosmológica do Uno-bem espalhados na pluralidade das formas, regendo a própria conexão das almas humanas com o reino da geração, o impulso do crescimento etc.; são as diversas funções que compõem a demiurgia do Cosmos. Porfírio também alegou que o sacrifício polui os éteres superiores com a matéria inferior do reino da geração.
A estas questões fundamentais, Jâmblico argumenta que os daimones, sendo superiores as almas dos homens na cadeia hierárquica hipostática, não recebem destes seu alimento. Em outras palavras, uma vez que as almas dos homens estão abaixo dos daimones, elas não têm condições de alimentá-los. São os deuses, superiores aos daimones, que dão a eles o seu sustento. E se os daimones não precisam dos homens para se alimentar, muito menos precisam os deuses, porque são imutáveis e impassíveis, luminosos e livres de necessidades.[17] Além disso, Jâmblico também nega que os sacrifícios poluem os éteres superiores, porque o detrito material da fumaça dos sacrifícios não ultrapassa o orbe da Lua.[18]
No Mundo Antigo os deuses exigiam sacrifícios. Com o desenvolvimento da filosofia, organização social e religiosa, a necessidade do sacrifício aos deuses começou a ser questionada. Porfírio em sua Carta a Anebo representa o ápice desse questionamento filosófico e difícil de responder: se os deuses são transcendentais, por que eles precisam de sacrifícios materiais? A questão é que a religião, no contexto de seu surgimento e desenvolvimento nas distintas culturas, sempre é atualizada para suprir as necessidades sociais de um dado período. A Bíblia é uma das melhores ilustrações para demonstrar isso: o mesmo Deus que no Velho Testamento exigia sacrifícios de bois, cabras e carneiros, no Novo Testamento passou a se contentar com orações e sacrifícios morais. Com o desenvolvimento da cristandade toda metalinguagem do sacrifício foi atualizada para nova religião.[19]
Assim, efetivamente, quem se beneficia dos sacrifícios? Jâmblico argumenta que são as almas dos homens as maiores beneficiadas com o sacrifício, o motor dos ritos de teurgia. Ele diz literalmente que os sacrifícios contribuem para a purificação ou a perfeição da alma [do sacrificador] ou para sua libertação dos laços da geração.[20] E muito embora ele aborde a questão do sacrifício para suprir demandas de ordem corpórea, secular,[21] sua função principal é soteriológica, i.e. a purificação e elevação da alma. Meus leitores estão acostumados com outro bordão que sempre está presente em meus escritos: se o sacrifício não matar algo dentro de você, então sua função soteriológica não está funcionando.
Se até aqui a teurgia de Jâmblico e a Quimbanda concordam que o sacrifício como ferramenta mágico-religiosa servirá tanto a soteriologia (a purificação da alma para anábase ou a catábase), quanto a taumaturgia, o efeito milagroso da magia, a transformação do tecido da realidade; por outro lado a Quimbanda está em acordo com a Hermética e demais cultos religiosos na Antiguidade: os deuses terrestres necessitam de moradia e sacrifícios materiais de animais imolados e oferendas diversas. O fundamento é que uma deidade ctônica ou inteligência terrestre só pode atuar no reino da geração a partir de bases materiais. Em outras palavras, a deidade tem de estar corporificada, assim como nós seres humanos estamos, e comerá tudo o que nós humanos comemos. É isso que constitui a base do culto as estátuas animadas (telestikē) no hermetismo e na teurgia, o que está em sincronia direta com a arte de corporificação dos Gangas na Quimbanda em assentamentos ou firmezas.
Mas qual é a qualidade
desses deuses que são tidos como terrenos? Do que se trata,
Trismegisto?
Trata-se de
uma mistura de plantas, pedras e ingredientes que contêm naturalmente um poder
divino, Asclépio. E é por este motivo que os deuses valorizam nossos
sacrifícios costumeiros, nossos hinos, louvores e doces melodias que tão bem se harmonizam com a
harmonia celestial: para que o componente celestial sugestionado à efígie
mediante um diálogo constante com o céu possa aguentar de bom grado sua
permanência entre os seres humanos. É assim que o homem forja seus deuses.
[...] Aqui embaixo nossos deuses auxiliam os seres humanos por afinidade
afetiva, cuidando de algumas coisas de forma privada, antecipando outras pela
sina e pelo augúrio e ainda concebendo um plano que auxilie de outros modos,
cada qual como puder.[22]
Uma vez que o sacrifício é sinônimo de teurgia para Jâmblico, ele postula que há dois tipos de ritos teúrgicos: sacrifícios materiais e imateriais. Eles são adequados a três tipos de almas: as noéticas, que estão acima da natureza e do destino; as intermediárias, àquelas que estão entre a natureza e o divino; e as materiais, que são àquelas que seguem atadas a natureza e o destino. As almas noéticas executam os ritos imateriais de teurgia, muito embora possam participar dos ritos materiais, sem necessariamente necessitar deles. As almas intermediárias precisam de ambos os ritos imateriais e materiais; para estas almas, os ritos materiais constituem uma ponte necessária aos ritos imateriais. Já as almas materiais, atadas as revoluções do reino da geração, necessitam dos ritos materiais e são incompetentes ou desqualificadas aos ritos imateriais.[23]
De fato, as orações servem
para conferir o mais alto grau de completude aos sacrifícios, pois é por meio
delas que toda a eficácia dos sacrifícios é reforçada e levada à perfeição, e
uma contribuição conjunta é feita ao culto, e uma comunhão hierática indissolúvel
é criada com os deuses.[24]
Essa ideia dos ritos materiais e imateriais tem herança na Hermética. No hermetismo, dois tipos de sacrifícios são oferecidos aos deuses: o sacrifício material e o sacrifício verbal. O sacrifício material, i.e. a imolação animal e a oferta de diversos elementos materiais queimados, é dedicado aos daimones, sendo eles deuses terrestres, de modo geral, as inteligências sublunares. O sacrifício verbal é oferecido somente ao Uno-Bem e deuses hipercósmicos. No primeiro hino do Corpus Hermeticum (Livro I, Verso 31) temos: Aceita os sacrifícios verbais e puros de uma alma e coração voltados para ti, inefáveis, indizíveis, expressos pelo silêncio.[25] Ao que o professor Vinícius Pimentel Ferreira comenta: O sacrifício ofertado é o próprio hino, um sacrifício verbal (lógicas thysías), pois no Hermetismo nada de natureza material deve ser ofertado a Deus. O pedido é por sabedoria e retidão no conhecimento divino, força para passar adiante a doutrina aos que podem recebê-la. A justificativa do pedido é salvar os que estão na ignorância e cumprir com o propósito recebido.[26]
Eu venho demonstrando que a Quimbanda é um relicário
que preserva e atualiza antigas técnicas mágico-religiosas ancestrais de
feitiçaria, as tendo recebido por herança cultural a partir de três troncos:
necromancia ibérica e demonologia europeia, xamanismo ameríndio e feitiçaria
africana. Todo esse saber do Mundo Antigo acerca da finalidade e propósito do
sacrifício está preservado na Quimbanda. Para além disso, da cultura yorùbá
a Quimbanda herda uma vasta fundamentação sacrificial para comunicação com os
espíritos: i. sacrifício de agradecimento e comunhão (ẹbọ opé àti ìdàpò); ii.
oferenda votiva (ẹbọ èjè); iii. sacrifício propiciatório/expiatório (ẹbọ ètùtù);
iv. sacrifício preventivo (ọjú kòríbi); v. sacrifício substitutivo (ẹbọ
ayépinnu) e; vi. sacrifício de fundação (ẹbọ ìpìlè). O ọbẹ ètùtù é o sacrifício
o mais significativo quando se trata de pacificar a ira dos deuses ou fazer
compensações por erros. O sangue do animal sacrificado substitui tanto a vida
do ofensor quanto a de toda a sua comunidade.[27]
[1] Walter Burket. Homo
Necans. The Anthropology of Ancient Greek Sacrifical Ritual and Mith.
University of California Press, 1983, pp. xxiii.
[2] Jennifer Wright Knust e
Zsuzsanna Várhelyi. Ancient Mediterranean Sacrifice. Oxford, 2011, pp.
7. Dessa noção deífica do sacrifício animal nasceu a crença xamânica do animal
de poder. Tradicionalmente o xamã é iconograficamente representado como um
homem cercado por um conjunto de animais. Estes são os animais que ele
sacrificou e deificou, feitos de espíritos servidores pela ação deífica do
sacrifício. Veja o primeiro volume do Daemonium.
[3] Fustel de Coulanges. A
Cidade Antiga. Martin Claret, 2009, pp. 33.
[4] Ibidem, pp. 39.
[5] Kore
Kosmos. Verso 56. Tradução particular de Vinícius Pimentel
Ferreira. Primeira Edição, 2022, pp.117.
[6] Mircea Eliade. O
Sagrado e o Profano. Martins Fontes, 2018, 53-5; 70-2.
[7] Jâmblico. De Mysteriis.
Livro IV, Verso 1. Polar, 2024, pp. 257.
[8] N.A. Molina. Saravá Exu.
Editora Espiritualista, 3ª Edição, pp. 15, sem data. Os itálicos são meus. Por
esse termo, agente mágico universal entenda: i. o Chefe Império Maioral;
ii. os Gangas da Quimbanda; iii. os pontos de força ou zonas de poder
da Quimbanda; iv. os elementos diversos utilizados para realização dos
processos do culto como os feitiços, oferendas e sacrifícios. Seus equivalentes
na teurgia são os símbolos (symbolon), os sinais (sunthēmata), as
voces magicae etc.
[9] Jâmblico. De Mysteriis.
Livro V, Verso 6. Polar, 2024, pp. 280.
[10] Jâmblico. De Mysteriis.
Livro V, Verso 9. Polar, 2024, pp. 283.
[11] Proclo. Sobre a Arte
Hierática. Citado em Jâmblico. De Mysteriis. Livro V, Verso 9.
Polar, 2024, pp. 283.
[12] A noção de que mesmo as
partes mais remotas do universo podem corresponder umas às outras através de
uma espécie de simpatia secreta, baseada em sua semelhança ou semelhança
inerente (similitudo), é extremamente difundida e foi destacada por
Antoine Faivre (1934-2021) como a primeira característica intrínseca do esoterismo
ocidental. A noção de correspondências na magia moderna é
inseparável deste conceito de simpatia e de ideias semelhantes discutidas
sob rubricas como pensamento analógico, pensamento correlativo, semelhança,
assinaturas, participação ou sincronicidade. Muitas vezes
tem sido vista como essencial para a visão de mundo da Renascença. Veja o
terceiro volume do Daemonium.
[13] Wouter J, Hanegraaff. Western Esotericism: A Guide for the Perplexed. Bloom Sbury, 2013, pp. 106.
[14] Veja o primeiro volume do Daemonium
para uma compreensão desse tema: os símbolos e sinais da teurgia, o que são e
como utilizá-los.
[15] Jâmblico. De Mysteriis.
Livro V, Verso 12. Polar, 2024, pp. 288-9.
[16] Veja o texto Glorificados
no Inferno.
[17]
Jâmblico. De
Mysteriis. Livro V, Verso 4. Polar, 2024, pp. 279.
[18] Jâmblico. De Mysteriis.
Livro V, Verso 4. Polar, 2024, pp. 276-9.
[19] Veja o artigo Quimbanda
& Magia Cerimonial: O Sacrifício Animal.
[20] Jâmblico. De Mysteriis.
Livro V, Verso 6. Polar, 2024, pp. 280.
[21] Jâmblico. De Mysteriis.
Livro V, Verso 16. Polar, 2024, pp. 293.
[22] Logos Teleios, 38. Tradução
particular de Pedro Barbieri Antunes. Soteriologia e cosmogonia no Corpus
hermético: o caminho iniciático do hermetismo antigo. Universidade de São
Paulo, 2022, pp. 316;
[23]
Jâmblico. De
Mysteriis. Livro V, Versos 17-20. Polar, 2024, pp. 294-8.
[24] Jâmblico, citado no artigo
de Fernanda Lemos Lima. Theurgic Rites with Metaphysical Meanings. Dia
Noesis: A Journal of Philosophy, 2018, pp. 32-3. UFRJ: Departamento de
Letras e Estudos Orientais.
[25] Vinícius Pimentel Ferreira
(trad.). Daxografia Hermética: O estudo dirigido do Hermetismo Antigo.
Material particular do autor.
[26] Ibidem.
[27]
Fernando Liguori. Quimbanda
& Magia Cerimonial: O Sacrifício Animal.