Por Táta Nganga
Kamuxinzela
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INTRODUÇÃO
Há décadas tem havido uma grande inconsistência, incoerência e falta de consenso na compreensão da divindade Exu da cultura e imaginário afro-brasileiro. Desde que seu núcleo mítico começou a ser desenvolvido na Macumba e suas diversas linhas de trabalho, passando a Umbanda e Quimbanda e, destas, aos diversos candomblés, catimbós e outros cultos afro-diaspóricos e comunidades ayahuasqueiras ribeirinhas, como o Santo Daime e a Barquinha da Bacia Amazônica, Exu tem ganhado interpretações distintas nas mãos dos religiosos e dos autores populares. A confusão é tão medonha que a própria existência de Exu como divindade brasileira – por causa dessa incoerência e falta de consenso – tem sido questionada por ocultistas da trupe do hemeticismo.[1]
A antropóloga Liana Trindade publicou em 1985 sua pesquisa acadêmica chamada Exu: Poder & Perigo. Nela, a pesquisadora entrevistou cinquenta umbandistas, indagando sobre o conhecimento que possuíam sobre Exu. As mais diversas interpretações foram relatadas, dentre as quais destaco: i. Exu é filho da prostituta Yemọja e impôs provações a Jesus Cristo; ii. Exu é o Diabo; iii. Exu é espírito de morto obsessor; iv. Exu é escravo de òrìṣà; v. Exu é espírito elemental;[2] vi. Exu é espírito de homens de baixíssimo nível; vii. Exu é òrìṣà de tipo menor ou inferior; viii. Exu é um espírito que nasce do pacto com o Diabo etc.[3] Antônio de Alva em seu livro Exu: Gênio do Bem e do Mal, associa os Exus tanto aos diabos quanto as almas dos mortos. Nas décadas de 1970-1990, uma miríade de mitologemas sincretizando Exu com santos e anjos católicos criou mais dificuldade na compreensão da natureza de Exu, e essa inconsistência perdura até hoje. Esse tipo de confusão mítica, no entanto, é comum no folclore de muitas culturas, que tendem a uma diversidade muito maior do que as estruturas rígidas da religião ortodoxa estabelecida.
A ideia de que os Exus são espíritos de mortos vem tanto do espiritismo quanto da cultura religiosa banto, e que tiveram muita sincronia quando se encontraram no fim do Séc. XIX no Brasil.[4] Como veremos a seguir, o processo que cristaliza Exu como Diabo no imaginário afro-brasileiro teve quatro etapas: i. a demonização de Èṣú òrìṣà na África pelos primeiros missionários cristãos; ii. a transferência transatlântica desse Èṣú-òrìṣà-Diabo da África yorùbá para os diversos candomblés no Brasil; iii. a assimilação do Èṣú-òrìṣà-Diabo dos candomblés pela Macumba e; iv. finalmente, as conexões diabólicas estabelecidas entre o Diabo e os demônios dos grimórios e demonologia europeia nas mãos de Lourenço Braga (1900-1963) e Aluízio Fontenelle (1913-1952), dando origem a Quimbanda como a conhecemos hoje.[5]
Somente agora, setenta e quatro anos após a fundação da Quimbanda através da síntese de Aluísio Fontenelle, é que Exu tem sido reconhecido como espírito ou alma deificada, uma divindade ctoniana iconograficamente representado como um diabo. Eu fiz um resumo das influências culturais recebidas por Exu e, fundamentalmente, na aglutinação ou assimilação dos poderes advindos dessas influências, na Revista Nganga No. 11, a qual recomento estudo. Você perceberá que o Exu-Diabo da Quimbanda recebe os poderes de Èṣu e Ògún òrìṣá, de Nkosi nkisi, do Diabo da feitiçaria e necromancia ibérica, dos demônios da demonologia europeia, e de santos, anjos e heróis como Santo Antônio, São Miguel Arcanjo e São Cipriano, o Bruxo. Exu é tão rico que em si, traz todos esses poderes.
EXU-DIABO
Muitos indagam de onde vem essa ideia do Exu-Diabo da Quimbanda. Tudo começa com a demonologia cristã que se desenvolveu no fim da Antiguidade e tinha como objeto caracterizar qualquer divindade pagã como demônio (espírito maligno). Nos textos A Incursão Diabólica na Quimbanda e As Origens da Demonologia de Aluízio Fontenelle, ambos disponíveis na Revista Nganga No. 11, eu faço uma introdução acerca deste processo de demonização das divindades e espíritos do folclore pagão de muitas culturas pelas mãos dos primeiros teólogos da Igreja.
Não foi diferente com Èṣú òrìṣà. Além de ser considerado demônio sob o olhar ortodoxo cristão só por ser uma divindade pagã, também foi relacionado diretamente ao Diabo pelos primeiros missionários cristãos na África. Tanto a iconografia fálica de Èṣú, quanto suas características, a licenciosidade, a trapaça, a rebeldia, a violação das leis, o apadrinhamento de adultérios e violações morais descritas em diversas recessões de seus mitos, levaram os missionários a relacioná-lo diretamente ao Diabo. E isso foi aceito, em algum momento, pelos próprios yorùbás e trazido ao Brasil, influenciando os diversos candomblés, onde passou a ser considerado uma força disruptiva que deveria ser apaziguada antes dos rituais para não causar problemas. Esse modus operandi de lidar com Èṣú como uma força disruptiva a ser apaziguada no início das sessões, teria um impacto profundo nos primeiros anos de desenvolvimento da Umbanda.
Com a mudança na estrutura econômica brasileira que teve início na virada do Séc. XX, de uma sociedade agrária para uma sociedade industrial, houve uma intensa migração dos campos para as cidades e, portanto, uma intensa mudança social. Os calundus formaram nos campos a primeira tentativa de se organizar em terras brasileiras a religiosidade africana. Por volta de 1618 começaram a aparecer os primeiros relatos de africanos comendo, cantando, dançando e sacrificando animais em honra aos seus ancestrais.[6] Estes calundus são os ancestrais mais antigos da Quimbanda no Brasil. O termo vem do kimbundo, kilundu, que pode significar espírito elevado (magnífico), qualquer espírito do mundo invisível, divindade da loucura e possessão, magnetismo ou força mágica.[7] Com a mudança econômica e evasão do campo para as cidades, os calundus deram nascimento aos diversos candomblés das cidades. Nasciam os terreiros de asfalto, termo utilizado para caracterizar a nova tendencia da época.
A cabula foi um grupo político-religioso banto que se organizou silenciosamente aos moldes de uma sociedade secreta, com influências diversas como o espiritismo e o esoterismo maçônico.[8] Foi creditada como o grupo que esteve por trás de várias insurreições negras no fim do Séc. XIX e que eclodiram endemicamente em várias regiões do Brasil antes do fim da escravidão em 1888. Após este período a cabula ganhou prestígio e notoriedade, gozando de muitos adeptos iniciados, ao ponto de ser perseguida pelo Estado, com muitos cabuleiros sendo assassinados.[9] Toda estrutura ritual da cabula envolvia o embanda (sacerdote) possuído por um espirito ancestral (táta) sendo auxiliado por um ajudante, o cambone. O embanda da cabula é o protótipo mais antigo do táta-nganga da Quimbanda. E de igual modo aos antigos calundus, com a mudança econômica aliada a perseguição estatal, a cabula se dissolveu e seus embandas sobreviventes formaram os inúmeros núcleos de Macumba no Rio de Janeiro e São Paulo.
É da cabula que a Macumba e, posteriormente a Umbanda e a Quimbanda, herdam muitos elementos que vão desde o nome das divindades ancestrais, das parafernálias rituais, das figuras de linguagem, dos cantos e das danças. Mas é somente quando as macumbas se encontram com os candomblés na cidade, que o Èṣú-òrìṣà-Diabo dos candomblés se torna o Exu-Égún-Diabo das macumbas. É na Macumba que ocorre a miscigenação cultural banto-yorùbá, quando os òrìṣà se encontram com os espíritos ancestrais dos bantos e dão as mãos. Aqui estamos ainda no primeiro momento da Quimbanda no Brasil, que começa no Brasil Colônia, passa pelo Brasil Império até o Brasil República na década de 1950, quando Aluísio Fontenelle inaugura o segundo momento com sua síntese demonológica da Quimbanda.
Quando os espíritas cooptaram e corromperam a Macumba, dando nascimento a Umbanda branca, a Quimbanda surge como uma preservadora e atualizadora das antigas práticas ancestrais da Macumba.[10] Tudo começa com Lourenço Braga que inaugura a Lei de Quimbanda na década de 1940. Ele é o primeiro a associar o Chefe Império Maioral, o Diabo, a Chefia da Quimbanda em seu livro Umbanda & Quimbanda de 1942, a partir de uma tese apresentada em 1940 no Primeiro Congresso de Umbanda organizado no Brasil. Tamanho era o seu prestígio no meio umbandista que Lourenço Braga abre o congresso apresentando sua tese sobre a Quimbanda como um sistema de magia que operava com forças infernais.
Uma década a frente, Aluísio Fontenele inaugura sua
síntese a partir das ideias de Lourenço Braga, associando os Exus aos demônios
(inteligências terrestres) do Grimorium Verum, um livro de magia
diabólica franco-italiano do Séc. XVIII. É a partir do trabalho de Fontenelle
que a Quimbanda finalmente toma fôlego e começa a se desenvolver como um culto
mágico-religioso em vertentes nascidas de três ondas de manifestação:
1950-70; 1970-90; 2000-24. Sendo as vertentes tradicionais àquelas de primeira
onda (1950-70). É na síntese de Fontenelle que Exu torna-se Diabo,
definitivamente, no imaginário cultural brasileiro.
[1] Não confundir com hermetismo,
termo que define um conjunto de textos conhecido como Hermética (e a cosmovisão que deles se deriva, dos
quais o mais importante é o Corpus Hermeticum) e que surgiu pouco antes
da queda do Império Bizantino. O hermeticismo designa o conjunto de
doutrinas esotéricas que modernamente ganham a alcunha de herméticas
após as redescobertas de Marsílio Ficino (1433-1499) e Ludovico Lazzarelli
(1447-1500), e que derivou no renascer da magia no fim do Séc. XIX em
ordens como a Fraternidade Hermética de Luxor e a Ordem Hermética da
Aurora Dourada, e a partir delas e de outras, no esoterismo Nova Era com os
temas da Qabalah Hermética ou das leis do Caibalion etc.
[2] Veja João de Freitas. Exu
na Umbanda. Editora Espiritualista, 1971. João de Freitas nega a
possibilidade de Exu ser tanto demônio (ou o Diabo) quanto alma de mortos. Para
ele, Exus são elementais, fluídos da natureza.
[3] Liana Trindade. Exu:
Poder & Perigo. Editora Ícone, 1985, pp. 195-9.
[4] Sobre a sincronia entre a
cultura religiosa dos bantos, que por natureza absorvia elementos de outras
culturas, e o espiritismo no fim do Séc. XIX, veja Nicholaj de Mattos Frisvold.
The Paladins of Earth and Fire. Artigo publicado na revista Conjure
Codex Vol. I. Hadean Press, 2011, pp. 16. Veja também Humberto Maggi. Encruzilhadas
e Cemitérios. Clube de Autores, 2024.
[5] Uma introdução concisa ao
tema foi feita na Revista Nganga No. 8.
[6] Humberto Maggi. Encruzilhadas
e Cemitérios. Clube de Autores, 2024, pp. 33.
[7] Agostinho Silva Milagres. Dicionário
de Kimbundo. Arquivo digital do autor, sem data ou páginas.
[8] Esse esoterismo maçônico –
que trazia consigo a influência do Ocultismo francês do fim do Séc. XIX –
seria transferido, posteriormente, a Umbanda e a Quimbanda.
[9] Humberto Maggi. Encruzilhadas
e Cemitérios. Clube de Autores, 2024, pp. 44-5.
[10] Veja Revista Nganga
No. 8.