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A QUIMBANDA & O OCULTISMO MODERNO

 

Por Táta Nganga Kamuxinzela

@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago 

 

Nota: esse texto é um excerto do terceiro volume do Daemonium: A Quimbanda & a Nova Síntese da Magia. Para uma melhos compreensão, antes de ler esse texto, leia outro excerto do livro publicado aqui anteriormente: A Quimbanda no Esoterismo Ocidental, para uma melhor compreensão da matéria. 

 

Desde a primeira edição da Revista Nganga eu venho me esforçando em apresentar a Quimbanda como uma genuína tradição de feitiçaria brasileira estabelecida dentro da tradição oculta ocidental moderna; vez ou outra utilizei nos ensaios da revista os termos filosofia oculta, ciências ocultas, tradição oculta de mistérios ou tradição oculta da magia. Todos esses termos estão inseridos no que se conveniou chamar de Ocultismo. O Ocultismo, por outro lado, está inserido dentro de um universo maior de pesquisa conhecido como esoterismo ocidental, e está relacionado diretamente a escola de ocultismo francesa do Séc. XIX. Como veremos, na história do esoterismo ocidental a Quimbanda se insere no contexto do Ocultismo, no qual também está inserido o Espiritismo de Allan Kardec (1804-1869), a alta magia do mago cristão Eliphas Levi (1810-1875) e o ocultista Papus (1865-1916), o Papa do Ocultismo, que influenciaram o renascer da magia que floresceu durante o fin de siècle, o Tradicionalismo ou Perenialismo de René Guénon (1866-1951), a Teosofia de Helena Blavatsky (1831-1891), a ordem mais famosa derivada da escola de ocultismo inglesa, a Ordem Hermética da Aurora Dourada, e o sistema de Thelema de Aleister Crowley (1875-1947), o pai da magia moderna. Nesse ensaio onde vamos nos debruçar sobre esse recorte do esoterismo ocidental, eu pretendo demonstrar o caminho que se estabeleceu para a Quimbanda conectar-se diretamente ao Ocultismo. 

O termo l’occultisme apareceu pela primeira vez no Dictionnaire des mots nouveaux, publicado em 1842 por Jean Baptiste Richard de Randonvilliers em um artigo de A. de Lestrange sobre Ésotérisme chrétien. Em seguida o termo foi utilizado por Eliphas Levi no seu Discurso Preliminar do Dogma e Ritual de Alta Magia, publicado em 1856. Depois de Eliphas Levi ele foi utilizado por muitos outros autores de sua época. Quem introduziu o termo Ocultismo em língua inglesa parece ter sido Helena Blavatsky em um artigo chamado A Few Questions to «Hiraf», publicado na revista Spiritual Scientist em 1875. Alguns pesquisadores associam o termo Ocultismo diretamente a Esoterismo, ou a Ciências Ocultas como referência a uma dimensão prática do Esoterismo. O sociólogo Edward Tiryakian (1929) distingue entre o Ocultismo como consistindo em certas práticas, técnicas ou procedimentos, e o Esoterismo como sistemas de crenças religiosas ou filosóficas dos quais tais práticas se baseiam; mas essa distinção já foi rejeitada por muitos autores. O Ocultismo abarca muitas crenças filosóficas e religiosas, bem como sistemas práticos derivados dessas crenças a partir do Séc. XIX. 

Um tipo diferente de distinção entre Esoterismo e Ocultismo deriva das obras de René Guénon, que a partir de uma metafísica esotérica encontrada no cerne das religiões exotéricas, se opôs ao Ocultismo, entendido como uma perversão materialista do Esoterismo, a exemplo do Espiritismo, as doutrinas da Sociedade Teosófica e muitas ordens secretas de sua época. Tais distinções, que foram adotadas por muitos autores posteriores, são obviamente baseadas nas próprias convicções tradicionalistas de Guénon, não sendo válidas do ponto de vista acadêmico; no entanto, as observações de Guénon de que o Ocultismo foi profundamente influenciado pelo materialismo do Séc. XIX estão corretas e são relevantes sob muitos aspectos, alguns tratados por mim nos dois volumes do Daemonium. 

Atualmente no mundo acadêmico o termo Ocultismo tende a ser usado como referência aos desenvolvimentos do Séc. XIX na história do esoterismo ocidental, bem como às suas derivações ao longo do Séc. XX. Em um sentido, puramente descritivo, ele é usado como referência às correntes especificamente derivadas da escola francesa de magia na esteira de Eliphas Levi, o florescimento do neomartinismo na esteira de Papus e os movimentos esotéricos relacionados ao Ocultismo do fim do século. Em outro sentido, analítico e tipológico, o termo pode ser visto como se referindo não apenas a essas correntes como tais, mas ao tipo de esoterismo que elas representam, e que também é característico da maioria das outras correntes ocultistas a partir de meados do Séc. XIX, como citei no início dessa introdução, até e incluindo desenvolvimentos recentes como o movimento Nova Era de Aquário. 

O termo oculto, no que se refere ao Ocultismo, tem sido usado para amalgamar um conjunto de crenças pós-modernas. O best-seller de Colin Wilson, O Oculto, publicado em 1971, é sem dúvida uma das maiores influências na aceitação popular do uso corrente deste termo, particularmente entre sociólogos e jornalistas. Ele pode muito bem ser considerado, portanto, como o exemplo par excellence de como uma variedade de correntes e fenômenos que não parecem se enquadrar nas categorias de ciência e religião, são agrupados no que é melhor descrito como uma cesta de lixo intelectual: essa categoria popular e contemporânea de o oculto parece conter tudo o que participa do carisma do inexplicável, desde a crença em espíritos ou fadas até experimentos parapsicológicos, de abduções de OVNIs ao misticismo oriental, a manifestação de espíritos na estática de uma televisão, de lendas de vampiros a canalizações e assim por diante. Neste sentido, o oculto pode na verdade ser definido como um tipo de conhecimento rejeitado pelas elites intelectuais. Entendido como tal, refere-se a um campo que inclui o Ocultismo, mas é muito mais amplo do que esse campo, de acordo com qualquer uma das definições discutidas neste ensaio; e também não deve ser confundido com o esoterismo ocidental tal como entendido no uso acadêmico moderno. 

A noção de uma filosofia oculta se originou em 1510 com o primeiro rascunho do Três Livros de Filosofia Oculta de Cornélio Agrippa (1486-1535).[1] De sua carta dedicatória a Trithemius (1462-1516) e do seu Ad lectorem, fica claro que para Agrippa o termo era sinônimo de magia: ele chamou o seu livro de Três Livros de Filosofia Oculta apenas porque esperava que o título fosse menos ofensivo. Mas a magia, para Agrippa, representava a sublime filosofia religiosa dos Antigos, a prisca theologia[2] que havia caído em descrédito e agora precisava ser restaurada. Uma associação tão estreita entre magia e prisca theologia era bastante lógica: Zoroastro era considerado naquele período não apenas o chefe dos antigos magos persas, mas também acreditava ser ele o autor dos Oráculos Caldeus[3] e foi mencionado por Marsílio Ficino (1433-1499) como o primeiro dos antigos sábios, antes mesmo de Hermes Trismegisto. A prisca theologia, portanto, tinha que ser equivalente a uma prisca magia, exemplificada pela teurgia dos Oráculos Caldeus; e mais ainda, dada a adoração do menino Jesus pelos magos, tal como se encontra no evangelho. 

Agrippa parecia espelhar todas as suas ideias no Neoplatonismo: seu Três Livros de Filosofia Oculta discute em detalhes os mundos elementar, celestial e intelectual, através dos vários níveis dos quais o homem pode elevar a sua alma em direção ao divino, os planos de luz e perfeição. Neste contexto, Agrippa discute as várias artes e práticas de magia natural, simbolismo numérico, astrologia e cabalá cristã com influências judaicas; a esta última pertence suas teorias sobre espíritos, anjos e demônios, profecia e prática religiosa. O termo filosofia oculta, portanto, representa a totalidade das ciências ocultas, desde que estas sejam entendidas não apenas como disciplinas práticas, mas como partes integrantes de uma filosofia religiosa abrangente e de cosmologia fundamentalmente neoplatônica, hermética e cabalística. Esta sublime filosofia ou cosmologia foi obviamente entendida como eminentemente compatível com a fé cristã. 

Depois de Agrippa o significado do termo filosofia oculta não mudou fundamentalmente: ciências ocultas são as inúmeras disciplinas práticas ou matérias que compõem uma filosofia religiosa abrangente. Só que desde o Iluminismo, qualquer referência a uma filosofia oculta é carregada ideologicamente: os teósofos e ocultistas modernos usam-na para caracterizar a sua própria visão do mundo em oposição ao materialismo, ao positivismo e ao cristianismo dogmático, enquanto para os críticos cristãos intelectuais é sinônimo de uma visão de mundo baseada em erros e superstições pré-científicas e irracionais. 

Mas a noção de ciências ocultas parece ter se originado no Séc. XVI, mais ou menos na mesma época que aparece a noção de filosofia oculta. Normalmente são distinguidas três ciências ocultas principais: astrologia, alquimia e magia (natural);[4] mas com o tempo o termo passou abranger outras áreas, como as artes divinatórias, por exemplo. Embora essas várias ciências ocultas tenham se influenciado mutuamente de várias maneiras e existam áreas claras de sobreposição, como por exemplo a magia astral, elas têm histórias distintas e não era incomum que os praticantes de uma rejeitassem outra como falsa. A ideia de uma unidade das ciências ocultas parece difícil de defender, muito provavelmente porque reflete uma falha na distinção entre as ciências ocultas por um lado, e o projeto renascentista sintetizador de uma filosofia oculta por outro. 

No entanto, é fácil compreender por que a astrologia, a alquimia e a magia natural foram agrupadas sob o termo comum ciências ocultas. Cada área envolveu-se na investigação sistemática da natureza e dos processos naturais, baseada na crença em qualidades, virtudes ou forças ocultas inerentes aos elementos do mundo natural; essa combinação fez que o termo ciências ocultas fosse apropriado. Mas, semelhante ao que aconteceu com a noção de filosofia oculta, e pelas mesmas razões, a noção de ciências ocultas tornou-se ideologicamente carregada desde o Iluminismo; na sequência do que aconteceu com a noção de qualidades ocultas, e num contexto que insistia na ciência como um conhecimento público e demonstrável, em vez de secreto e misterioso, a própria noção de ciência passou a ser vista como incompatível com qualquer coisa chamada oculto. Como resultado, qualquer uso do termo ciências ocultas passou implicar uma polêmica consciente e intencional contra a ciência materialista dominante ou estabelecida. Essas polêmicas são típicas do Ocultismo em todas as suas formas de manifestação, muito embora Aleister Crowley tenha se esforçado em estabelecer a ideia de que a ciência materialista podia e deveria estar associada ao conhecimento das qualidades ocultas da Natureza, e chamou essa ideia de Iluminismo Científico, onde a ciência deveria ser usada para validar os resultados da magia. O pensamento mágico-filosófico de Crowley vinha na esteira dos filósofos que emergiram no contexto da revolução científica do Séc. XVII. 

Mas para explicar essa ideia de qualidades ocultas, precisamos retroceder a Idade Média. No contexto da recepção medieval da filosofia natural aristotélica, foi feita uma distinção entre as qualidades manifestas e diretamente observáveis das coisas (como cores ou sabores) e suas qualidades ocultas, que não eram diretamente observáveis e não podiam ser explicadas em termos das quatro qualidades elementares. Exemplos importantes foram a força do magnetismo, as influências que emanam das estrelas e as virtudes curativas das substâncias vegetais, animais e minerais. Embora os seus efeitos pudessem ser observados na natureza e descobertos por meios experimentais, as qualidades ocultas não podiam ser compreendidas ou explicadas de acordo com os cânones da lógica e da filosofia natural. Por esta razão, não poderiam ser objetos de conhecimento científico tal como entendido a partir de uma perspectiva escolástica medieval; a sua atividade poderia ser conhecida indiretamente, mas não investigada diretamente. 

Nos seus escritos farmacológicos, Galeno (129-216 d.C.) escreveu que muitas substâncias (medicamentos, venenos, amuletos etc.) funcionavam em virtude de propriedades indescritíveis, das quais nenhuma explicação sistemática poderia ser dada e cuja forma de funcionamento era desconhecida.[5] Pensadores medievais, incluindo Tomás de Aquino (1225-1274) em seu De occultis operibus naturae, escrito entre 1269-1272, passaram a compreender as qualidades ocultas das coisas nos termos da doutrina da forma de Aristóteles: as qualidades ou virtudes ocultas das coisas baseavam-se na sua forma específica ou substancial, algo imperceptível aos sentidos e não podia ser reduzido às qualidades dos elementos ou à sua combinação. 

Em suas discussões sobre as qualidades ocultas, os grandes representantes da Renascença (e do Neoplatonismo e Hermetismo daquele período), permaneceram dependentes das categorizações escolásticas. Assim, ao descrever como certas pedras podem atrair influências celestiais, Marsilio Ficino enfatiza as suas propriedades ocultas, que estão ocultas aos nossos sentidos e, portanto, apenas com dificuldade conhecidas pela nossa razão;[6] e ele ressalta que um poder material requer muita matéria para conseguir muito; mas um poder formal, mesmo com um mínimo de matéria, vale muito.[7] De igual modo, Cornélio Agrippa descreve as virtudes ocultas como uma sequela da espécie e forma desta ou daquela coisa[8] e salienta que elas têm uma eficácia muito maior do que as qualidades elementares precisamente porque têm muita forma e pouca matéria.[9] Ele explica que elas são chamadas de propriedades ocultas porque suas causas estão ocultas, de modo que o intelecto do homem não pode de forma alguma alcançá-las e descobri-las; portanto, os filósofos alcançaram a maior parte deles por meio de uma longa experiência, e não pela busca da razão.[10] 

As novas filosofias associadas à revolução científica do Séc. XVII frequentemente são descritas como rejeitando a ideia das qualidades ocultas; é mais correto dizer, no entanto, que eles aceitaram a sua realidade, mas procuraram explicá-la em termos mecânicos. Enquanto a abordagem escolástica implicava que as qualidades ocultas estavam fora do âmbito da ciência, os filósofos e cientistas que seguiram Descartes (1596-1650) afirmaram que as qualidades ocultas e as chamadas qualidades manifestas podiam ambas serem explicadas cientificamente em termos de um mecanismo insensível. Na verdade, como as nossas percepções sensoriais nunca nos dão uma imagem direta da realidade, todas as qualidades estão ocultas; mas isso não implicou, como para os escolásticos, que elas fossem incognoscíveis. A ambição da nova ciência era, precisamente, não restringir-se ao domínio do que podia ser percebido pelos sentidos, mas explorar o funcionamento invisível da natureza. A este respeito, há uma continuidade entre a magia natural dos filósofos da Renascença e a nova ciência do Séc. XVII: embora uma permanecesse dependente de categorias escolásticas, a outra as ultrapassa, mas ambos se recusavam a deixar as qualidades ocultas no domínio do inescrutável e dos mistérios irracionais; em vez disso, abordando-os como um domínio da realidade que poderia ser examinado pela mente humana e colocado em uso prático. 

Eventualmente o debate esfriou e qualquer crença nas qualidades ocultas passou a ser percebida como incompatível com a ciência. 

Uma vez que o Ocultismo está inserido dentro de um contexto maior, cabe encerrar essa introdução com algumas palavras sobre o esoterismo ocidental. 

O termo esotérico apareceu pela primeira vez no Séc. II d.C., mas o substantivo é de data relativamente recente: parece ter sido cunhado em alemão (esoterik) em 1792, migrou para a erudição francesa (pésotérisme) em 1828 e apareceu em inglês em 1883.[11] Isso significa que esoterismo ocidental não é um termo natural, mas uma categoria de estudo, aplicada retrospectivamente a uma série de correntes e ideias que eram conhecidas por outros nomes pelo menos antes do final do Séc. XVIII. Isso também significa que, originalmente, nem todas essas correntes e ideias eram necessariamente vistas como pertencentes umas às outras, é apenas no final do Séc. XVII que encontramos as primeiras tentativas de apresentá-las como um único campo ou domínio coerente, e de explicar o que elas têm em comum. Em suma, o esoterismo ocidental é uma construção acadêmica moderna, não uma tradição autônoma que já existia e apenas precisava ser descoberta pelos historiadores. Isso não significa, no entanto, que não haja nada de real no campo. 

Os estudiosos têm fornecido critérios para definir o que deveria ou não entrar na matéria de estudo esoterismo ocidental, mas na realidade eles quase sempre raciocinam por protótipos pré-estabelecidos. Ou seja, eles já têm em mente alguns dos melhores exemplos que consideram como esoterismo ocidental, e em seguida procedem à comparação de fenômenos históricos específicos com esse modelo. Dependendo dos modelos que têm em mente, certas correntes históricas podem ser incluídas por alguns estudiosos, mas excluídas por outros, e isto explica toda a confusão sobre o assunto que existe hoje. Os três modelos mais comuns e aceitos subjacentes aos conceitos atuais do esoterismo ocidental parecem ser os seguintes: i. uma visão pré-iluminista encantada do Cosmos, com raízes antigas na história da magia, como demonstrei no primeiro volume do Daemonium, e que foi reavivada no início do período moderno; ii. uma ampla gama de correntes ocultas e organizações que surgiram após o Iluminismo como alternativas à religião tradicional e à ciência racional; iii. uma dimensão espiritual universal e interna da religião como tal. Na Seção I que segue, nos debruçaremos sobre essas três perspectivas da Esotérica.



[1] Três Livros de Filosofia Oculta, publicado no Brasil pela Editora Madras em 2012.

[2] Filosofia perene.

[3] Sobre os Oráculos Caldeus veja o primeiro volume do Daemonium, Clube de Autores, 2019.

[4] Em Agrippa, filosofia oculta sendo: i. filosofia natural (o estudo das qualidades e virtudes dos objetos do mundo sensível); ii. matemática (que se resume a astrologia e numerologia) e; iii. filosofia teológica (a descrição da natureza dos espíritos).

[5] Wouter J. Hanegraaff. Dictionary of Gnosis & Western Esotericism. Brill, 2006.

[6] Marsílio Ficino. De Vita III, Cap. 12.

[7] Ibidem.

[8] Cornélio Agrippa. Três Livros de Filosofia Oculta, Parte I, Cap. X.

[9] Ibidem.

[10] Ibidem.

[11] Wouter J. Hanegraaff. Dictionary of Gnosis & Western Esotericism. Brill, 2006.




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