Série:
Teurgia & Cabalá Crioula
Por Táta Nganga
Kamuxinzela
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Em uma entrevista recente apresentando a Quimbanda para ocultistas italianos, disponível no YouTube no canal da La Societa ‘dello Zolfo, afirmei que o Norte da Quimbanda é a Europa, e também que é a magia da cultura europeia que dá estrutura a Quimbanda. O Chefe Império Maioral, o Diabo, a Trindade Infernal ou Trindade do Oposto, trata-se de uma divindade europeia. O deus absoluto ou supremo de um culto é seu Norte espiritual. Em outras palavras, o Deus Absoluto da Quimbanda é o Diabo, uma divindade que – embora tenha suas raízes na cultura religiosa da Pérsia no Mundo Antigo – se desenvolveu dentro e nos chegou diretamente através do imaginário cultural europeu. Para os primeiros etnodemonólogos[1] que cruzaram o Atlântico em direção as Américas, o Diabo foi expulso da Europa pela Igreja e fez do Novo Mundo o seu Reinado. A Quimbanda nasce, portanto, dentro do Reinado do Diabo no imaginário europeu. Nos termos da demonologia do Grimorium Verum, ela nasce sob os auspícios régios de Ashtaroth.[2]
Muito embora o Norte da Quimbanda seja a Europa, no sentido em que sua divindade suprema vem da cultura e imaginário europeu, e que a magia europeia provê a estrutura da Quimbanda (teologia, hierarquia hipostática demoníaca etc.), o pano de fundo mágico da Quimbanda vem da cultura banto, que encontrou muita ressonância não só com o cristianismo muito antes da diáspora africana nas Américas, mas também com o espiritismo dentro deste contexto no início do Séc. XX. No escopo da Umbanda essa influência foi avassaladora, promovendo uma higienização racial profunda na Macumba carioca e paulista, como demonstrei no livro Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia;[3] mas no contexto da Quimbanda não, porque ela preservou os arcanos secretos (cabalá) da magia africana (crioula), atualizando suas técnicas e métodos para o contexto cultural do Ocultismo brasileiro.
Como pano de fundo da estrutura da Quimbanda, a feitiçaria, fetichismo e vitalismo da cultura religiosa dos congoleses teve profunda influência em inúmeros aspectos do culto. O termo pano de fundo é técnico; ele significa que a influência cultural congolesa na Quimbanda é tão profunda, que às vezes chega a ser imperceptível aos olhos destreinados. Vou explorar alguns nuances aqui.
No período do intenso tráfico de escravos, as noções congolesas sobre a alma sustentavam que o corpo existia como um relicário sagrado que continha a alma com seus vários complexos e que, embora independentes, todos eles existiam simultaneamente no indivíduo, animando seu corpo e investindo-lhe fôlego e vida. O moyo conectava-se ao aspecto perecível da alma. Na ocasião da morte o moyo lentamente se dissipa e eventualmente deixa o cadáver. Junto ao coração e o fígado, os congoleses consideravam que o sangue (que é transportado e purificado por estes órgãos) era a fonte da vida do corpo, a centelha de força vital que movia o corpo.[4] A relação que se estabeleceu entre o sangue e o moyo foi, portanto, crucial na medida em que qualquer perda de sangue enfraquece e danifica o moyo. Como resultado, os congoleses não consideravam formalmente o falecido morto até que todos os humores do corpo tivessem secado, um processo que poderia durar meses.
A relação do moyo com o sangue é fundamental na compreensão do vitalismo na cultura religiosa dos bantos, bem como de seu impacto no sistema mágico-religioso da Quimbanda. É por causa deste entendimento congolês, a relação íntima do moyo com o sangue como fonte de vida, que na Quimbanda o sangue passou a ser o agente mágico sacralizador de todas as coisas. Muito embora o sangue dos vegetais e minerais seja muito importante como fonte vitalizadora, na Quimbanda nada se faz sem o sangue animal. O sangue animal anima e desperta, carrega e fortalece, e está presente na grande maioria dos fundamentos mágicos da Quimbanda.
Um outro complexo da alma, nsala, era comumente considerado como a sede da razão e era responsável por toda cognição. Na morte, era nsala que se mudava para o mundo dos ancestrais, onde permanecia com vitalidade até o momento em que os parentes e amigos vivos do falecido não se lembrassem mais de seu nome. Uma vez esquecido o nome do falecido, nsala transformava-se em um espírito ancestral distante, restando apenas o mwela do falecido, outro complexo da alma que representava o sopro de vida, seu alento de poder. Na morte o mwela não morria, mas mudava-se para o reino dos bons ancestrais (mpemba) ou para o reino dos maus ancestrais (bankuyu).[5] Os rituais de morte e o sepultamento reconheciam a natureza composta da alma e garantiam a transição de seus complexos deste mundo para o próximo. O corpo era preparado e purificado para a jornada ao Submundo. Era carregado para o mercado ou outro local público, elevado sobre os ombros de todos. Os congoleses se reuniam para ver o corpo e homenagear o falecido com música e dança por vários dias e noites. Após esse período inicial de luto, o corpo era raspado e pintado de vermelho com uma tinta feita da madeira padauk (takula), frequentemente usada nos rituais congoleses. A cor vermelha significa o espaço inferior entre este mundo dos vivos e o mundo dos mortos, delimitado por kalunga, e sua aplicação ao corpo do falecido sugeria o movimento iminente da alma deste mundo para o Submundo. Além disso, os congoleses ungiam o corpo com um bálsamo de ervas medicinas rituais como talismãs e símbolos pintados na pele. No caso de reis e alguns nobres, o corpo era defumado durante vários dias.
O processo de defumar o corpo acelera a travessia da alma – para fora deste mundo, mergulhando nas águas do abismo (kalunga), na medida em que os humores do corpo secam mais rápido, propiciando que o moyo faça sua transição mais rapidamente. Além disso, a fumaça do cadáver refletia uma ideia de persistência, ilustrando a analogia no pensamento congolês de que quanto mais úmido, mais transitório; e quanto mais seco, mais permanente. Nesse sentido, a secagem do cadáver estabiliza o legado de poder e a autoridade de que o falecido gozava quando vivo. Após o enterro, os congoleses continuavam a reunir-se no túmulo para saudar o falecido com canções. Os mortos eram reverenciados, tal qual na Grécia antes da pólis, com oferendas e sacrifícios diretamente no túmulo.
A localização do reino dos mortos era desconhecida. Acreditava-se que eles residiam no Submundo abaixo das florestas e dos rios. Esses locais eram zonas de poder, portais de conexão com os mortos, de modo que qualquer rio ou oceano, qualquer área arborizada e qualquer espaço subterrâneo, tratava-se de um acesso ao reino dos mortos. Essa ideia congolesa, de que o reino dos mortos está em toda parte, influenciou profundamente o entendimento dos reinos na Quimbanda: se tudo é kalunga, na Quimbanda ela tornou-se uma geografia oculta de poder mágico, fracionada em reinos, classificados segundo a qualidade de seu moyo, e organizados de modo a alocar os Povos de Exu.
Ao invés de delimitar espacialmente o reino dos mortos, como nos cemitérios das cidades modernas, os congoleses descreviam-no de forma diferente: o reino dos mortos está em toda parte, em todo local; no entanto, em outro lugar onde os vivos não estão. Mas a despeito disso, os mortos estão sempre presentes de forma iminente na vida dos homens e disponíveis para orientação e conselhos, tanto espirituais como seculares. Esta dualidade – de que o reino dos mortos está sempre noutro lugar, mas também sempre presente – é que permite a estruturação de uma geografia oculta de poder em operação no mundo, e através de portais de acesso (grutas, rios, florestas, encruzilhadas, igrejas etc.), a comunicação entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos é possível.
Os congoleses, no entanto, estabeleceram uma diferença temporal: o tempo dos mortos refletia uma inversão do tempo dos vivos. Quando o Sol do meio dia estava a pino no reino dos vivos; o Sol da meia noite brilhava em sua máxima potência e plenitude no reino dos mortos. Enquanto os homens vivos dormem durante a noite, os mortos estão despertos. Dessa forma, os mortos não estão apenas onde não estão os vivos, mas também quando não estão. Esse é o motivo pelo qual os tátas mais antigos elegeram a Hora Grande como o tempo de poder ideal para convocar as forças da Quimbanda. Isso não significa, no entanto, que Exu só trabalha de noite, como dizem hoje em dia. Em um ponto raiz de Exu Meia Noite, temos:
Passei na casa do moço
Meio dia ele deu boa noite
Qual é o nome do moço?
Exu Meia Noite Exu Meia Noite
Entende a tolice de dizer que Exu só trabalha
de noite? Esse ponto raiz de Exu Meia Noite revela o fundamento da
inversão temporal e que está, de outro modo, conectado ao mistério da oposição
presente em tudo na Quimbanda, simbolizado pela cor preta. Os congoleses
acreditavam que as sombras densas nas profundezas das matas, onde os raios do Sol
não penetram, eram locais adequados para receber a luz dos ancestrais. Como agentes
mágicos universais, os Gangas da Quimbanda manipulam luz e sombras, as correntes
ódicas da luz astral, o tempo todo, em um fluxo constante de
inversão temporal.
[1] Laura de Mello e Souza. Inferno
Atlântico: Demonologia & Colonização Séculos XVI-XVIII. Companhia das
Letras, 1993.
[2] No Grimorium Verum,
Ashtaroth é a Regente Infernal das Américas.
[3] A Morte do Feiticeiro
Branco na Quimbanda. Texto originalmente publicado na Revista Nganga
No. 8.
[4] No contexto da teurgia e
do hermetismo, a fonte de vida do corpo, que está conectada diretamente ao
sangue, é o pneuma, o veículo pneumático (ochēna-pneuma) da alma.
[5] Na linguagem da Quimbanda,
o Reno dos Exus e o Reino dos Kiumbas.