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O ALTAR NA QUIMBANDA COME

Série: Teurgia & Cabalá Crioula

 

Por Táta Nganga Kamuxinzela

@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago

 

A pergunta que suscitou essa reflexão foi: qual a diferença entre o assentamento e o altar devocional. A resposta técnica é: o altar devocional da Quimbanda é sempre o assentamento! A ideia de assentamento, por sua vez, está diretamente conectada a uma das concepções religiosas mais antigas do mundo: o sacrifício animal. Mas para sintetizar esse conhecimento, proponho começar respondendo outra pergunta recorrente: por que os Exus precisam de sacrifício? 

No segundo volume do Daemonium eu menciono que a Quimbanda não inventa nada de novo; ela funciona porque repete as mesmas técnicas que os xamãs e magos do passado utilizaram, que são as mesmas que os goētes do Mundo Antigo usavam para se conectar com os espíritos dos mortos e para direcioná-los segundo seus propósitos. Essas foram as mesmas técnicas também utilizadas posteriormente pelos mistagogos dos mistérios e pelos teurgos neoplatônicos como Jâmblico (245-325 d.C.) e Proclo (412-485 d.C.) para reverenciar e se conectar com os deuses. Essas mesmas técnicas existem nas culturas crioulas da África e suas derivadas – i.e. atualizadas – afro-diaspóricas nas Américas. As tecnologias mágico-religiosas e as técnicas de feitiçaria são universais, mudando pouca coisa de cultura para cultura. Na medida em que as culturas se miscigenam e os cultos evoluem segundo o imaginário e as convulsões sociais, as técnicas se atualizam. Elas tanto podem ser utilizadas nos cultos ctônicos (catabáticos) quanto nos cultos urânicos (anabáticos). Eu exploro bem essa ideia no terceiro volume do Daemonium. No contexto do estudo comparado das religiões, o autor que mais abordou esse tema da universalidade das técnicas mágico-religiosas em meados do Séc. XX foi Mircea Eliade (1907-1986); e no contexto do Ocultismo contemporâneo e do grimoire revival, foi Jake Stratton-Kent (1956-2023) em anos recentes. 

Desde o Mundo Antigo os deuses materiais, i.e. as inteligências terrestres corporificadas em estatuetas, pedras, vasos, anéis e fetiches diversos, precisam da mesma nutrição que nós seres humanos precisamos para agir no reino da geração. Esse é um dos temas mais fascinantes abordados na obra de Fustel de Coulanges (1830-1889), A Cidade Antiga, um estudo sobre as religiões grega e romana na Antiguidade Clássica. Da mesma maneira que o corpo físico encerra a alma, o assentamento é o corpo físico que encerra o espírito. É um entendimento antigo da religião que para que uma divindade atue no reino da geração em função e a propósito dos homens, ela precisa estar corporificada e necessita comer como os homens. A ideia aqui é simples: qualquer espírito corporificado no reino da geração deve receber sua nutrição dos elementos que constituem o reino da geração; em outras palavras, estes deuses terrestres ou materiais, comem tudo o que os homens comem. 

O sacrifício animal era a técnica par excellence de conexão com os espíritos corporificados e as muitas inteligências terrestres (daimones) do reino da geração, para fins últimos conectados as necessidades materiais desta região do Cosmos, a incluir a nutrição, na intenção de equilibrar e harmonizar todos os seus elementos constituintes com a própria ordem do Cosmos. Neste processo, o maior beneficiado é sempre a alma humana. Em última instância, o sacrifício material servia aos propósitos do indivíduo corporificado no reino da geração em sua interação com as inteligências terrestres. 

O assentamento é uma tecnologia mágica que está conectado a ideia de corpo físico do espírito e de fonte de vitalização dele por meio do sacrifício e das oferendas. Essa vitalidade, por outro lado, é distribuída na vida do feiticeiro. As inteligências terrestres são espíritos conectados aos poderes – e mistérios – do reino da geração; quando feitos espíritos tutelares, essas inteligências terrestres beneficiam o feiticeiro com as virtudes do reino da geração, distribuindo por sobre sua vida a potência geradora do Cosmos. 

Tecnicamente, o altar de reverência mágico-religiosa da Quimbanda são os assentamentos, as firmezas, os vultos etc. dos espíritos Ganga, onde eles comem. Estas estruturas são, portanto, portais de acesso a força regenerativa dos espíritos. 

Na tradição da magia um altar somente é considerado mágico de verdade se ele abriga um espírito e é o local onde ele obtém sua nutrição, porque o altar tanto converge força mágica quanto a distribui; caso contrário não é mágico, mas simbólico, psiúrgico apenas. Era comum nas antigas casas de Macumba assentar um espírito, o dono da casa e do altar, sob o congá, de modo a ficar oculto com uma toalha, grifada com seu ponto riscado. Esse ocultamento da fonte de poder, o espírito tutelar de uma casa de Macumba, remonta aos antigos fundamentos de chão dos terreiros. Essa tradição herdada pela Macumba foi continuada na Quimbanda, onde oculta-se a fonte de poder de um templo, i.e. o fundamento de Exu, deixando ao público apenas imagens consagradas. Considera-se que essas imagens são uma interface de conexão com o fundamento de Exu. Pelo termo imagens consagradas, entenda imagens fundamentadas, como as imagens animadas, i.e. feito divinas – na teurgia e hermetismo alexandrino – pela telestikē, e que culminou na cultura do santo do pau oco na magia e folclore brasileiro. 

No contexto da Quimbanda, qualquer altar que não come, não é de fato um altar, mas uma decoração simbólica de inclinação devocional e estética. Essa decoração simbólica tem extrapolado, por outro lado, para uma anomalia que chamaram de Quimbanda de altar... 

É interessante notar que na teurgia, segundo a estrutura lhe conferida por Jâmblico, existem três tipos de alma (ignorantes, despertas e liberadas), com qualidades distintas, e para cada uma delas existe um tipo de ritual teúrgico mais adequado. Eu resumi o tema no texto O Ritual & a Natureza da Alma. Jâmiblico diz: cada indivíduo deve prestar o seu culto de acordo com sua própria natureza e não de acordo com a que não possui; assim não devemos ultrapassar a medida própria do oficiante sacrificial.[1] Mas além de levar em consideração a natureza da alma humana, os rituais de teurgia ainda devem ser adequados a dois tipos de deuses: os materiais (encósmicos) e os imateriais (hipercósmicos). Os rituais de teurgia direcionados aos deuses materiais deveriam ser materiais; os rituais direcionados aos deuses imateriais, deveriam ser imateriais.[2] 

As almas ignorantes (o rebanho que segue a natureza e o destino), e as almas despertas (que se encontram no limiar entre a natureza e o divino), são àquelas que mais precisam dos rituais teúrgicos materiais, onde o teurgo ao reverenciar os deuses terrestres, deve incluir locais [sagrados], estações, matéria e os poderes da matéria, os corpos, suas características e qualidades, movimentos e tudo o que segue estes movimentos, a mudança das coisas [no reino] da geração.[3] A anabase de purificação da alma segue a hierarquia hipostática, a começar dos deuses materiais aos imateriais; no processo de ascensão a alma sai do nível de ignorância para conquistar sua liberação, i.e. divinização. Na Quimbanda o processo é muito similar, mas envolve uma descida (catábase), que da mesma maneira exige a purificação necessária que levará a uma profunda imersão de cura e de resgate ancestral. Como menciono no terceiro volume do Daemonium, nunca foi tarefa fácil no Mundo Antigo a entrada no Hades. De igual modo é hoje na Quimbanda: também não é tarefa fácil a entrada na horda do Grande Chefe do Inferno, Maioral. Abordarei esse tema com mais profundidade em outra oportunidade. 

O que podemos tirar disso é que a grande maioria das almas viventes no reino da geração são àquelas que mais precisam do sacrifício, devido ao estado de ignorância em que se encontram. As almas imersas na materialidade, que ignoram o divino, e àquelas que despertaram para o divino, mas ainda agrilhoadas ao reino da geração, são as que mais necessitam dos deuses materiais e dos ritos a eles adequados. Jâmblico diz: Frequentemente, é por necessidade corporal que nos envolvemos em alguma relação com os deuses e os bons daimones que zelam pelo corpo. Por exemplo, quando o purificamos de impurezas antigas, o libertamos de doença e o preenchemos de saúde, ou ainda quando aliviamos o que é pesado e letárgico, proporcionando-lhe leveza e vigor, ou mesmo quando suprimimos outras carências. Neste caso, não tratamos o corpo em um plano meramente intelectivo ou incorpóreo, pois o corpo não se relaciona naturalmente com tais abordagens; ao contrário, é pela participação em algo que lhe seja semelhante. De fato, é por meio dos corpos que um corpo é nutrido e purificado. O procedimento do sacrifício para tais propósitos será, portanto, necessariamente corpóreo, visando eliminar o que é supérfluo em nós e complementar o que nos falta, bem como trazer simetria e ordem aos elementos que estão desordenados e confusos.[4]



[1] Jâmblico. De Mysteriis, Livro V, Verso 15. Editora Polar, 2024, pp. 292.

[2] Jâmblico. De Mysteriis, Livro V, Versos 15-20. Editora Polar, 2024, pp. 291-8.

[3] Jâmblico. De Mysteriis, Livro V, Verso 18. Editora Polar, 2024, pp. 296.

[4] Jâmblico. De Mysteriis, Livro V, Verso 16. Editora Polar, 2024, pp. 293.




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