Por Táta Nganga
Kamuxinzela
@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago
Nota: este texto é um excerto da apresentação de um ensaio que será publicado em minha ontologia, «Kalunga: Teurgia & Cabalá Crioula».
Uma ideia fundamental que subjaz como pano de fundo das pontes que construí entre as religiões e cultos de mistérios da Antiguidade e a Quimbanda nos volumes que compõem a série Daemonium, é que as técnicas de feitiçaria (goēteia) e de magia (mageia) são universais. Elas mudam pouca coisa de uma cultura para outra no contexto dos cultos ao longo da história religiosa do homem. Na medida em que as culturas se encontram e se miscigenam, as técnicas mágico-religiosas se adaptam, se reconfiguram e se atualizam. No segundo volume do Daemonium eu apresento o racional (ou o fundamento) por trás do sacrifício animal na Quimbanda através das argumentações de Jâmblico de Cálcis (245-325 d.C.) acerca do mesmo tema, a imolação ritual de animais na teurgia: não são os espíritos – i.e. os daimones no contexto grego ou os Gangas no contexto da Quimbanda – que efetivamente necessitam do sacrifício animal; somos nós, seres humanos encarnados no reino da geração, que necessitamos. E no livro Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia, eu dedico um capítulo ao tema do sacrifício no contexto das religiões grega e romana, e também no contexto da Quimbanda, porque o sacrifício é uma ferramenta religiosa, litúrgica, teúrgica, mágica e soteriológica utilizada por cultos e religiões de culturas diversas desde o Mundo Antigo até os dias de hoje, e pelos mesmos motivos.
Meus leitores estão acostumados com este meu bordão: o sacrifício é o eixo teúrgico da Quimbanda. No sentido em que tudo no culto gira ao redor desse eixo teúrgico, as purificações, o trabalho oracular (divinação), a catábase no Submundo, a paranormalidade pessoal (mediunidade) e o fenômeno do transe na incorporação. Tudo isso deriva do trabalho hierático e soteriológico do sacrifício. O racional deste processo vem diretamente do conhecimento que tenho acerca da função soteriológica do sacrifício nas religiões e cultos de mistérios da Antiguidade, seja na África, Mediterrâneo ou Oriente Médio. No contexto da teurgia, o sacrifício, a imolação animal ritual, é seu motor, sem o qual nada no sistema funciona, assim como é na Quimbanda. E não sou eu que digo isso, é o próprio Jâmblico, que dedica todo o Livro 5 do De Mysteriis ao tema do ritual, i.e. o sacrifício.
O sacrifício foi a experiência basilar com o sagrado no Mundo Antigo e Antiguidade greco-helênica pré-cristã; portanto, é uma matéria importante para entender qualquer prática religiosa da época. Aos deuses, libações eram derramadas, objetos eram dedicados e animais eram sacrificados, queimados ou imolados e, na maioria dos casos, comidos. A teurgia não foi exceção e para Jâmblico, o ritual se organizava ao redor do sacrifício. Seu De Mysteriis tratou-se de uma justificativa efetiva da antiga prática do sacrifício diante dos desafios dos céticos, dos cristãos e, o mais importante, dos argumentos de seu professor, Porfírio de Tiro (234-304 d.C.). Ao responder as provocações de Porfírio, Jâmblico proveu uma nova explicação para a realização do sacrifício aos deuses, legitimando e o colocando no contexto da prática teúrgica. O trabalho de Jâmblico causou grande impacto no paganismo greco-sírio da época, ao ponto de ele ser o responsável pela última grande reforma do paganismo antes de sua derrocada final diante do cristianismo.
No De Mysteriis Jâmblico discute os muitos fenômenos e os resultados associados à prática teúrgica. Mas quando procuramos em seu trabalho as orientações práticas para a realização do ritual, apenas uma ação é nomeada, muito embora seja complexa: o sacrifício. Por meio da realização correta do sacrifício, Jâmblico explica, todos os outros fenômenos associados à teurgia derivam, como a purificação necessária para a anábase, a divinação via oráculos considerados as vozes dos deuses, o transe e a realização do miraculoso. Do mesmo modo é na Quimbanda e em todo culto que deriva da diáspora africana nas Américas.
No terceiro volume do Daemonium apresento uma discussão acerca da Quimbanda ser ou não uma religião, em detrimento das considerações de muitos de que ela seja apenas um sistema ou ferramenta, quer dizer, técnica de magia. Nas religiões e cultos de mistérios do Mundo Antigo, assim argumento, não havia distinção entre magia e religião; e a Quimbanda, nas concepções modernas e acadêmicas acerca da estrutura de uma religião organizada e sistematizada, contém todos os elementos que fazem dela um culto religioso: cosmogonia, antropogonia, cosmologia, teologia, ontologia, soteriologia e escatologia. No fim apresento a Quimbanda tanto como religião quanto um sistema de magia, seja nas concepções religiosas do passado ou do presente. Mas diferente da teurgia e do hermetismo – posto que não faço distinção entre ambos,[1] sendo a teurgia o aspecto ritual-soteriológico do hermetismo – que são cultos religiosos anabáticos, a Quimbanda é um culto religioso catabático, uma forma de goēteia. Mas como veremos, suas técnicas são equivalentes.
No primeiro volume do Daemonium, ao estabelecer comparações entre a teurgia e a goécia, menciono que a diferença efetiva entre elas reside no operador e na finalidade que ele dá as técnicas, e não nas técnicas efetivamente, que são quase que equivalentes. Enquanto que a teurgia é uma arte sacerdotal, tanto filosófica quanto técnica, para reorientar a condição anatrópica (i.e. invertida) da alma, produzindo uma anábase (ascensão) que inverte sua condição, projetando-a a sua reintegração com o Uno-Bem em um processo de apoteose ou deificação, a goécia é, por outro lado e segundo Jâmblico no De Mysteriis (III:28),[2] apenas técnica, desprovida de todo aparato filosófico que possui a teurgia e que a enriquece. Tanto que muitas das técnicas da teurgia citadas por Jâmblico são deveras parecidas com a feitiçaria que encontramos nos Papiros Mágicos Gregos.[3]
No terceiro volume do Daemonium, que é um tomo dedicado exclusivamente a goécia, eu demonstro que a visão construída pelos neoplatônicos e religião grega estatal de modo geral acerca da goécia, é depreciativa e difamatória. Goécia, muito antes das perseguições do cristianismo, já era caluniada como uma prática de transgressão religiosa periférica ao pensamento aristocrata da religião grega desde a formação da pólis. A goécia como tradição viva ancestral, assim demonstro neste volume do Daemonium, é uma Religião Natural (diferente das Religiões Reveladas) que vivifica toda a tradição da magia no Ocidente, e contém mistérios acerca da deificação catabática da alma. Muito diferente do que postulam seus detratores gregos, neoplatônicos e cristãos. A anábase, a subida pelos planos ou éteres superiores, só se torna o foco dos cultos de mistérios gregos muito depois do advento da tradição platônica. Antes disso, nas fontes para-homéricas e pré-socráticas, o âmago da experiência espiritual para deificação da alma era a catábase, a descida ao Submundo. Neste tomo apresento também a Quimbanda como a genuína goécia tradicional brasileira.
Embora as descidas ao
submundo pareçam se tornar cada vez de menos interesse ao nos aproximamos do
tempo de Platão e especialmente dos neoplatônicos, a variedade de voos xamânicos
da alma que encontramos em Abaris e Aristaeus persistiu e parece ter sido
finalmente traduzida e expandida no que eventualmente viria a ser chamado de
arte caldéia da teurgia. Os pre-socráticos estavam muito mais preocupados com a
katabasis (retiro ou descida); os teóricos neoplatônicos, por outro
lado, estavam totalmente preocupados com a anabasis (subida ou
ascensão).[4]
Então quando falamos que a goécia como tradição viva ancestral vivifica a tradição da magia no Ocidente, desde antes da formação da pólis como vimos no terceiro volume do Daemonium, e uma herança do xamanismo hiperbóreo do Norte, a própria teurgia de Jâmblico e dos neoplatônicos é um exemplo disso. Newman continua:
Porfírio e Proclo
localizam as raízes da teurgia nos épicos homéricos arcaicos e insistem que as
tendências proto-teúrgicas (e, portanto, os elementos xamânicos) já estavam
presentes na cultura grega antiga, mesmo durante o século VIII e anterior a
isso [a.C.] – um século ou mais antes do influxo proposto por Dodds de uma influência
xamânica vinda do «Norte Hiperbóreo». Esta linha do tempo entra em conflito
diretamente com a proposta de que a imagem da alma como uma entidade volátil e
móvel, detectada entre os gregos dos séculos VII e VI, foi importada dos citas
e trácios após a composição dos épicos homéricos.
[...] Isso
não quer dizer que a presença desses elementos xamânicos não tenha sido
importada do Norte. A Trácia, a casa-norte do lendário Orfeu, o herói
prototípico da katabasis na mitologia grega, ou a descida ao submundo,
há muito tempo tem sido associada pelos gregos com a Hiperbórea, meramente
implicando «hiper-Bórea» para «além de Bórea», sendo Bórea o deus grego do
vento norte. O hino órfico a esta divindade, por exemplo, começa:
Bórea, explosão
de inverno
da Trácia
nevada,
você faz
os céus tremerem.
Assim, nas mentes dos
gregos, a Trácia e a Hiperbórea eram, para todos os fins práticos, cognatos
virtuais para a terra natal de Dionísio, cujos mistérios Orfeu inaugurou, sendo
o mesmo Norte Hiperbóreo. No entanto, por Hiperbórea, os antigos não tinham
apenas o Norte em mente; em vez disso, o que eles falavam era do extremo Norte –
o Norte além do Norte.[5]
As raízes que sustentam e vivificam a tradição mágica ocidental e, neste contexto, a própria teurgia grega são, portanto, bárbaras, no sentido de que elas vêm da goécia xamânica dos povos considerados bárbaros como os trácios, os anatolianos, os caldeus e os míticos hiperbóreos.[6]
Na teurgia, que hoje defino como o exercício mágico da espiritualidade transmitida pelo Corpus Hermeticum[7] na reforma estabelecida por Jâmblico no contexto do paganismo grego no Séc. IV d.C., parte fundamental do sacerdócio hierático era a animação de deuses terrestres, uma prática ritual conhecida como teléstica (telestikē). A teléstica podia tanto se referir a purificação soteriológica para divinização (ou deificação) da alma e sua projeção (ascensão) nos éteres superiores para união ou reintegração com o Uno-Bem, quanto a arte de criar (ou animar) estátuas dos deuses. A teléstica da purificação da alma é apofática,[8] enquanto que da animação de estátuas é catabática,[9] quando o poder (heka)[10] da força mágica dos deuses é assentado dentro de um receptáculo adequado. A teléstica, portanto, possui o poder de divinizar, seja uma alma que busca purificação, seja uma estátua que passa a atuar como uma divindade terrestre.
Podemos usar os termos telestikē
e anagogē para essas práticas; o primeiro refere-se à perfeição ou
purificação de coisas mortais e materiais,[11]
enquanto o último é uma elevação do indivíduo.[12]
Embora, filosoficamente falando, o reino dos deuses não exista em um espaço
fisicamente maior do que o reino mortal, mas o transcenda, as metáforas de
ascensão e descida dominam as descrições de todos esses procedimentos – o magista
pode ascender aos deuses ou trazer os deuses para a terra. Em ambos os casos,
como os textos teóricos deixaram claro, [...] as coisas materiais devem ser
feitas particularmente adequadas (epitēdeia) ao divino para recebê-lo,
ou o magista deve ser assimilado o máximo possível ao divino. Este princípio
teórico se encaixa com a gama de práticas teúrgicas mencionadas nas fontes,
particularmente as críticas hostis – a criação de estátuas e outros objetos
materiais infundidos com o poder divino, a invocação de poderes daimônicos
e divinos para fornecer revelações especiais e a elevação da alma do teurgo ao
divino.[13]
Na perspectiva do hermetismo e da teurgia, todo o Cosmos material e, portanto, o próprio homem na condição de alma encarnada no reino da geração, são algamata animadas dentro de uma operação demiúrgica de proporções cósmicas; i.e. dentro de um trabalho (ergon) divino e continuamente dinâmico e criativo entre deidades. É isso que possibilita a deificação de uma alma ou de uma estátua no contexto da teurgia e do hermetismo.
Os rituais diários que
consistem no despertar, na purificação, na unção, na vestimenta, na alimentação
e na adoração da estátua, bem como o processo das oferendas de sacrifício (que
são simbolicamente designadas como o Olho de Hórus restaurado e em torno
do qual o ritual opera), não devem ser concebidos como uma comunicação entre o
humano e o divino, mas sim como uma interação entre divindades, ou seja, como
um verdadeiro ergon divino, o trabalho sagrado realizado pelos deuses e
todas as classes superiores de seres.[14]
De acordo com
os neoplatônicos tardios, os deuses (como os neteru egípcio) estão
presentes imaterialmente nas coisas materiais, portanto, ta sunthemata
(os assentos teúrgicos do poder de elevação) são considerados como receptáculos
para as irradiações divinas invisíveis (ellampseis) envolvidas na
liturgia cósmica de descida e ascensão [do poder espiritual]. Como o corpo é
parte integrante do trabalho demiúrgico, em sua forma primordial perfeita
servindo como uma imagem (eikon) da auto-revelação divina, a condição e
a qualidade da matéria incorporada indicam a condição interna da alma.[15]
O corpo
humano é como uma estátua eidética fixa ou como uma sequência iconograficamente
estabelecida de escrita hieroglífica dinâmica, [ou seja] é um instrumento da
presença divina, porque essa presença pode ser oculta ou revelada. Portanto, telestike
não deve ser pensado como induzindo a presença de um deus (ou de seu daimon
representativo) apenas no receptáculo artificialmente construído (hupodoche).
O ba[16]
divino também pode permear o corpo humano, confirmando assim a capacidade deste
último de participar dos princípios superiores.[17]
Quando tal «encarnação» se torna permanente,[18]
o próprio corpo humano é transformado na estátua de ouro espiritual.[19]
Os rituais egípcios, dos quais os filósofos-teurgos neoplatônicos derivam seus símbolos hieráticos, eram cerimônias mágicas de teurgia no sentido – técnico – etimológico, porque a atividade (energeia) do ritual (estruturado pelo uso e inteiração de máscaras deíficas) baseava-se na demiurgia do Cosmos, no encontro e comunicação genuína com a ousia (essência), dumanis (poder) e energeia (atividade) das divindades, possibilitando a conexão genuína com a permanência imanente das energias transcendentes do Uno-Bem. Os deuses (neteru) não habitam literalmente em suas zonas de poder terrestres (estátuas, templos, objetos rituais como anéis ou talismãs, corpos humanos, animais, plantas etc.), mas se instalam lá, animando as imagens e símbolos. O ba de uma divindade, i.e. a manifestação de seu poder noético e vivificante, em certa medida tanto vivifica os próprios vetores de manifestação[20] dos daimones que habitam as zonas de poder terrestres construídas, quanto une esses daimones às estátuas do culto, as barcas processionais, os santuários, relevos nas paredes, textos sagrados, o templo ou o túmulo (considerado semelhante a um templo). No Logos Teleios[21] (37) vemos que não é a divindade que habita a zona de poder terrestre, mas um daimon que a representa, quer dizer, que assume seus vetores de manifestação.
Uma vez que nossos
antepassados erraram muito sobre a natureza dos deuses, descrentes e não
percebendo a religião e o culto divino, encontraram uma arte pela qual poderiam
fazer deuses convenientes à natureza do mundo; à qual adicionaram uma virtude
conveniente à natureza do mundo, e misturaram isso: pois não podiam fazer
almas, evocando [então] as almas dos daimones ou dos anjos,[22]
as impuseram em imagens sagradas e divinos mistérios, através dos quais os
ídolos poderiam ter poder tanto para fazer o bem quanto para fazer o mal. Pois
teu avô, Asclépio, o primeiro inventor da medicina, a quem um templo foi
consagrado no Monte Líbio perto da costa dos crocodilos, no qual jaz o homem
mundano,[23]
isto é, o corpo, pois o resto, ou melhor, o todo, se o homem é inteiro em
sentido de vida, retornou ao céu, e ainda agora oferece auxílio aos homens
enfermos pelo seu próprio poder divino,[24]
o que costumava oferecer anteriormente pela arte da medicina. Hermes, cujo nome
ancestral é meu, não está ele, estando presente em sua pátria, ajudando e
preservando todos os mortais que vêm de todos os lugares? Mas quanto a Isis e
Osíris, sabemos quão propícia ela é para conceder muitos benefícios, e quão
prejudicial ela pode ser se estiver irada! Pois é fácil para os deuses terrenos
e mundanos ficarem irados, pois são feitos e compostos pelos homens a partir de
ambas as naturezas. Portanto, acontece que os egípcios chamam esses animais
sagrados e veneram suas almas em cada uma de suas cidades, das quais elas são
consagradas, como se fossem imagens vivas, de modo que vivem sob suas leis e
são chamadas por seus nomes.
A estátua que serve como um receptáculo adequado (hupodoche) para a irradiação divina é análoga ao corpo humano purificado pelo poder do ritual de teurgia, fosse iniciado no culto dos deuses ou dos mortos deificados. A descida do ba de uma divindade se assemelha à Forma Platônica que ativa, informa o útero passivo da matéria e, consequentemente, estabelece o teatro das formas articuladas e animadas. Assim, o ba de uma divindade desce do céu (ou melhor, aparece do indeterminismo atemporal, já que as teofanias a priori constituem toda a realidade manifesta) em suas imagens de culto (sekhem) se unido a elas, quando efetivamente tornam-se zonas de poder terrestres.
Sekhem geralmente significa poder, mas neste contexto designa um símbolo que revela e transmite o poder dos deuses, i.e. um ícone sagrado. Como Jâmblico diz em De Mysteriis (31:4): a luz dos deuses ilumina o sujeito [ou objeto] transcendentalmente (kai ton theon para o helmpei choristos), já que até mesmo a luz visível (ou a heliofania de Ra representada por seu Disco Brilhante, o Aten) prossegue por todo o cosmos visível. No De Mysteriis (31:9) Jâmblico diz:
No mesmo princípio, então,
o mundo como um todo, espacialmente dividido como é, traz a divisão em si mesmo
da luz única indivisível dos deuses (to hen kai ameriston ton theon phos).
Esta luz é uma e a mesma em sua totalidade em todos os lugares, está presente
indivisivelmente a todas as coisas que são capazes de participar dela, e
preencheu tudo com seu poder perfeito; em virtude de sua superioridade causal
ilimitada, completa todas as coisas dentro de si mesma e, enquanto permanece em
todos os lugares unida a si mesma, reúne extremidades com pontos de partida. É,
de fato, na imitação dele que todo o céu e o cosmos realiza sua revolução
circular, está unido a si mesmo e lidera os elementos em sua dança cíclica.[25]
Na Quimbanda, por outro lado, um dos ofícios sacerdotais mais importantes de um táta ou mameto é a confecção dos corpos físicos dos Gangas, o fundamento de exu, na forma de estátuas animadas ou vasos de poder. Pensando na universalidade das técnicas de feitiçaria, será possível encontrar congruências entre a teléstica do hermetismo teúrgico greco-egípcio e a arte de confeccionar as moradas físicas dos Gangas na Quimbanda? Neste ensaio nós veremos que existe uma congruência íntima entre a teléstica greco-egípcia de deificação da alma e animação de deuses terrestres e as tecnologias mágicas propostas pela Quimbanda. O processo de assentar a presença de uma divindade[26] na Quimbanda, seja em vaso de poder ou estátua, segue os mesmos princípios que encontramos na teurgia hermética greco-egípcia sobre a qual nos debruçamos aqui.
Esse ensaio será dividido em cinco partes: Seção
I: Os Oráculos Caldeus & a Teurgia; Seção II: O Hermetismo
Alexandrino; Seção III: Hermética & Teurgia; Seção IV: O
Sacrifício como ferramenta soteriológica na Teurgia e na Quimbanda; e Seção
V: Telestikē na Teurgia e na Quimbanda.
[1] Neste livro faço uma
relação direta entre o hermetismo alexandrino e a teurgia conforme exposta por
Jâmblico e Proclo (412-485 d.C.) no contexto do paganismo grego. O entendimento
acadêmico corrente associa o trabalho destes dois filósofos diretamente ao neoplatonismo
(ou médio e baixo platonismo). Mas da perspectiva do hermetismo, estes dois
filósofos são exemplos par excellence de hermetistas na Antiguidade.
Jâmblico abre e fecha sua obra magna, o De Mysteriis, com referência a
Hermes e sua doutrina, i.e. o conhecimento exposto no Corpus Hermeticum.
Então aqui trabalhamos com essa ideia fundamental: a teurgia que Jâmblico expõe
trata-se do exercício mágico-religioso-soteriológico do hermetismo do Corpus
Hermeticum. O texto hierático, filosófico e teológico do Corpus
Hermeticum é que provê a base para construção da prática teúrgica de
Jâmblico. Trataremos desse tema especificamente na Seção III abaixo.
[2] P.D. Newman. Theurgy:
Theory & Practice. Inner Traditions, 2023, pp. 1.
[3] Ibidem, pp. xii.
[4] Ibidem, pp. 8.
[5] Ibidem, pp. 7.
[6] Para uma contextualização
deste tema, veja Jake Stratton-Kent. Geosophia: The Argo of Magic. Vols.
I e II. Scarlet Imprint, 2021. Veja também Frater Archer & José Gabriel
Alegría Sabogal. Clavis Goêtica: Keys to Chthonic Sorcery. Hadean Press,
2021.
[7] A espiritualidade do Corpus
Hermeticum é uma matéria conhecida como hermetismo alexandrino.
Neste livro faço a distinção estabelecida por Antoine Faivre em sua obra O
Esoterismo (Papirus, 1994, pp. 32-3) entre hermetismo, termo que
define um conjunto de textos conhecido como Hermética (e a cosmovisão
que deles se deriva, dos quais o mais importante é o Corpus Hermeticum)
e que surgiu pouco antes da queda do Império Bizantino; e hermeticismo, para
designar o conjunto de doutrinas esotéricas que modernamente ganham a alcunha
de herméticas após as redescobertas de Marsílio Ficino (1433-1499) e
Ludovico Lazzarelli (1447-1500), e que derivou no renascer da magia no
fim do Séc. XIX em ordens como a Fraternidade Hermética de Luxor e a Ordem
Hermética da Aurora Dourada, e a partir delas e de outras, no esoterismo
Nova Era com os temas da Qabalah Hermética ou das leis do Caibalion
etc.
[8] Termo que se refere a gnōsis para além da linguagem; um tipo de entendimento
que transcende as formas, de forma que qualquer tentativa de definição a limita
e leva, portanto, ao erro da má interpretação.
[9] Termo que se refere a descida
do poder, o aterramento ou assentamento da força mágica.
[10] Termo que designa a divindade
que representava a força mágica dos deuses egípcios. Veja o primeiro volume do Daemonium.
O equivalente na cabalá crioula é o moyo dos bantos ou o àṣẹ dos yorùbás.
[11] [N.T.] em outros termos, a
espiritualização ou deificação da matéria; a sutilização
ou divinação dos elementos brutos (pesados) da matéria. Como o feitio e
consagração de uma estátua animada, que passa a ser uma divindade
terrestre.
[12] [N.T.] a purificação e
deificação da alma através do processo anabático de projeção nos céus ou
éteres superiores do Cosmos, uma epistophe anagógica ou repetição
através da causalidade fatal das sete esferas planetárias em uma região chamada
de Ogdóade e as Enéadas, assim como as duas Hipóstases superiores, o Nous e a
Mônada, descritas em um tratado hermético antigo chamado The Discourse on the
Eighth and the Ninth [Discurso sobre a Oitava e a Nova, presente na Biblioteca
de Nag Hammadi]. P.D. Newman. Theurgy: Theory & Practice. Inner
Traditions, 2023, pp. 2.
[13] Radcliffe G. Edmonds III. Drawing
Down the Moon. Princeton University Press, 2019, pp. 343.
[14] [N.T.] quando envelopado
– para usar um termo de Jâmblico – pelo poder dos deuses, como se estivesse
vestindo um manto de realeza e pureza dos deuses, o teurgo se torna também deus
dentro da demiurgia do Cosmos. A teurgia é um trabalho dos deuses porque
se trata da própria demiurgia do Cosmos. Ela não começa e termina na execução
do ritual. É o ritual, que espelha a própria demiurgia do Cosmos, que se insere
dentro dela. A teurgia, portanto, segue a demiurgia do Cosmos, constantemente
em movimento e perpetuamente em operação criativa.
[15] [N.T.] uma doutrina
expressa pela Hermética: o corpo merece e reflete a condição de sua
alma. No Kore Cosmos (IV:4): Sobre a terra
está a Natureza, que é a criadora das estruturas mortais e modeladora dos
recipientes nos quais as almas são colocadas. E a Natureza também tem ao seu
lado dois Poderes em ação, a saber, Memória e Habilidade. A tarefa da Memória é
cuidar para que a Natureza faça aderir ao tipo que foi estabelecido desde o
início, e que o corpo que ela molda na terra seja uma cópia do padrão no alto;
e a tarefa da Habilidade é ver se, em cada caso, a estrutura que é moldada é
conforme à alma que desce para nela se incorporar, para ver que as almas vivas
têm corpos vivos e as almas lentas têm corpos lentos; que almas enérgicas têm
corpos enérgicos e almas preguiçosas corpos preguiçosos; que almas poderosas
têm corpos poderosos e almas astutas corpos astutos; e, em geral, que toda alma
obtém um corpo adequado para ela.
E outra passagem de
interesse também no Kore Cosmos (II:4): Agora almas são enviadas de
lá para reinar como reis, meu filho, por estas duas razões. As almas que
executaram bem e sem culpa sua raça designada e estão prestes a serem
transmutadas em deuses, são enviadas à terra para que, reinando aqui como reis,
possam ser treinadas para usar os poderes que são dados aos deuses: e almas que
já são divinas e em alguma pequena coisa transgrediram as ordenanças de Deus,
são enviados para serem reis na terra a fim de que possam sofrer alguma punição
ao serem encarnados, e ainda assim não sofrerem na mesma medida que o resto,
mas em sua escravidão ainda possam reter a mesma preeminência que eles
desfrutaram enquanto estavam livres.
[16] [N.T.] o poder de vida e
manifestação noética da alma que desce ao reino da geração. Na cosmogonia,
teologia e cosmologia egípcia, uma parte da alma dos deuses (neteru) e
dos homens que encarnam no reino da geração. Na construção de uma imagem
animada, i.e. no receptáculo de poder que irá receber a presença divina, o ba
da divindade desce e faz sua participação nele. É isso que possibilitará,
efetivamente, que o daimon – de qualquer natureza - que ali habita
assuma a identidade da divindade, compartilhando de sua ousia
(essência), dumanis (poder) e energeia (atividade). A linguagem
da teurgia, assim como do hermetismo, relaciona símbolos imaginários hieráticos
da cultura mágica greco-egípcia. Portanto é natural estabelecer relações e usar
os símbolos e mitos de ambas as culturas, a grega e a egípcia, na apresentação
dos temas dessas duas matérias.
[17] [N.T.] o vestir-se com o
manto dos deuses, é receber deles, na alma através do veículo pneumático,
o seu ba. Isso possibilita que o teurgo se insira na demiurgia do
Cosmos, por meio do ritual. Então a teurgia como trabalho dos deuses tem
duas perspectivas, a superior e a inferior. A superior vê a teurgia como a
própria demiurgia do Cosmos; a inferior vê a teurgia como o ritual que
possibilitará a inserção na demiurgia do Cosmos.
[18] [N.T.] i.e. quando a alma do
teurgo é divinizada.
[19] Algis Uždavinys. Philosophy & Theurgy in Late
Antiquity. Angelico Press, 2014, pp. 86.
[20] São três os vetores de
força que, segundo Jâmblico, configuram a estrutura de manifestação dos deuses,
daimones, heróis e almas: ousia (essência), dumanis
(poder) e energeia (atividade).
[21] Também conhecido como Asclépio
latino.
[22] [N.T.] o teurgo hermetista
não fabrica uma alma, quer dizer, não produz um espírito artificial.
Ao invés disso, ele convoca um daimon do reino da geração, espírito de
morto ou encantado da natureza, uma inteligência terrestre, para morar
na zona de poder construída e dedicada a divindade, assumindo sua
identidade, sendo, a partir dali representante terrestre da divindade.
[23] [N.T.] i.e. o corpo morto
do defunto jaz jazida no templo.
[24] [N.T.] i.e. o ba do
morto Asclépio, divinizado, ficou no templo, enquanto que o resto da
constituição de sua alma retornou ao Uno-Bem. É por meio do poder do ba,
seja de uma divindade ou alma deificada, que o daimon assumirá os
vetores de manifestação da divindade ou alma glorificada.
[25] Citado em Algis Uždavinys. Philosophy & Theurgy in Late
Antiquity. Angelico Press, 2014, pp. 85.
[26] Na Quimbanda, os Gangas
(i.e. os Exus e as Pombagiras) são consideradas divindades. No sentido técnico
do termo, são divindades ou inteligências terrestres ou ctonianas.