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BEELZEBUTH É CHEFE NA QUIMBANDA

Da Série: Quimbanda é Goécia Brasileira – Nº 4


Por Táta Nganga Kamuxinzela

@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago 

 

Seção 1: Beelzebuth causa consternações onde pisa 

Faz pouco tempo houve um furdunço acerca da presença (ou existência) de Beelzebuth na Quimbanda. Até aí tudo normal: desde o tempo em que Jezabeu, que prostituiu-se com os deuses de outras nações,[1] trouxe a Israel a adoração de Baal (1 Reis 21), deus da fertilidade dos sírios e cananeus, que Beelzebuth causa problemas e consternações no imaginário cultural do Ocidente. Quem não se lembra que o pau quebrou entre Elias e os sacerdotes de Baal no Monte Carmelo (1 Reis 18: 17-40)? Querela que começa como uma herança dos ensinamentos dos profetas, que queriam provar o ininteligível para um religioso politeísta: que somente o deus de Israel é verdadeiro e os outros deuses são falsos. 

Em resposta a esse furdunço, na caixinha de perguntas que abri no meu perfil do Instagram na ocasião, respondi que você não busca conhecimento de engenharia com o padeiro da esquina de sua casa, mas com um profissional engenheiro; de igual modo, qualquer dúvida acerca da Quimbanda deve ser dirigida a um Mestre de Quimbanda, i.e. a pessoa autorizada, pela própria tradição, a ensinar Quimbanda. Assim, a título de estudo, propósito deste site, quero deixar registrado aqui uma breve perspectiva histórica de modo a demonstrar como Beelzebuth saiu do imaginário teológico dos cananeus e sírios no contexto do Velho Testamento (2 Reis 1:1-2) onde aparece pela primeira vez, para se tornar um Deus-Chefe na Quimbanda. 

Mas antes de começar, preciso te lembrar: o mito alimenta o rito e o rito realimenta o mito. Todo impulso mágico-religioso toma como ponto de partida um mito; este mito é repetido ritualisticamente, enriquecendo no imaginário de uma cultura ou grupo religioso os alicerces hierofânicos do mito, que por sua vez extrapola para o dia-a-dia das pessoas, para as práticas religiosas individuais e para as convenções sociais. Os alicerces míticos do imaginário ocidental têm duas fontes: os mitos clássicos gregos e os mitos bíblicos do Velho e Novo Testamento. Todas as manifestações religiosas do Ocidente, da Antiguidade a Modernidade, são alimentadas por mitologemas provenientes dessas duas fontes, em maior ou menor grau, tanto excludentes (cristianismo católico, protestante, judaísmo, islamismo etc.), como não excludentes (Umbanda, Quimbanda, Jurema, Santo Daime, Palo, feitiçaria ibérica popular, papiros gregos etc.). Isso é importante dizer porque existe um desserviço religioso feito por sectários africanistas e outros negando o intricado processo de miscigenação cultural que houve na formação da identidade mágico-religiosa brasileira. Como demonstrei no segundo volume do Daemonium, os Papiros Mágicos Gregos representaram no fim da Antiguidade um esforço religioso em congruir os mitos de ambas as fontes, as mitologias grega e bíblica, além de mitologemas egípcios, persas etc. E como veremos no terceiro volume do Daemonium, a síntese que ocorreu nos Papiros Mágicos Gregos deu nascimento a sistematização ocidental da magia como a compreendemos hoje. Tal qual ocorreu no contexto sincrético dos papiros gregos, a identidade mágica e religiosa do Brasil formou-se a partir de um caudaloso caldeirão que não uniu apenas os mitologemas dessas duas fontes, mas também àqueles derivados das culturas tribais da África e América. É por conta disso que é possível encontrar uma antiga divindade da fertilidade dos cananeus e sírios, Baal, como Chefe da Quimbanda no Brasil na forma de Beelzebuth, arconte dos demônios. Nesse texto vamos pontuar o caminho pelo qual isso aconteceu.[2] 

Quando Beelzebuth aparece pela primeira vez no Velho Testamento na forma de Baal-Zebub, ele é descrito como um falso deus reverenciado pelos filisteus na cidade de Ecrom. Os israelitas traduziam esse nome como senhor das moscas, provavelmente porque a sonoridade de zebub era parecida com zebal, termo utilizado para produção de esterco, ao ponto de distorcerem completamente seu significado, em oposição ao seu culto. Mas é somente no Novo Testamento que Beelzebuth torna-se o arconte dos demônios, ganhando notoriedade em desenvolvimentos demonológicos posteriores e na subsequente tradição dos grimórios, garantindo seu lugar na liderança hierárquica do Inferno.[3] 

É na tradição dos grimórios, bem antes de tornar-se um Chefe na Quimbanda, que Beelzebuth conquistou sua apoteose. No Grimório de Armadel (1600) o operador deve convocar conjuntamente Lúcifer, Beelzebuth e Ashtaroth para receber instruções, em primeira mão, da revolta e queda dos anjos. Como vimos no texto As Origens da Demonologia de Aluízio Fontenelle, a mitologia dos anjos caídos de O Livro de Enoch está diretamente associada a Quimbanda. Em O Livro da Magia Sagrada de Abramelin, o Mago (1600), Beelzebuth é descrito como sendo capaz de transformar homens em bestas, quer dizer, de aumentar o potencial bestial no ser humano, despertando o poder de seus impulsos primitivos e atávicos, sendo considerado um espírito maligno capaz de causar malefícios e disseminar pragas. Em seu Dictionnaire Infernal, Collin de Plancy (1794-1881) coloca Beelzebuth entre os oito governantes do Inferno. É interessante que no livro do demonólogo Charles Berbiguier (1765-1851), Les Farfadetes de 1821, Beelzebuth suplanta Satanás como governante do Inferno, muito provavelmente inspirado no Evangelho de Marcos (3:22-26), e a ele é dado o título de Chefe Império do Inferno. Em O Testamento de Salomão o próprio Beelzebuth reivindica seu posto de comandante sobre todos os outros demônios, com o argumento de que não se trata de um filho de qualquer anjo, mas sendo ele mesmo um anjo. Ele também declara ser o Primeiro Anjo do Primeiro Firmamento antes da Queda, o que o coloca em pé de igualdade com o Lúcifer das recessões medievais dos grimórios e com o próprio Samyaza, líder da rebelião dos anjos de O Livro de Enoch. Em Os Segredos de Salomão, o ancestral direto do Grimorium Verum, Beelzebuth é atribuída a regência do continente africano e em As Verdadeiras Clavículas de Salomão, as Américas, junto com Ashtaroth. 

É então na ocasião da incursão diabólica que ocorreu no segundo momento da Quimbanda no Brasil, a partir da década de 1950 na síntese estabelecida por Aluízio Fontenelle (1913-1952), que absorveu a corrente noturna da goécia do Grimorium Verum na Macumba, que Beelzebuth se estabelece definitivamente como um Chefe Infernal em um culto necromântico iniciático e organizado: a Quimbanda. 

Seção 2: Beelzebuth no Velho Testamento 

As raízes históricas de Belzebuth estão com os deuses cananeus denunciados como falsos ídolos pelos profetas hebreus em sua longa e muitas vezes infrutífera luta contra a apostasia. As origens dessa luta ideológica derivam em grande parte dos descendentes da incapacidade de Jacó de se abster das práticas de expressão religiosa politeísta que seus vizinhos ainda felizmente se entregavam. Durante o exílio babilônico, os deuteronomistas, cuja teologia foi sustentada na fidelidade dos hebreus a Yahweh, empregaram esse dispositivo propagandista com particular voracidade, intitulando os deuses de Canaã e das regiões vizinhas [como] «abominações» e «demônios que não eram deuses». Essa atitude permaneceu em grande parte intacta durante a disseminação do cristianismo por toda a Europa, com o Paraíso Perdido de John Milton refletindo a sobrevivência de séculos dessa crença com sua explicação de abertura de que os deuses de Canaã eram «idênticos aos anjos que caíram com Satanás», embora o conceito da Comunhão dos Santos tenha tornado essa religião mais palatável para aqueles que não estavam dispostos ou [eram] incapazes de deixar de lado a reverência dos deuses e ancestrais tribais em seus primeiros dias. Tão mutável era a natureza da Igreja em desenvolvimento quando se tratava de seus esforços para fazer proselitismo, que mesmo um deus tão «demoníaco» como Odin poderia ser remodelado em uma figura suficientemente semelhante a Cristo se os moradores locais se mostrassem muito teimosos para visualizar e entender Jesus Cristo como Roma o via.[4]

 

Jezabel, que se prostituiu com o fértil deus Baal dos cananeus e sírios, foi mãe de Acazias, que se tornou o oitavo rei de Israel. Reinando em Samaria, Acazias sofre uma queda da sacada de seus aposentos. Temeroso por não conseguir se recuperar do acidente, Acazias, conduzido por sua herança ancestral materna, envia seus mensageiros para se consultarem no oráculo do deus tutelar[5] da cidade Ecrom, Baal-Zebube, no sudoeste de Canaã, uma região próspera e farta que Abraão chamou de terra prometida. Beelzebuth acabou por se tornar, com o desenvolvimento mitológico, uma deidade amalgamada, sendo a união entre Baal, deus da fertilidade, agricultura e dos trovões (e, portanto, das chuvas) e Zebub, deus das pestilências (e, portanto, das moscas). Hoje já existe certo consenso de que a palavra zebub, geralmente usada como um termo genérico para infestações de insetos,[6] trata-se do resultado de um jogo de palavras derisório que levou a corruptela beelzebul, uma divindade tutelar ctoniana filisteia e cananeia reverenciada em Ecrom,[7] conectada diretamente aos ciclos transitórios das estações. Esse, aliás, foi um dos fatores que levaram os profetas do Velho Testamento a alegar que toda prosperidade concedida por Baal aos filisteus era transitória, sob o símbolo mítico da árvore (prosperidade temporária), em detrimento da prosperidade concedida pelo deus de Israel, que era eterna (Ezequiel 31: 3-9; Daniel 4: 20-22). 

Existem dois tipos de imagens demoníacas na Bíblia. Em primeiro lugar, há o estranho paradoxo do fato de que os únicos reinos que são consistentemente bem-sucedidos e prósperos são os reinos malignos. É o Egito, a Assíria, a Babilônia e Tiro que têm o nível de poder e prosperidade desesperadamente desejado pelo próprio [povo de] Israel, que o teria considerado como uma marca do favor divino se o tivesse. Assim, a prosperidade dos reinos pagãos forma uma categoria de imagem que podemos chamar de paródia demoníaca, que tem todas as qualidades da coisa real, exceto a permanência. [...] Não nos surpreende observar que, quando os profetas começam a denunciar a aparente prosperidade do Egito, da Assíria ou da Babilônia, eles usam uma imagem desse tipo [da árvore] em um contexto de paródia. [...] Nívile, a capital da Assíria, era a maior cidade do mundo antigo e, de acordo com o Livro de Jonas, gastava-se três dias para atravessá-la do arrabalde ocidental ao oriental. No entanto, de repente, Nívile simplesmente sumiu. Desapareceu sob as areias, onde permaneceu até meados do século XIX. Quase imediatamente depois que foi destruída, tornou-se impossível, para qualquer pessoa, localizar a maior cidade do mundo. Assim, a rapidez com que o poder pagão podia desaparecer quase da noite para o dia era naturalmente um tema favorito da profecia.[8]

 

O rito é uma mimetização do mito e o cerne do mito de Baal envolve os ciclos das estações. A narrativa mítica da vitória de Baal sobre as forças caóticas refletia a preocupação humana com a manutenção de sua existência. Baal era a divindade que lutava perpetuamente para manutenção da vida. O caos, representado pelo deus Mot, que literalmente significa morte, afligia a ordem e ameaçava a continuidade da vida com a falta de chuvas, a aridez do deserto, a infertilidade da terra e das mulheres etc., incursões caóticas sazonais. Baal estabelecia uma contenda anual contra Mot pela manutenção da ordem e continuidade da vida por meio da vegetação e da fertilidade das lavouras, animais e mulheres. 

Anualmente Baal morria e descia (catábase) ao Submundo. Essa é a fórmula mágico-ctônica do Sol da Meia Noite, o Sol que brilha nas profundezas da terra, o mundo dos mortos. Com sua descida ao Submundo, estabelecia-se a estiagem e as sementes morriam. É sua esposa, Astarte (em outras recessões míticas é Anat), que derrota Mot, jogado por ela em um holocaustro sacrificial do qual das cinzas ressuscita Baal (anábase), que restabelece as chuvas e a fertilidade da terra. Essa fórmula mágica é típica de sociedades agrárias e cultos ctonianos. 

Quando os israelitas chegaram em Canaã, eles se depararam com o culto multifacetado de Baal, porque cada região, os territórios palestinos da Jordânia, do Líbano e do sul da Síria (Números 34: 1-15; Deuteronômio 3:8), possuía um Baal tutelar. Os Baals ou baalim eram divindades masculinas que possuíam contrapartes femininas, as astarotes (Ashtaroth).[9] E não é interessante que este princípio de contraposição da polaridade macho-fêmea (que permeia todo o imaginário religioso ocidental e oriental)[10] se repita na cosmogonia da Quimbanda, onde Beelzebuth é o Sol e Ashtaroth é a Lua? Pombagira não é a contraparte de Exu? 

O culto de Baal incluía sacrifícios diversos, até de crianças,[11] e rituais orgiásticos onde as secreções sexuais eram diretamente projetadas sobre o solo, representando a própria fecundação da terra.[12] Nas culturas religiosas do Mundo Antigo, a mulher mantinha uma conexão mágica com a Terra, como vimos no texto As Origens Míticas da Goécia. Uma vez que ambas estão ligadas à reprodução e à fertilidade, elas podem ser fecundadas e são capazes de reproduzir a vida. Foi a partir da noção da fecundidade da terra e do conúbio entre os deuses para criar a vida nos mitologemas onde o deus fecunda a deusa, que surgiu a ideia da relação sexual ritual para a melhoria das colheitas.[13] Era esse o papel da deusa Astarte em Canaã.[14] Nos templos de Baal havia a prostituição ritual, onde as sacerdotisas ofereciam serviços sexuais para aqueles que buscavam por plantações e colheitas mais prósperas. A prostituição ritual que aqui me refiro não se trata do sentido corrente e moderno que ganhou o termo prostituição. Essas sacerdotisas realizavam um ritual sexual na terra que seria fecundada do fazendeiro. A prostituição ritual era um ofício sacerdotal de fecundação da terra oferecido pelos sacerdotes de Baal. Daí que Jezabel, tal qual Astarte e as sacerdotisas dos templos, se prostituiu com Baal. 

Todo esse simbolismo mítico-sexual do Mundo Antigo e no culto de Baal representado por sua relação com Astarte em Canaã, é herdado pela Quimbanda nas relações que se estabelecem i. entre os Maiorais, onde o Lúcifer andrógeno manifesta o deus Beelzebuth e a deusa Ashtaroth, que mantêm relações mítico-sexuais na criação dos Reinos da Quimbanda e individualidade humana; ii. entre Exu e Pombagira, os Gangas polarizados macho-fêmea que nascem da interação sexual de Beelzebuth e Ashtaroth. 

Os embates que sucederam entre os israelistas e os sacerdotes do culto de Baal deram origem as polêmicas suscitadas pelos profetas no Velho Testamento. O incidente que envolveu o bezerro de ouro, porque o touro era um símbolo de fertilidade e força no imaginário do Oriente Médio, foi resultado das incursões de Baal dentro do culto ao deus de Israel. 

O touro era uma popular imagem de fertilidade nos países vizinhos [dos israelitas], e por isso é encarado com alguma desconfiança [...]. No Antigo Testamento, por exemplo [...] Araão o sumo sacerdote, levou as tribos de Israel à idolatria fazendo um bezerro de ouro como um ídolo. «Bezerro» aqui significa touro. Esse é um tipo que se repete posteriormente, quando o reino é dividido entre as dez tribos do norte de Israel e a tribo de Judá. Jerobão, o rei de Israel, estabelece santuários locais com o emblema de um bezerro de ouro – que novamente significa um touro – indicando, assim, seu afastamento da linha religiosa ortodoxa. Nos tempos do Novo Testamento, o grande rival do cristianismo no território do Império Romano era a religião chamada mitraísmo, em que o principal evento do ano era a celebração do nascimento do Spl em 25 de dezembro. O mitraísmo atingiu todos os cantos do Império Romano. [...] O grande emblema do mitarísmo era o touro, e seu grande rito era o sacrifício de um touro. Esse rito era a repetição de um mito original da Criação e é, também, um paralelo exato do sacrifício cristão de um cordeiro que é, segundo o Livro do Apocalipse, «imolado desde a fundação do mundo». É esta afinidade do touro com os reinos pagãos que o elimina como uma imagem normal de um mundo pastoril; e, com efeito, quase podemos classifica-lo como uma imagem demoníaca.[15]

 

Desse conflito teológico, posteriormente resultou a demonização de Baal nas culturas abraâmicas subsequentes, onde Beelzebuth chegou ao posto de arconte dos demônios do Inferno, e muitos outros desenvolvimentos demonológicos posteriores, como os Baalim infernais e o demônio Belfegor.[16] 

Um dos poucos demônios a receber nome próprio na Bíblia, Belzebu é um dos mais conhecidos. Ao longo dos anos, passou a ser visto como um dos principais dignitários do Inferno. Mas, antes de ser um demônio, ele foi um deus. O nome Belzebu é provavelmente uma forma de Baal Hadad, deus das tempestades que aparece na mitologia dos antigos sírios e cananeus. [...] Baal Hadad é lembrado como Belzebu por conta de um processo de demonização: muitos dos demônios mencionados no Velho Testamento não eram demônios, mas sim deuses que pertenciam a culturas rivais. Para dissuadir os antigos israelitas de venerar essas divindades estrangeiras, os deuses passaram a ser representados como malignos ou monstruosos.[17]

 

Seção 3: O Arconte dos Demônios 

Os profetas sempre trouxeram às suas culturas alguma condenação de um mal no mundo: um lapso na religião correta, talvez, ou algum tipo de bruxaria ou feitiçaria, ou algum tipo de espírito maligno, cuja existência, afirma o profeta, causou estragos e poluição na sociedade e no cosmos. De fato, o que torna o profeta atraente para a cultura, mesmo que ele possa aparecer como um estranho com noções destrutivas de renovação cultural, é sua representação desse mal como um sistema e uma ameaça à sociedade: demônios e sua natureza, talvez sua relação com Satanás, bruxas e como elas operam, e os sinais pelos quais podemos conhecê-las. Ainda mais importante, o profeta demonstra como o mal pode ser localizado e depois purgado, oferecendo ilustrações dramáticas como o exorcismo ou a identificação de bruxas. No final, se ele for bem-sucedido, o público sente confiança de que o profeta entendeu as realidades culturais locais dentro de um sistema maior e credível – demonologia ou conspiração – e que seus meios de purificar a cultura são poderosos e eficazes. De fato, ao abraçar a ideologia do profeta e se submeter a seus rituais de cura e purificação, o público permite que uma nova dispensação – uma cultura livre de demônios ou bruxas ou doenças – ocorra.[18]

 

Quando Beelzebuth aparece pela primeira vez como o arconte dos demônios no Evangelho de Marcos,[19] i.e. como o príncipe regente de todos os espíritos infernais, haviam muitas personalidades carismáticas alegando a capacidade de expulsar demônios através do exorcismo. E como a linha que distingue a prática de expulsar demônios pelo exorcismo e a Arte da goécia, a capacidade de comandá-los à vontade,[20] é muito tênue, essas personalidades carismáticas eram muitas vezes acusadas de serem feiticeiros (goēs), como o próprio Jesus o foi. Comentando as similaridades entre as ações exorcistas de Jesus e os feitiços dos Papiros Mágicos Gregos, dentre os quais haviam aqueles que incluíam o nome de Jesus, John Diminic Crossan diz: 

Jesus, como um popular mago judeu do primeiro século [...] pode muito bem ser comparado aos magos profissionais que possuíam esses papiros mágicos, mas isso deve ser estabelecido comparando suas ações, não presumindo seus motivos.[21]

 

Os exemplos que encontramos dos exorcismos de Jesus no Novo Testamento, como no Evangelho de Mateus (17:18) em que ele repreendeu o demônio que saiu do corpo do menino, e no Evangelho de Lucas (9:42) onde o demônio coloca o menino em convulsão, mas logo é expulso pelo comando de Jesus, quer dizer, as descrições dos efeitos físicos e dramáticos desses exorcismos, demonstra que eles foram editados para transparecer que são fruto da santidade de Jesus, e não de seu poder de magia, quer dizer, foram descritos de maneira a se tornarem mais milagrosos e menos mágicos. E isso virou tendência na época, porque muitas das proezas mágicas demonstradas pelos magos eram as mesmas possuídas pelos santos, mártires e apóstolos. 

Os exorcismos são mantidos [nos evangelhos] como evidência do status divino de Jesus, os detalhes de sua performance foram um constrangimento para a igreja – eles retratam um Jesus que pode ser considerado apenas como um entre muitos homens santos itinerantes que operavam maravilhas. A essa alta, a teologia já estava se afastando constantemente do Jesus histórico, cujas falhas, particularmente sua reputação como mago, estavam sendo repassadas ao mesmo tempo que seu currículo oficial estava sendo editado.[22]

Os magos inspirados pelo demônio deveriam tornar-se impotentes ou converter-se ao Cristianismo. A simples condenação, porém, logo passou a ser vista como ineficaz e dispendiosa. Hábitos tinham sido formados pelas velhas ideias e costumes, os quais podiam ser tenazes. Alguns desses pseudopartidários dos malévolos demônios tinham capacidades e dons que eram preciosos para a religião mais nova, os quais ela não queria se dar ao luxo de perder. Nessas circunstâncias, a atitude sábia era considerar com atenção as conversões. Com esse propósito, determinadas práticas pagãs talvez não tivessem de ser destruídas, mas redefinidas. Poderia ser necessário distinguir entre as ações descritas como demoníacas para escolher quais eram menos prejudiciais que outras, e tentar um acordo. Essa tendência para a contemporização tornaria-se um traço marcante no mundo do fim da Antiguidade. Esforços eram feitos para que alguns dos velhos costumes fossem mantidos, e talvez alguns dos daimones mais antigos recebessem um novo conceito; e também havia o empenho em restringir as forças de condenação. Alguns tipos de magia e feitiçaria eram, assim, tolerados, pelo menos por medo de algo pior, e talvez por oferecerem alguns benefícios, afinal de contas. Portanto, o processo de demonizar a magia não veio completo, mas foi sendo redefinido em seu desenrolar.[23]

 

Nos primeiros anos de desenvolvimento do Novo Testamento, o mundo era povoado por demônios. O Evangelho de Marcos apresenta o termo daimonizomenous, que significa endemoniado, i.e. o sujeito possuído por um demônio. Como vimos, o uso da palavra daimon na Antiguidade podia indicar qualquer divindade: deuses, espíritos tutelares, intermediários benignos ou malignos e espíritos dos mortos. A degradação do termo daimon ocorreu na Septuaginta, de onde derivou as conotações negativas conectadas a sua corruptela latina: daemon (demônio). A possessão demoníaca era um fenômeno recorrente naquele período e a grande demanda de endemoniados da época proveu as condições ideias para que inúmeros exorcistas carismáticos surgissem de posse da medicina do exorcismo. Essa palavra, carisma,[24] é utilizada aqui no seu sentido técnico, i.e. representa o poder espiritual inato em se comunicar ou comandar espíritos. E o termo medicina também, porque inúmeras doenças eram creditadas a influência de demônios, como vimos no Capítulo 12. O exorcismo não era, portanto, somente mágico, mas essencialmente terapêutico, e fazia parte do ministério de Jesus, continuado posteriormente por seus apóstolos, que receberam diretamente de Jesus as mesmas capacidades. 

No início de seu relato, Marcos apresenta Satanás com o um tentador (1: 9-13), e isso era senso comum na época. Em seguida Marcos descreve o confronto entre Jesus e um homem endemoniado por um espírito imundo, quer dizer, um demônio. É interessante que antes de ocorrer o exorcismo, o homem endemoniado reconheça Jesus como Santo de Deus. A descrição de Marcos faz crer que o poder do exorcismo estava relacionado a virtude de Jesus ser o Santo de Deus, daí sua autoridade. Por outro lado, essa autoridade é atestada por testemunhos que, por sua vez, confirmavam o poder de Jesus sobre os demônios, algo muito próximo daquilo que Paulo fez, que foi atribuir a Satanás o poder sobre os espíritos do ar.[25] Essas eram duas ideias comuns da época: que Satanás é tanto um tentador dos homens, quanto um poderoso comandante dos espíritos do ar (demônios). 

É nesse contexto que Beelzebuth entra no jogo: no Evangelho de Marcos (3:20-30) Jesus foi acusado de estar possuído por um espírito imundo, i.e. um demônio, que foi identificado pelos escribas da lei como Belzebu, e que era através do poder de Beelzebuth, segundo eles, que Jesus expulsava demônios. Essa era uma fórmula mágica muito comum e conhecida na época: o conhecimento e conversação com o espírito tutelar. Como demonstrei fartamente nos dois volumes anteriores do Daemonium, é por meio do poder do espírito tutelar, i.e. o paredros dos papiros gregos, o daimon pessoal da teurgia neoplatônica, o Sagrado anjo Guardião de Abramelin, o diabo pessoal de Fausto, o Exu na Quimbanda etc., que todo o poder para operar o milagre da magia e comandar outros espíritos é transferido ao operador. O argumento que Jesus utilizou para se defender é tanto estúpido quanto revelador. Ele faz uma pergunta retórica: como pode Satanás expulsar Satanás? De acordo com a fórmula mágica do espírito tutelar, é através desse diabo pessoal que o mago comanda qualquer espírito, mas os editores do Evangelho de Marcos ou desconheciam ou se fizeram por desentendidos. Mas por outro lado Jesus revela que Beelzebuth é apenas outro nome de Satanás. É nessa passagem também que Beelzebuth é apresentado como príncipe dos demônios. Quando Marcos inicia seu relato, ele não deixa claro a posição de satanás ou mesmo sua relação com a hierarquia de demônios. Jesus confirma, portanto, Beelzebuth como o líder de todos os demônios. 

E em O Testamento de Salomão, o livro grego que inaugura a tradição salomônica e que foi escrito no mesmo período em que os evangelhos do Novo Testamento estavam sendo editados, Beelzebuth confirma sua posição hierárquica entre os demônios e sua qualidade de espírito intermediário: 

Eu sou Beelzeboul, o exarca dos demônios. E todos os demônios têm seus assentos de chefia próximos a mim. E sou eu quem faz manifesta a aparição de cada demônio.[26]

 

Beelzebuth revela a Salomão que ele é um dos anjos que caíram do céu, sendo ele mesmo o Primeiro Anjo do Primeiro Firmamento, e que ele era, por causa disso, comandante de todos os demônios do Submundo. Como falei na abertura deste texto, ao apresentar-se como o Primeiro Anjo do Primeiro Firmamento, Beelzebuth colocou-se em pé de igualdade com Lúcifer, o Príncipe Rei dos demônios, como vimos, e com Samyanza, o anjo que liderou a rebelião contra Deus em O Livro de Enoch, como vimos no texto As Origens da Demonologia de Aluízio Fontenelle. Além disso, Beelzebuth também se coloca como um destruidor de reis e nações. Nos homens de Deus, quer dizer, sacerdotes, santos e religiosos, ele ínsita desejos, pecados, heresias e atos contrários a lei. Beelzebuth também diz causar inveja no coração dos homens, instigando-lhes ao assassinato e a sodomia. 

É por essas declarações, e em consequência da demonização de divindades pagãs em demônios que, além de arconte de todos eles, Beelzebuth passa também a ser o chefe da goécia. 

Seção 3: O Chefe da Goécia

 

No fim da Antiguidade o paganismo encontrava-se em seu declínio final; era a derrocada da era dos deuses e da adoração de seus ídolos. O cristianismo já havia angariado muitos adeptos, porque facilitou o exercício religioso e amenizou as preocupações com a salvação da alma no pós-vida. Ser pagão não era uma atividade religiosa fácil. Os deuses exigiam sacrifícios diversos e uma grande quantidade de oferendas, e mesmo assim, não havia qualquer garantia de que a alma, efetivamente, encontraria morada no Hades; e muito embora essa não fosse uma boa opção,[27] por conta da tediosa vida no Submundo,[28] ainda assim era melhor do que vagar perdido como um fantasma pelo mundo. O cristianismo acabou com toda essa ansiedade. Já não era preciso sacrificar animais ou oferecer oferendas aos deuses, bastava apenas a fé, a oração e o comportamento sóbrio na sociedade para agradar a Deus;[29] e o medo de vagar perdido fora dos portões do Hades no pós-vida foi erradicado com a garantia da salvação da alma pelo arrependimento dos pecados e a resiliência perante a prática do mal. 

No paganismo as atividades religiosas eram restritas a uma classe aristocrata de sacerdotes, além de permitir que apenas os cidadãos da cidade participassem da religião. Se alguém desejasse agradar aos deuses particularmente, não era possível, pois estes somente respondiam as ações dos sacerdotes chancelados pelo Estado. É por isso que práticas religiosas como a goécia ou os cultos de mistérios, como vimos na Parte I, eram condenadas pelos aristocratas religiosos e pelo Estado. Sobre isso Frater Archer diz: 

Platão, em suas Leis, gostou de lidar rapidamente com a ralé dos goêtes, pois seu estado ideal condenava qualquer forma de culto religioso privado com prisão perpétua.

Isso retrata Platão mais como inimigo das práticas espirituais subjacentes ao amplo termo goêteia em si, do que como um protetor e preservador da ordem geral da pólis. Pois os goêtes eram impostores que manchavam a reputação dos cultos religiosos mágicos oficiais, ou eram renegados e desertores que, por sua arrogância e loucura, perturbavam a relação ordenada de poder, riqueza e negociações reguladas com espíritos e deuses.

Platão, assim, destaca o princípio central dos goêtes, e todos os seus companheiros errantes noturnos, como bruxas, magoi e pharmakoi, que operavam em um espírito de autodeterminação imprudente: eles eram tolos ímpios que negociavam ilegalmente com a religião e ousavam destruir linhagens familiares[30] e estados inteiros em nome do dinheiro.[31]

O feiticeiro que encantava, envolvido com os mortos sem descanso e navegando nas marés telúricas, era igualmente um representante de um tipo estranho de trabalho espiritual, assim como, especialmente desde o século V a.C., um estereótipo difamatório comum. Ao mesmo tempo, suas personas e trabalho eram desprezados como «fraudulentos e ilusórios» e ainda temidos como «ainda assim algo perigoso».

Localizado na escada social (de descendência) em algum lugar acima do simples cortador de raízes, mas abaixo do mago profissional estatal, o goês apresenta o (quase esquecido) modelo da figura demoníaca da bruxa desde a Antiguidade greco-romana. Ambos representam figuras de transgressão, de violações não apenas da religião normativa, mas ainda mais essencialmente da convivência social. Sua comunhão constante não é com os seres humanos, mas com espíritos que permaneceram em grande parte sem nome e não ligados aos líderes sacerdotais dos cultos formais dos templos e igrejas posteriores.

Em um campo de tensão permanente, a representação ética do goês oscilava entre dois reinos: de um ponto de vista da ordem cosmológica, eles eram identificados como transgressores perigosos, violadores e causadores de crises no mundo natural, social e divino. De um ponto de vista de interesse econômico, no entanto, eles eram os agentes operativos de um mercado ilícito que negociava acesso ao poder.[32]

 

O cristianismo, que no fim da Antiguidade já era a religião oficial do Império Romano, democratizou o exercício religioso: agora era possível adorar e agradar a Deus em casa, orando com a família; e além disso, o exercício religioso foi estendido a todas as pessoas: aristocratas, comerciantes, camponeses, escravos e estrangeiros. Todos podiam participar da fé cristã, desde que tivessem passado pela metanoia, palavra grega que os cristãos traduziram equivocadamente como arrependimento, deturpando o genuíno e real significado desta experiência mística. 

Os filósofos, descrentes e descontentes com os métodos religiosos pagãos, teciam duras críticas contra o paganismo, como por exemplo a necessidade do sacrifício animal e a participação dos daimones neles. Os argumentos tecidos por estes filósofos, por outro lado, deram fôlego ao cristianismo para acirrar os ataques contra o paganismo – a goécia, a magia, a teurgia, os mistérios etc. – e a perseguição de seus aderentes. Em uma última investida para salvar o paganismo de sua derrocada final, surge um reformador, o chefe da Academia Platônica da Síria, Jâmblico de Cálcis (245-325 d.C.). 

Jâmblico foi um reformador! Como filósofo ele soube avaliar com precisão os problemas de seu tempo, oferecendo ao paganismo e a filosofia helênica uma saída lúcida a prática religiosa politeísta que na sua época passava por uma perseguição radical do cristianismo que se espalhava como fogo no território de palha do Mediterrâneo desde o Séc. I d.C. Foi a reforma que Jâmblico fez no politeísmo pagão que possibilitou uma intricada classificação de criaturas espirituais jamais vista até então. Ao revisar e reformar a ontologia neoplatônica, Jâmblico abriu caminho para futuros filósofos e escolas de mistérios classificarem e estruturarem cosmologias distintas. Jâmblico influenciou profundamente a Tradição Hermética de Mistérios.[33] Antes de Cornélio Agrippa (1486-1535) no fim da Idade Média, ele foi o responsável por uma síntese que mudaria completamente a história da filosofia e da magia.

[...] O novo olhar de Jâmblico sobre o neoplatonismo e o politeísmo religioso encontrava singela sincronia no homem helenizado de seu tempo, que ansiava tanto por um aprofundamento filosófico quanto por uma prática religiosa pagã lucidamente fundamentada. Olimpiodoro (495-570), um dos últimos filósofos pagãos a ensinar na escola de Alexandria no Séc. VI d.C., em seu comentário ao Fedro de Platão exalta as diferenças na a interpretação de Jâmblico – e de Siriano (falecido em 437 d.C.) e Proclo que seguiram Jâmblico – em detrimento das interpretações de Plotino e Porfírio. Ele diz: Alguns põem em primeiro lugar a filosofia, como Plotino, Porfírio e muitos outros filósofos; outros, porém, põem em primeiro lugar a arte sacerdotal como Jâmblico, Siriano e Proclo.

O destaque dado a Jâmblico reside no fato dele saber interpretar os problemas dos pagãos letrados de seu tempo, encontrando saídas promissoras a justificativa religiosa politeísta do paganismo helênico, que sedento estava por ritos soteriológicos de aplacação de deuses e daimones. Enquanto Plotino se preocupou em criticar os gnósticos e Porfírio em criticar os cristãos, Jâmblico optou por não criticar ninguém, se limitando apenas a expor lúcida e positivamente o paganismo helênico em sua forma greco-síria. Para fazê-lo com eficiência Jâmblico precisava apresentar uma rigorosa fundamentação teórica; era preciso refundamentar e reestruturar em níveis conceituais todo o politeísmo da última fase da cultura helênica. Para resolver essa questão Jâmblico buscou na ontologia neoplatônica, estimulado sobretudo a partir dos Oráculos Caldeus, toda fundamentação para o politeísmo.

O apego à teurgia pelo paganismo popular e filosofia helênica tardia foi o ponto significativo que possibilitou Jâmblico fazer sua reinterpretação e síntese. O Logos era julgado insuficiente para garantir os fins últimos da matéria, sendo para isso importante a intervenção dos deuses propícios. O que jâmblico fez foi possibilitar uma comunhão entre a mística filosófica e a transcendência fecunda da adoração ritualística.[34]

 

Um dos críticos as abordagens religiosas do paganismo, principalmente em relação a teurgia e a goécia, mas não um opositor do paganismo enquanto tradição, e severamente duro contra o cristianismo, foi o professor de Jâmblico, o filósofo neoplatônico Porfírio de Tiro (234-309 d.C.). A relação entre esses dois filósofos, a importância do debate entre eles para a história da magia, com uma pequena biografia de ambos, eu ofereci no primeiro volume do Daemonium, e não se faz necessário repetir aqui. O que é relevante neste contexto é que as declarações de Porfírio sobre a prática da goécia foram utilizadas como argumentos pelos cristãos para que Beelzebuth se tornasse o chefe da goécia salomônica pós interpretatio-christiana.[35] 

No contexto sobre o qual estamos nos debruçando, este termo, interpretatio-christiana, trata-se da reinterpretação cristã de antigas práticas religiosas pagãs, seja para sua condenação ou para sua assimilação no corpo de doutrina. É a interpretatio-christiana, substanciada por filósofos como Porfírio e referendada por teólogos como Eusébio de Cesareia (265-339 d.C.) e Santo Agostinho (354-430 d.C.), contemporâneo de Jâmblico, que marca a transição da antiga goécia necromântica grega para a goécia salomônica demoníaca que vemos cristalizada no Lemegeton. 

Em seu texto Sobre a Abstinência de Carne, Porfírio tece inúmeros argumentos sobre as razões pelas quais os sacrifícios são realizados e condena a participação dos daimones malignos que se beneficiam dos sacrifícios.[36] Ele diz: 

É através do tipo oposto [i.e. maligno] de daimones que toda a feitiçaria [goēteia] é realizada, pois aqueles que tentam alcançar coisas ruins através da feitiçaria, honram especialmente esse daimones e, em particular, seu chefe.[37]

 

Porfírio está dizendo que a goécia como prática religiosa lida com daimones malignos apenas, e estes possuem um líder. Eusébio de Cesareia em sua Preparação para o Evangelho cita Porfírio, que atribui a chefia dos daimones malignos e, portanto, a própria goécia, a uma divindade helênica ctoniana: Serápis. 

E são estes [os daimones malignos] sobre quem Serápis governa, e cujo símbolo é o cachorro de três cabeças [i.e. Cérbero, guardião do portão do Hades], esse é o daimon maligno nos três elementos, água [reino ctoniano], terra [reino telúrico] e ar [reino aéreo]: estes são contidos pelo deus que os tem debaixo da sua mão. Mas Hécate também os governa, como segurando os três elementos juntos.[38]

 

Serápis, assim como Hécate e o Baal dos cananeus e sírios, era uma divindade ctoniana – theo-ctonius. Nos Oráculos Caldeus, Hécate era considerada a própria Alma do Mundo platônica e, como tal, estava presente em toda parte do Cosmos, por isso sua identificação com a Natureza (terra) nos oráculos, sendo um agente mediador entre os espíritos e seus reinos (locais de poder), portanto, uma deusa limiar entre os homens e os espíritos. É por esse motivo que seu culto ocorria em pontos de força ou zonas de poder limiares, como as encruzilhadas, e esteve associado a Lua, porque os neoplatônicos da Antiguidade popularizaram a ideia de que a Lua é tanto um ponto de força limiar, quanto uma entidade mediadora entre os mundos Sensível e Inteligível.[39] No mesmo texto Eusébio de Cesareia descreve Hécate referindo-se a si mesma como minha ninhada negra de filhotes de cães, um conceito que estava presente nos Oráculos Caldeus e representava espíritos vingadores que saltam das profundezas da terra, muito provavelmente inspirados nas Erínias, deidades vingadoras que habitavam o Submundo.[40] Serápis foi uma divindade sincrética greco-egípcia, que combinava as virtudes dos deuses egípcios Osíris, que reinava no Submundo, e Ápis, o touro sagrado que representava a própria terra e era filho de Hathor. Seu nome primeiro foi estabelecido como Aser-Hapi, i.e. Osíris-Ápis, e foi designado como um dos deuses tutelares da cidade de Alexandria por volta do Séc. IV a.C. sob o domínio de Ptolomeu I Sóter, o primeiro faraó da dinastia lágida, que reinou de 305-30 a.C. Tendo recebido as virtudes destes dois deuses, assim como eles, Serápis era relacionado a vegetação e ao mundo ctônico, do mesmo modo que Baal em Canaã. Porfirio identifica Serápis diretamente com Plutão, também regente do Submundo e dos mortos. 

Porfírio se esforça em apresentar uma imagem depreciativa da goécia em todos os contextos. É interessante que ele tenha identificado a goécia, inspirado nos Oráculos Caldeus que tiveram grande apreciação dos neoplatônicos, com os daimones malignos (daimonin poneron), e não com os mortos sem descanso (nekydaimones) como estudamos na Parte I deste livro. Como vimos, a linha que distingue esses dois tipos de criaturas espirituais é muito tênue, porque ambas infligem aos seres humanos sofrimentos diversos. Mas sua associação serviu de combustível para que os cristãos associassem a goécia aos demônios e a arte das trevas posteriormente em sua recessão salomônia. E não só os cristãos seguiram nessa linha de interpretação. Os neoplatônicos posteriores, cujas ideias herdaram do mundo bizantino e influenciaram drasticamente os grimórios após o Século XI, também. No entanto, as descrições de Porfírio acerca da prática da goécia estão em sincronia e são fieis as descrições homéricas que vêm do Séc. VI e V a.C. E para ele, são estes daimones malignos que auxiliam os feiticeiros em seus filtros, talismãs e encantamentos, pensamento referendado posteriormente por Eusébio de Cesareia em seu Preparação para o Evangelho e por Santo Agostinho em sua obra A Cidade de Deus, que os chamou de demônios. Já no tempo de Agostinho era corrente a ideia de que por trás das ações e dos poderes do mago sempre se encontrava um ardiloso demônio, o que não deixa de estar em sincronia com a fórmula mágica do espírito tutelar, como vimos no primeiro volume do Daemonium. 

Nos Capítulos 12 e 13, vimos que o cristianismo tornou os deuses pagãos e espíritos diversos da geografia mágica de muitas culturas em demônios. A essa altura, daimones malignos e mortos sem descanso foram classificados genericamente como demônios. Levando as missivas de Porfírio a sério, e se baseando nelas, foi o bispo Eusébio de Cesareia quem, de fato, nomeou Beelzebuth como chefe da goécia. Ele diz em seu Preparação para o Evangelho: 

E quem o poder que as preside acontece de ser, será esclarecido novamente pelo mesmo autor, que diz que os governantes dos daemon maus são Serápis e Hécate, mas a escritura sagrada diz que é Beelzebul.[41]

 

É essa passagem de Eusébio de Casareia que marca a transição da goécia grega para a goécia salomônica e, neste contexto, Beelzebuth é declarado o chefe da goécia. É Beelzebuth, portanto, o Arconte de todos os demônios no início da goécia salomônica, como ele mesmo se apresenta em O Testamento de Salomão, o livro que inaugura a tradição salomônica. Eusébio de Cesareia dá continuidade dentro do cristianismo a tradição de longa data, desde o Séc. V a.C., de difamar a goécia e o goēs. Ele diz: Os ministrantes de fato dos oráculos nós devemos em pura verdade declarar serem daemons maus, jogando ambas as partes para enganar a humanidade.[42] 

Seção 4: A Chefia Compartilhada nos Grimórios 

Após a entrada de Lúcifer no universo [dos grimórios], a hierarquia de espíritos encontrada nos grimórios pode ser vista como o fruto de suas emanações. Sendo andrógino, essa emanação inicial pode ser pensada como tendo produzido um princípio masculino, Belzebuth, e um princípio feminino, Ashtoreth, cujos nomes são refletidos no acoplamento divino encontrado na segunda ordem de deuses do panteão cananeu. Uma vez manifestado, seu acoplamento levou à geração de todos os outros espíritos [demônios] do domínio sublunar. Entre os maiores desses espíritos estão os quatro Reis Cardinais – dois dos quais são masculinos na aparência e dois dos quais são femininos que receberam o governo sobre os quatro elementos do reino terrestre e são governados coletivamente pelo arquidemônio Satanás, que governa a totalidade dos elementos. Na linha de textos que seguem as tradições do Livre des Esperitz e do Livro dos Ofícios [dos Espíritos], é Satanás, em vez de Ashtoreth, que aparece na trindade dominante, possivelmente devido à ênfase que essas obras colocam nos espíritos aéreos e nos Reis Elementais, a quem Satanás governa. No entanto, a presença de Ashtoreth no lugar de Satanás no triunvirato dominante do Grimorium Verum e Grand Grimoire – onde os Reis Elementais não aparecem diretamente, reflete sua posição como uma das emanações preeminentes de Lúcifer.[43]

 

Pelo que vimos até aqui, os evangelhos, a apologética dos primeiros padres da Igreja, e até O Testamento de Salomão consideram, pelo menos até o Séc. IV d.C., que Beelzebuth era o regente de todos os demônios do Inferno. Algumas destas fontes mencionam Satanás, como vimos. Mas por causa da polêmica que envolvia o nome satanás, termo que antes era considerado apenas uma função, a do opositor ou acusador, e não um nome próprio, talvez ele fosse menos utilizado para designar o chefe dos demônios,[44] ou era mais um dos nomes dele.[45] Seja como for, os termos satanás e satã passaram a ser utilizados pelos padres do Séc. V d.C. como referências comuns ao Diabo, de modo geral. Só que neste período um outro arquidemônio, fruto direto da primeira tradução do Velho Testamento para o grego koiné, a Septuaginta, e da primeira tradução do Novo Testamento para o latim, a Vulgata: nascia Lúcifer, um demônio exclusivamente cristão. 

Na seção anterior sobre Lúcifer nós vimos que a aparição de seu nome foi uma tormenta nos primeiros séculos do cristianismo, ao ponto de Orígenes (185-253 d.C.) refutar duas especulações correntes da época. A primeira acerca da passagem do Livro de Isaías (14:12),[46] de que seria uma referência não a Nabucodonosor, um homem, mas a Lúcifer sim, um anjo caído. Nabucodonosor nunca caiu do céu e muito menos era a Estrela da Manhã, ele diz.[47] A segunda, inspirada no zoroastrismo, que Lúcifer era tanto da natureza das trevas e, portanto, do mal, quanto as trevas eram independentes de Deus. Orígenes argumenta que não, porque Deus criou as trevas e, caso fosse o contrário, Lúcifer não poderia elevar-se luminoso todas as manhãs, pois sendo sua natureza de trevas, não continha em si nada de luz. Além disso, Orígenes aloca a apostasia e queda de Lúcifer antes da criação do Cosmos, diferente de muitos autores, que o fazem pouco antes do dilúvio.[48] 

A Septuaginta traduziu o termo hebraico heilel ben-Shahar da passagem do Livro de Isaías, que literalmente significa o presunçoso filho de Shahar para o grego heōsphoros, que significa o trazedor da aurora. O problema aqui é que este termo, heilel e que foi utilizado 165 vezes no Antigo Testamento (como em 1 Reis 20:1, Salmos 10:3 ou Provérbios 20:14 etc.), na maioria das vezes se referia a vanglória. Na época o termo heilel era utilizado intercambialmente para se referir a presunção ou ao brilhantismo. No entanto, o termo também era utilizado para descrever um fenômeno astrológico: o planeta Vênus que era avistado na aurora. Por outro lado, Shahar era a divindade babilônica da aurora, identificado com o planeta Vênus. Daí que a tradução ficaria: aquele que brilha, o Filho do Amanhecer. No Séc. V d.C. a Vulgata traduziu o grego heōsphoros para o latino lucifer, que se traduz como aquele que porta a luz. Por um lado, essa foi uma tradução incorreta: o equivalente grego ao lucifer latino é phos-phoros. Por outro lado, Jerônino (347-420 d.C.) optou por traduzir heilel por Lúcifer, assim parece, porque na época ambos os termos se referiam ao evento astrológico.[49] Mas é somente no Séc. XV, na Bíblia do Rei James (1611), onde lê-se a passagem do Livro de Isaías (14:12): Como caíste dos céus, ó Lúcifer, que se erguia nas manhãs! Como caíste à Terra, tu que feriu as nações; e também na obra de John Milton (1608-1674), O Paraíso Perdido (1667), que aquele que porta a luz recebe a conotação de substantivo próprio e torna-se um nome associado ao Diabo. Não apenas o uso que Milton faz do termo lux-fer é totalmente mal interpretado, como também o próprio termo (derivado da tradução errônea da Vulgata) é totalmente inadequado. A consequência disso é que a partir do século XVII Lúcifer, assim como Satanás, Mastema e Belial, tornou-se desde então um dos nomes comumente usados para o Diabo.[50] 

Em detrimento disso, após a Vulgata Beelzebuth deixa de ser o Arconte dos Demônios, i.e. o chefe de todos eles, e passa a ser mais um entre eles, sendo Lúcifer, a partir daí, o novo Chefe de toda Corte Infernal dos demônios. E na sequência disso, a chefia dos demônios começou a aparecer compartilhada nos grimórios. 

Em O Tratado Mágico de Salomão, o conhecido também como Hygromanteia (1440),[51] Beelzebuth aparece como regente da direção Sul, com muitos demônios a ele subordinados, enquanto que Ashtarot figura no Oeste. Em O Livro da Magia Sagrada de Abramelin, o Mago, Beelzebuth aparece como um demônio chefe de legião. Em Le Livre des Espiritz (1500), que tem relação direta com a lista de demônios que aparece em Pseudomonarchia Daemonum (1563), e por meio deste, com o Ars Goetia (1641),[52] Beelzebuth compartilha da chefia de todos os demônios, como uma trindade, com Lúcifer e Satã. Este é um dos exemplos mais antigos onde esses nomes passaram a denominar espíritos distintos.[53] E no Grimorium Verum, a partir do Séc. XVIII, Beelzebuth passa a compartilhar a chefia de todo o Inferno com Lúcifer e Ashtarot. 

Espírito licencioso, grande e maligno, é chamado de Belzebuth, e foi chamado antes do tempo de Salomão de Anthaon, e é o Maior do Inferno depois de Lúcifer, e deve-se saber que ele governa os lugares orientais, e aquele que o chama deve manter seu rosto para o leste e ele aparecerá para ele em belo rosto e aparência. Ele ensina todas as ciências e dá ouro e prata àqueles que o restringem a vir, e dá uma resposta verdadeira ao que se pede a ele, e revela os segredos do Inferno se alguém lhe perguntar, e ensina verdadeiramente as coisas escondidas na terra e no mar, e assim manifesta todos os tesouros que estão descansando na terra, e guarda os outros espíritos, e deve ser chamado em bom tempo.[54]

 

No Grimorium Verum, Beelzebuth é reestabelecido como uma divindade conectada a fertilidade, compartilhando das virtudes possuídas pelo Zeus dos gregos e o Hadad dos acádios, estando diretamente conectado a virtudes jupterianas. Jake Stratton-Kent diz: 

A forma bem conhecida de Belzebub, que significa Senhor das Moscas, é aparentemente uma má-tradução insultuosa de origem judaica. É significativo que o Verum evite essa forma insultuosa em favor de algo mais parecido com a origem. O nome original teria envolvido uma forma de Baal, um título comum de deuses fenícios e cananeus, além de: zbvb (jorrando para fora); tzabaoth (dos Exércitos); sabaoth (sete). Este presumivelmente seria um título de Baal Shamem, o Senhor do Céu, identificado com Hadad e Zeus, de acordo com a correspondência planetária do título Príncipe, o de Belzebuth em vários grimórios, que equivale a Júpiter. Há também um Baal Tzephon, considerado sinônimo de Belzebuth, cujo nome está ligado ao do Tifon grego e do Set egípcio.[55]

 

Essa abordagem mítica de Beelzebuth no Grimorium Verum terá, como veremos na próxima seção, um impacto profundo na sua iconografia na Quimbanda. Como vimos, Baal era uma divindade associada a fertilidade (da terra, dos animais e das mulheres), das chuvas e dos raios. Um símbolo diretamente conectado a fertilidade era o touro (bezerro), e que o episódio envolvendo o bezerro de ouro no Velho Testamento estava associado ao culto de Baal. Por outro lado, Hadad era uma divindade acadiana associada ao clima e seu nome, literalmente, traduz-se como trovão. Em sua iconografia, ele é representado com os chifres de um touro e segura em suas mãos um raio, representação de seu poder sobre as chuvas e tempestades, portanto, provocador de inundações e destruições diversas. Seu culto foi popular nas regiões norte da Síria e da Babilônia. As divindades equivalentes a Hadad na Grécia e em Roma eram Zeus[56] e Júpiter. E então o Grimorium Verum nos diz: 

Beelzebuth às vezes aparece em formas monstruosas, como a forma de um bezerro monstruoso, ou um bode com uma longa cauda, e ainda mais frequentemente ele aparece na forma de uma mosca de um tamanho extremamente grande. Quando zangado, ele vomita chamas e uiva como um lobo.[57]

 

A forma iconográfica que Beelzebuth posteriormente assumiu na Quimbanda foi teriomorfa, i.e. bestial, envolvendo sempre a presença dos chifres bovinos associados a fertilidade e a força da terra. Esse imaginário mítico de Beelzebuth na Quimbanda se materializou na iconografia de Exu Beelzebuth, representado com a cabeça de um touro com chifres, muitas vezes associado equivocadamente com o Boi-Zebu (Bos taurus indicus), um touro grande e corpulento. O totem animal de Beelzebuth na Quimbanda é o touro, mas o bode também foi associado a ele. 

Seção 5: Beelzebuth é Chefe na Quimbanda 

Como vimos fartamente até aqui neste livro, a Quimbanda como a conhecemos hoje nasce da incursão diabólica que Beelzebuth e os outros espíritos do Grimorium Verum fizeram para dentro da Macumba carioca, associando-se aos Exus; e estes, a partir de então, efetivamente se tornaram diabos. 

A Macumba carioca já havia assimilado de outras práticas afro-religiosas brasileiras, como a Cabula e os Candomblés, seus espíritos. Em seguida associou-se também com o Espiritismo. No livro Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia, eu demonstrei o intenso processo de branqueamento que se iniciou na Macumba a partir das ideias espíritas, o que culminou na formação da Umbanda e da Quimbanda como tradições religiosas distintas. A Quimbanda começou indicar não apenas o trabalho de feiticeiros do mal que podiam fazer qualquer coisa por dinheiro, mas uma parte do ritual de Umbanda onde os exus atuariam contra os ataques mágicos feitos contra a casa e seus clientes.[58] 

É nesse contexto do branqueamento da Macumba, na década de 1950, que surge a síntese promovida por Aluízio Fontenelle: a Quimbanda se tornaria, doravante, a casa e o sistema de magia associados exclusivamente ao trabalho de atuação dos Exus e Pombagiras, uma armada de espíritos especializados na arte da guerra mágico-espiritual. 

Inicialmente os exus [...] passaram a ser associados às almas de suicidas e criminosos mortos, pessoas de natureza pervertida e prostitutas. Esses espíritos selvagens e perigosos deveriam aceitar a trabalhar para os Caboclos e Preto-Velhos, passando de «exus-pagãos» a «exus-batizados» que não mais serviriam para fazer o mal, mas apenas para praticar o bem, em troca de «luz». [...] Se tentarmos dar sentido às ideias de Fontanelle, parece que ele tenta aproximar as visões diabólicas [do Grimorium Verum] com o esquema evolutivo do kardecismo, colocando os «espíritos inferiores ou atrasados» que «compõem a casta dos maus elementos, ignorantes, sofredores, obsessores» sob o poder do Povo de Exu original. Os mortos maus são «forçados por uma lei de justiça» a habitar o reino das trevas, o lugar natural de «todas as falanges do mal sob o domínio e direção do Exu-Rei Lúcifer».[59]

 

Os autores dessa safra de intelectuais umbandistas como Fontenelle sistematizaram a Quimbanda como segue: se conectada a Umbanda, os Exus da Quimbanda estariam associados as práticas do bem, as limpezas e descarregos dos terreiros e dos médiuns, e a proteção contra ataques mágicos nas tronqueiras. Quando desassociados da Umbanda, os Exus da Quimbanda praticariam apenas o mal. Se conectados a Umbanda, os Exus eram servos dos Caboclos e Preto-Velhos,[60] forçados a trabalhar para o bem; mas se independentes, os Exus estariam associados apenas ao exercício do mal, como os próprios demônios da cultura judaico-cristã, aos auspícios da autoridade de Lúcifer, a esta alta associado ao próprio Diabo. Note que essa é a mesma mecânica tradicional de trabalho da goécia salomônica: os demônios são obrigados, polo poder e autoridade dos anjos, santos e nomes de Deus, a trabalhar em função das demandas do operador. Neste caso, nem sempre, ou quase nunca, para o bem. 

Com o desenvolvimento da Quimbanda a partir desse momento inicial, a ideia do Exu de Alta em Fontenelle se desenvolveu para o Exu Coroado. Se anteriormente fora da Umbanda Exu era pagão e quando nela, um batizado, no sistema da Quimbanda todos os Exus da Umbanda, Jurema, Candomblés etc., foram considerados pagãos, os Exus da porteira ou da tronqueira para fora. Somente àqueles Exus iniciados na Lei de Quimbanda são Exus Coroados, porque adquiriram o seu próprio reinado. 

Em sua síntese Fontenelle apresenta toda hierarquia demoníaca do Grimorium Verum como eixo central da teologia da Quimbanda. Os Governantes do Inferno no Grimorium Verum, Lúcifer, Beelzebuth e Ashtaroth, figuraram como a Trindade Infernal ou os Maiorais da Quimbanda, sob os quais estão todas as falanges de Exus-Diabos. Fontenelle apresenta Beelzebuth como: 

Beelzebuth – Segunda pessoa de Lúcifer, apresentando-se sobre formas extraordinárias, como por exemplo: na figura de um bezerro [touro] monstruoso; e às vezes como um bode de longa cauda. [... Ele é] um dos três poderes do Mal. Pelo fato de considerar-se superior a Deus, tendo pretendido elevar seu trono acima do Criador dos Mundos, Lúcifer atribuiu também à sua pessoa, três entidades nas mesmas modalidades que se conhecem na pessoa de Deus, e assim concebeu o Anjo decaído, a encarnação de sua personalidade: Lúcifer (Deus do Mal – Absoluto – O Rei das Trevas); Beelzebuth (Filho do Deus do Mal); Ashtaroth (O Espírito do Mal ou das Trevas).[61]

 

A iconografia de Beelzebuth na Quimbanda, assim como o sistema do culto, foi fruto de uma imbricada miscigenação cultural tendo como influência fundamental o imaginário europeu, muito mais que o africano. Como vimos, o Brasil recebeu via Europa, muito do conhecimento arcano das culturas mediterrâneas na Antiguidade. Falando sobre a imagem de gesso de Exu Beelzebuth, Tadeu Mourão diz: 

Esta imagem traduz uma trama cultural que aproxima mitos. Os elementos da iconografia que compõem essa escultura e sua emanação simbólica – que do demônio cristão se liga às deidades pagãs europeias que remetem, por sua vez, à função mítica de Èṣù orixá – o denotam fortemente.

Acredito que os nomes da mitologia judaico-cristã, como Belzebu e Lúcifer, incorporados pela umbanda em seus exus, não advêm apenas da presença do catolicismo, mas também, primordialmente, de outro viés: a feitiçaria popular portuguesa, que também se imbrica na umbanda. Práticas que evocam estas mesmas entidades em rituais de magia estão documentadas como confissões das feiticeiras à Santa Inquisição da Igreja Católica Ibérica. Uma bruxa lusitana do século XVI teria relatado um conjuro que fez a essas entidades a pedido de uma esposa aflita que desejava «amarrar» seu marido infiel para que este não a traísse mais. Nesse conjuro detectamos a presença desses demônios que auxiliavam as feiticeiras em seus intentos: «[...] eu te ligo André Fernandes e te ato o caralho e os colhões e todos os mandamentos e todos os conjuros com Barrabás e com Satanás e Barzabu, que tu não possas dormir com nenhuma mulher senão com sua mulher?».

O Exu Belzebu da umbanda pode, assim como Maria Padilha, ter surgido nesse culto, trazido pelos ritos mágicos dos portugueses feiticeiros que se utilizavam da evocação dessas entidades em seus trabalhos de magia. Nesses ritos, grande parte das vezes, os feiticeiros eram solicitados pela população para atenderem problemas ligados à sexualidade, à proteção e ao sucesso financeiro. Esses ritos são muito provavelmente heranças de práticas religiosas «pagãs» ancestrais, que se hibridizaram, na Europa, principalmente com o catolicismo popular. Entretanto, os entes evocados não praticavam necessariamente o que era julgado como mal. Ter ainda vivos na umbanda nomes como Lúcifer e Belzebu denota que há mais que uma simples demonização de Exu em jogo. Há também uma ligação entre as funções cosmológicas desses seres e aquelas dos demônios evocados pelos portugueses. Portanto, existe uma imbricada trama cultural de hibridações que ligam esta entidade, o Exu Belzebu, a diferentes tradições de cultos populares, todas elas livres das ortodoxias doutrinárias. Essas tradições, que aqui se encontraram, se identificaram, se atraíram e se mesclaram.[62]

 

Uma dessas tradições das quais fala Mourão, é a corrente mágica-viva da goécia do Grimorium Verum. Além do touro, outro animal associado a pujança genésica, a força vital e a fecundidade, e também outro totem de Beelzebuth, é o bode, animal sagrado a Afrodite e a Dionísio na Antiguidade. Tanto o touro como o bode, compartilham virtudes fundamentais com Èṣú òrìṣà, que por sua vez possui como totem de poder o opá-ogó, um cetro fálico. Por esse motivo Èṣú òrìṣà foi também associado a divindade romana Príapo, patrono da sexualidade associado ao deus Hermes/Mercúrio que, como vimos, também compartilha virtudes com Èṣú òrìṣà. Beelzebuth, dessa forma, foi associado também a tudo que envolve a sexualidade, a fertilidade e a fecundidade, a força e pujança sexual, ostentando em sua iconografia um fálico Caduceu de Mercúrio, que herdou de Baphomet. Falando da associação entre o Baphomet de Eliphas Levi e o Exu Beelzebuth, Mourão completa: 

Exu Belzebu na umbanda, portanto, é mais que um embranquecimento ou simples degeneração do Èṣù africano mestiçado e mais uma vez identificado à iconografia demonológica católica cristã. Essa escultura mostra, por meio da forma que conserva, a apropriação da gravura de Baphomet, e indica um imbricar de textos míticos, que remete a um aspecto pouco rememorado de Exu nos cultos afrodescendentes, mas que ainda se apresenta vibrante em algumas figurações da umbanda. O símbolo fálico, o bode, a dualidade complementar, todos elementos que transcendem o ente humanizado do Exu da umbanda, e que são trazidos à tona por uma ilustração ocidental europeia, representando um demônio místico. A imagem do ente esotérico de Levi não retira e nem deturpa, mas em certa medida devolve ao Exu brasileiro, por meio de suas formas e de toda emanação simbólica agregada a ela, os fundamentos cosmológicos de Èṣù orixá.[63]

 



[1] A palavra prostituta no Velho Testamento quase sempre se refere a uma irregularidade teológica, não tendo nada a ver com sexo ou infidelidade matrimonial. Jezabel, a esposa de Acabe, é associada as prostitutas no Velho Testamento porque ela introduziu em Israel a adoração de Baal. Veja 1 Reis 21.

[2] Você tem duas ferramentas extraordinárias para compreender o tema: sua inteligência e a capacidade de aprendizado e compreensão. Na cosmogonia e cosmologia do hermetismo tradicional alexandrino, isso são dádivas que te auxiliam a superar todas as coisas, inclusive o mal no mundo (veja Asclépio Latino, 16). Essas duas ferramentas te possibilitam a transcender o sectarismo para não verborrear sandices como apropriação cultural, que no contexto da religião e prática da magia, é de uma estupidez execrável.

[3] M. Belanger. Dicionário dos Demônios. Dark Side, 2022, pp. 118.

[4] David Crowhurst. Stellas Daemonium: The Order of the Daemons. Weiser Books, 2021, pp. 40.

[5] A palavra Baal, que se traduz como senhor, era utilizada para uma miríade de deidades tutelares, como Baal-Adir, que se traduz como senhor poderoso, e era a deidade tutelar da cidade fenícia de Biblos; Baal-Biq’h, que se traduz como senhor da planície, e era a deidade tutelar da cidade cujo nome foi inspirado no seu próprio, Balbeque, mais tarde conhecida como Heliópolis. Quando os hicsos, povo semita que invadiu o Delta do Nilo por volta de 1700 a.C., levaram o culto de Baal para o Egito, lá ele foi associado diretamente a Set. Baal-Hammon aparece como deidade tutelar da cidade Cartago em uma inscrição fenícia encontrada em outra cidade, Zincirli. Seu nome traduz-se como senhor dos altares de incenso, provavelmente, e foi associado pelos gregos ao ctônico Cronos e pelos romanos a Saturno. Já Baal-Karmelos era a deidade tutelar do Monte Carmelo, possuía templo e oráculo, e foi reverenciado pelo imperador romano Vespasiano (9-79 d.C.). Todos esses Baals se tornaram, com o posterior desenvolvimento da demonologia, nos Baalim do Inferno. Veja M. Belanger. Dicionário dos Demônios. Dark Side, 2022, pp. 102.

[6] Karel Van Der Toorn, Bob Becking and Pieter W. Van Der Horst. Dictionary of Deites and Demons in the Bible. Brill, 1999, pp. 154-5.

[7] Ibidem.

[8] Northrop Frye e Jay Macpherson. A Bíblia e os Mitos Clássicos: A Estrutura Mitológica da Cultura Ocidental. Sétimo Selo, 2023, pp. 24-5.

[9] M. Belanger. Dicionário dos Demônios. Dark Side, 2022, pp. 101. Tecnicamente os Baalim eram os espíritos dos locais de poder, i.e. da terra ou geografia mágica: rios, arvores, montanhas etc. e que posteriormente entraram para as listas demonológicas como demônios. Veja Capítulo 12. Canaã era uma sociedade politeísta e de cultura altamente pluralizada, com grande diversidade de ideias religiosas em intercâmbio umas com as outras, o que configurava uma multiplicidade de cultos espalhados pela região. Por causa disso, muita ênfase era dada aos cultos ancestrais familiares. Cada família possuía seu culto particular a um certo arranjo de divindades para apaziguar a ira de espíritos demoníacos. Veja André Daniel Reinke. Os Outros da Bíblia. Thomas Nelson Brasil, 2023, pp. 134-6.

[10] No imaginário simbólico do Ocidente e Oriente, as funções metafísicas dos gêneros (macho-fêmea) e a relação de polaridade contraposta que se estabelece entre eles, está no cerne de quase todos os sistemas religiosos. O Logos Teleios (Asclépio latino), uma das mais belas e inspiradas escrituras do hermetismo alexandrino, lemos (Verso 21): Tudo que é animado ou inanimado, já que é impossível que sejam inférteis todas as coisas que existem. Se removeres a fecundidade de tudo que existe, será impossível que existam para sempre. Afirmo que {a sensação e o crescimento são também próprios da natureza das coisas e que o mundo} contém crescimento em si e preserva tudo que deverá surgir. Pois todo sexo está pleno de fecundidade e a junção ou, de forma mais exata, a união de ambos é algo incompreensível. [...] Apreende isto em teu intelecto como algo mais verdadeiro e mais claro do que qualquer outra coisa: Deus, o mestre de toda a natureza, idealizou e garantiu a todas as coisas o mistério da procriação que leva à eternidade e no qual surge a maior afeição, prazer, felicidade, desejo e amor divino. Talvez fosse necessário que se explicasse quão grande é a força e a intensidade desse mistério, porém cada pessoa já o sabe se deixar se orientar pela contemplação e pela consciência interna. Se reparares no derradeiro instante de regozijo após a fricção, quando duas naturezas entregam seu sumo uma à outra e uma como que rouba o amor da outra parte, enterrando-o em si, então, finalmente, nesse instante, por meio do acasalamento, as mulheres recebem a potência dos homens e os homens se deixam exaurir com a letargia das mulheres. Portanto, o ato desse mistério, tão doce e vital, é realizado em segredo para que a divindade que surge em ambas as naturezas do acasalamento sexual não se sintam obrigadas a sentir qualquer vergonha. E no Da Natureza de Parmênides, um poema anterior a Platão, lemos (B12, 13, 17 e 18):

Pois as coroas mais estreitas enchem-se de fogo sem mistura

E as que vêm à noite depois destas, mas com elas lança-se uma parte de chama.

No meio delas está a divindade que tudo governa;

Pois em tudo comanda o parto doloroso e a mistura,

Impelindo a fêmea a unir-se ao macho, e ao contrário o macho à fêmea.

Primeiro que todos os deuses, concebeu Eros.

À direita os machos, à esquerda as fêmeas.

Quando a mulher e o homem juntos misturam as sementes de Vênus,

a força que se forma nas veias a partir de sangues diversos,

mantendo em equilíbrio, gera corpos bem formados.

se, contudo, misturados os sêmens, as forças se opõem,

e não fazem unidade, misturados no corpo, cruéis,

atormentam o sexo da criança com o duplo sêmen.

Nós nos debruçaremos na Parte III, ao discutirmos a Quimbanda no contexto do Ocultismo e esoterismo ocidental, sobre o simbolismo do hierogamos que está contido no Mistério sem Nome do Chefe Império Maioral na relação que se estabelece entre Beelzebuth e Ashtaroth.

[11] A prática do sacrifício de crianças era exclusiva dos fenícios, que eram os cananeus que viviam no litoral e diferente dos cananeus do interior, os fenícios gozaram de grandes cidades, documentação histórica e apurada expansão marítima comercial. Entre os fenícios havia dois tipos de sacrifício envolvendo crianças: os primogênitos e os molk. O sacrifício dos primogênitos era voluntário e as análises arqueológicas mostram que elas já chegavam mortas antes de serem sacrificadas no holocaustro. Os molk eram crianças sacrificadas em holocaustros em tempos de crise, como o cerco de uma guerra, ou para aliviar a pressão demográfica. Veja André Daniel Reinke. Os Outros da Bíblia. Thomas Nelson Brasil, 2023, pp. 139-40.

[12] Karel Van Der Toorn, Bob Becking and Pieter W. Van Der Horst. Dictionary of Deites and Demons in the Bible. Brill, 1999, pp. 155.

[13] Mircea Eliade: O Sagrado e o Profano: a Essência das Religiões. Martins Fontes, 2008, pp. 120-22. Veja também Joseph Campbell. Deusas: Os Mistérios do Divino Feminino. Palas Atena, 2013, pp. 48-54.

[14] Carrol Poke Runyon, M.A. Seasonal Rites of Baal and Astarte. AHS Publications, 1998, pp. 69.

[15] Northrop Frye e Jay Macpherson. A Bíblia e os Mitos Clássicos: A Estrutura Mitológica da Cultura Ocidental. Sétimo Selo, 2023, pp. 60-1.

[16] M. Belanger. Dicionário dos Demônios. Dark Side, 2022, pp. 101.

[17] Ibidem, pp. 102.

[18] David Frankfurter. Evil Incarnate: Rumors of Demonic Conspiracy and Satanic Abuse in History. Princeton and Oxford, 2006, pp. 33.

[19] O Evangelho de Marcos foi por muito tempo considerado posterior e até inferior aos evangelhos de Lucas e Mateus. Santo Agostinho chegou a acusar Marcos de abreviador de Mateus. Mas estudos recentes comprovaram que o Evangelho de Marcos é anterior aos de Lucas e Mateus, e que estes, além de posteriores, incorporaram material de outras fontes. Não se conhecem os verdadeiros autores dos evangelhos, e os nomes dos apóstolos e seus discípulos foram a eles atribuídos posteriormente para adquirirem credibilidade. Veja Humberto Maggi. O Diabo. Clube de Autores, 2022, pp. 67-8.

[20] E como vimos na Parte I, a distinção entre um morto sem descanso e um demônio também era muito tênue. O O goēs é um homem que acorda os mortos através da lamentação, um papel tipicamente feminino, mas também é associado por escritores antigos com a iniciação em cultos de mistério, protegendo os vivos da ira de fantasmas irritados através de encantamentos escritos e cantados. Graf define o goēs como um homem que combina cura, magia e a convocação da alma dos mortos. Robert Conner. Jesus the Sorcerer: Exorcist & Prophet of Apocalypse. Mandrake, 2006, pp. 100. Não demoraria muito para estabelecermos um campo semântico, que é uma nuvem de palavras recorrentes, nas quais o termo goês estava essencialmente entrelaçado: Heráclito (final do século VI a.C.), conforme supostamente citado por Clemente de Alexandria (século II d.C.), os associa com «aqueles que vagam à noite (nyktipolois): Magi (magois), bacantes (bakchois), mênades (lênais), iniciados (mystais)». A maioria das outras pessoas teria diminuído o tom de tal avaliação, relacionando-os também estreitamente com charlatães, bem como impostores e profanadores da religião oficial. Frater Archer. Goêtic Common Sense: An interlude for the inveterate chthonic sorcerer. PDF do autor, disponível na Theomagica, pp. 10.

[21] Citado em Robert Conner. Jesus the Sorcerer: Exorcist & Prophet of Apocalypse. Mandrake, 2006, pp. 123.

[22] Robert Conner. Jesus the Sorcerer: Exorcist & Prophet of Apocalypse. Mandrake, 2006, pp. 125.

[23] Valerie Flint. Demonizando a magia e a feitiçaria na Antiguidade Clássica: redefinições cristãs das religiões pagãs. Em Bruxaria e Magia na Europa: Grécia Antiga e Roma. Madras, 2004, pp. 258.

[24] A palavra (khárisma) surgiu na Grécia Antiga, por volta de 2.500 anos atrás. Descrevia um dom atribuído por graça divina, um tipo de vocação ou predestinação celestial, algo restrito a poucas pessoas. Contudo, a cronologia do conceito mostra como ele tem acompanhado a história do desenvolvimento das sociedades humanas, variando semanticamente de acordo com cada período e cultura e tornando-se vital para o aprimoramento das nossas habilidades sociais. Hoje, a palavra carisma descreve um fenômeno social muito mais amplo do que seu contexto original. Heno Ozi Cukier. A Inteligência do Carisma. Planeta, 2019, pp. 23-4.

[25] Humberto Maggi. O Diabo. Clube de Autores, 2022, pp. 68.

[26] Humberto Maggi. Thesaurus Magicus Vol. I. Clube de Autores, 2010, pp. 35.

[27] Veja Humberto Maggi. Opus Diaboli: Coletânea de Textos. 2024, pp. 154. Ensaio Padecer o destino da morte.

[28] Veja Rafael Resende Daher (trad.). O Verdadeiro Libelo dos Jesuítas. Via Sestra, 2021, pp. 7-27.

[29] A Igreja romana usurpou a linguagem metafísica do sacrifício e a ressignificou para sua adequação as novas premissas religiosas do cristianismo. Veja Robert J. Daly. Sacrifice in Pagan & Christian Antiquity. T&Tclark, 2019. Para uma discussão no contexto do paganismo, veja também Heidi Marx-Wolf. Spiritual Taxonomies and Ritual Authority. PENN, 2016.

[30] [.N.T.] i.e. destruir o trabalho sacerdotal de famílias aristocratas.

[31] [N.T.] assim como os sacerdotes estatais cobravam somas de dinheiro por seu trabalho sacerdotal, os feiticeiros da goécia, os errantes noturnos, manganeumatas das sombras, também cobravam somas em dinheiro por seus serviços mágicos. Segundo Platão, estes feiticeiros estavam interessados apenas no dinheiro, e não possuíam, de fato, linhagem sacerdotal aristocrata para executar o que propunham.

[32] Frater Archer. Goêtic Common Sense: An interlude for the inveterate chthonic sorcerer. PDF do autor, disponível na Theomagica, pp. 11-2.

[33] [N.T.] Aqui me refiro ao hermetismo alexandrino ou hermetismo tradicional. Seria técnico dizer que Jâmblico expõe, com a teurgia, o aspecto prático da filosofia do Corpus Hermeticum.

[34] Fernando Liguori. Daemonium Vol. I. Clube de Autores, 2019, pp. 577-582.

[35] Veja Humberto Maggi. Goetia: História & Prática. Clube de Autores, 2020, pp. 56.

[36] Esse tema foi completamente explorado em meu texto A Demonologia de Porfírio de Tiro & Jâmblico de Cálsis, a ser publicado na ontologia Kalunga.

[37] Porfírio de Tiro. Citado por Humberto Maggi. Goetia: História & Prática. Clube de Autores, 2020, pp. 42.

[38] Ibidem. O simbolismo tradicional do tridente de Hécate ou a iconografia de Hécate com três cabeças, não se referia originalmente as fases da Lua como supõe-se no esoterismo moderno. Na verdade, o tridente ou as três cabeças representavam o poder de Hécate sobre os éteres sublunares: os reinos ctoniano, telúrico e aéreo.

[39] Sarah Iles Johnston. Hekate Soteira. Scholar Press, 1990, pp. 29.

[40] Humberto Maggi. Goetia: História & Prática. Clube de Autores, 2020, pp. 47.

[41] Citado em Humberto Maggi. Goetia: História & Prática. Clube de Autores, 2020, pp. 56.

[42] Ibidem, pp. 58.

[43] David Crowhurst. Stellas Daemonium: The Order of the Daemons. Weiser Books, 2021, pp. 39.

[44] Humberto Maggi. Opus Diaboli. Clube de Autores, 2024, pp. 296.

[45] Enquanto, originalmente, o termo satanas, que significa «adversário» ou «oponente», poderia ser usado [para se referir a] qualquer demônio adversário e, portanto, também poderia ser usado no plural, na literatura apocalíptica e, particularmente, no Novo Testamento, o termo está focado em um satanas em particular, o «Satanás» — também chamado de Diabo. (De certa forma relacionada ao uso inicial de satanas, o inglês também permite o plural.) Christopher Partridge e Eric Christianson. The Lure of the Dark Side: Satan & Western Demonology in Popular Culture. Routledge, 2009, pp. 2.

[46] Do hebraico para o português: Como despencaste do céu, ó estrela da manhã, filho da aurora! Como foi derrubado por terra o que ditava sorte entre as nações! David Gorodovits e Jairo Fridlim. Tanah. Sefer, 2018, pp. 1117. Do grego para o português: Como o Trazedor da Aurora [Heōsphoros] caiu dos Céus, depois de ascender na manhã! Está abatido por terra, depois de exercer sua força sobre todas as Nações! Timothy Allen Barber. Septuaginta Vol. 2. Clube de Autores, 2021, pp. 1126. Esse versículo foi atribuído a Nabucodonosor, rei da Babilônia, cujo reinado chegou ao fim em 539 a.C., quando seu império foi dizimado por Ciro II da Pérsia. Essa passagem seria o comentário do profeta Isaías sobre essa derrota humilhante e vexatória. No contexto do Livro de Isaías 14, os israelitas estavam para ser resgatados do exílio na Babilônia e levados de volta para Jerusalém. Ao fim o insulto ao rei assírio acaba por ser as palavras do Senhor através do profeta.

[47] João de Antioquia (429-441 d.C.) diz que, segundo Justino Martir (100-165 d.C.), o Livro de Isaías, ao mesmo tempo que era uma obra dramática acerca da Queda do Assírio, também era um prelúdio da catástrofe do Diabo, a Tragédia de Satã. Em outras palavras, o relato da queda do rei assírio era uma metáfora para a própria queda de Lúcifer, ao que concorda Orígenes, que opta por compreender a passagem no seu contexto oculto, metafísico e teológico, ao invés da análise da derrocada concreta de Nabucodonosor. Aquilo que é dito em diferentes lugares, e em especial em Isaías, sobre Nabucodonosor, não pode ser atribuído a este indivíduo. Pois o homem Nabucodonosor nem «caiu dos Céus», nem era a «Estrela da Manhã», nem ele «se levanta de manhã sobre a Terra». Orígenes citado em Hery Ansgar Kelly. Satã uma Biografia. Editora Globo, 2008, pp. 232.

[48] Hery Ansgar Kelly. Satã uma Biografia. Editora Globo, 2008, pp. 230-6. Veja também Laurence Gardner. O Diabo Revelado. Madras, 2013, pp. 28-33.

[49] M. Belanger. Dicionário dos Demônios. Dark Side, 2022, pp. 280.

[50] Laurence Gardner. O Diabo Revelado. Madras, 2013, pp. 32-3.

[51] O Hygromanteia é um dos manuscritos mágicos mais importantes da tradição dos grimórios. É nele que, pela primeira vez, vemos as antigas práticas pagãs como sacrifícios e oferendas aos espíritos, organizadas e ajustadas a tradição dos grimórios. Seu conteúdo influenciou diretamente outros grimórios, como A Chave de Salomão, o Grimorium Verum, O Livro dos Segredos de Alberto Magno e outros. Ele contém uma detalhada lista de plantas e tabulações astrológicas que deveriam ser associadas diretamente ao exercício ritual. É o protótipo par excellence dos grimórios posteriores.

[52] O Livre des Esperitz começa seu catálogo com Lúcifer, Belzebuth e Satanás, passando para os Quatro Reis e depois um catálogo de espíritos. Isso agora é amplamente reconhecido como a estrutura implícita por trás do catálogo de Weyer [Pseudomonarchia Daemonum] e do Goécia [Ars Goetia], bem como explícita em outros grimórios relacionados da mesma família. – Jake Stratton-Kent. Pandemonium. Hadean Press, 2016, pp. 27.

[53] Humberto Maggi. Opus Diaboli. Clube de Autores, 2024, pp. 299.

[54] Le Livre des Espiritz, 2. Jake Stratton-Kent. Pandemonium. Hadean Press, 2016, pp. xv.

[55] Jake Stratton-Kent. The True Grimoire: Encyclopaedia Goetica, Vol. I. Scarlet Imprint, 2022, pp. 134-5.

[56] O culto de Zeus e seu epíteto ctônico, meilichios, relacionado com a morte pode ser melhor associado aqui. Foram encontradas diversas referências ao culto nas regiões de Argos e Atenas. O culto era oficiado por sacerdotisas, as hydroforai, que iriam a zona rural para limpar o templo com água sagrada da fonte ennneakrounos. Supostamente a participação das mulheres acontecia por causa da sua proximidade com a vida e a morte (menstruação, nascimento e o contato com os mortos). Partindo disso, percebemos que Zeus poderia assumir diversas prerrogativas relacionadas tanto com a vida como quanto à morte.

Vale a pena notar que Zeus Meilichios serve como uma conexão entre Zeus, o governante do céu, e Hades, o governante do submundo. Devido à sua natureza ctônica, Zeus Meilichios foi identificado como Zeus-Hades, embora ele também estivesse associado a Ploutos, a divindade da riqueza. Apesar de ser um deus do céu que governa o Monte Olimpo, o que é ostensivamente o reino celestial muito dos cultos locais de Zeus eram de natureza ctônica, pois são dedicados a um aspecto ctônico de Zeus. Além de Zeus Meilichios, havia Zeus Philios que também era descrito como serpente, mas era uma divindade muito mais amigável associada a banquetes. Havia também uma divindade chamada Zeus Eubouleus, que fazia parte de uma tríade ao lado de Deméter e Kore (Perséfone) na Ática e que poderia ter sido tratado como uma divindade local de Ploutos ou um semideus. No entanto, havia também uma divindade separada, ou mais provavelmente um semideus ou herói, chamado Eubouleus (identificado com Ploutos, também), que era o guardião dos porcos dos mistérios eleusinos e que presidia a agricultura, especificamente arando e o plantio de grãos. Estranhamente, Eubouleus também é listado como um epíteto de Hades, bem como Zeus. Outro aspecto ctônico de Zeus, o espírito oracular Zeus Trophonios. Trophonios era o nome de um filho mortal de Apolo que foi engolido pela terra e ressurgiu como uma divindade de uma caverna perto de Lebadeia, onde também ficou conhecido como Zeus Trophonios.

Havia também Zeus Chthonios, que era Zeus da Terra, que era adorado em Boeotia e Corínto. Da mesma forma, Zeus Katachthonious (Zeus do Submundo), era provavelmente um nome alternativo para Hades - para aqueles que ousavam não invocar seu nome real - indicativo do papel de Hades como governante do submundo em da mesma maneira que Zeus governa o céu e seu domínio completo sobre o submundo. De acordo com Timothy Gantz (1993, 126), Hades pode muito bem ter sido um alter ego sombrio de Zeus. De certa forma, o fato de que os gregos, para evitar realmente se aproximar de Hades, tinham que reconhecê-lo; identificando Hades como Zeus Katachtonious, que representava a morte de certa maneira, como a sombra da vida, como a sombra daquele grande trovão e do fogo celeste (como observou Heráclito) que guiava o cosmos por toda a eternidade. Dr. José Roberto de Paiva Gomes. Zeus Meilichius: Culto Olímpico ou Ctônico? 6º Seminário Fluminense de Pós-Graduação em História.

[57] Grimorium Verum. Citado em Humberto Maggi. Opus Diaboli. Clube de Autores, 2024, pp. 300.

[58] Humberto Maggi. Rainhas da Quimbanda. Via Sestra, 2020, pp. 75.

[59] Ibidem, pp. 75 e 82.

[60] Nos Candomblés, servos dos òrìà.

[61] Aluízio Fontenelle. Exu. Via Sestra, 2024, pp. 83 e 97.

[62] Tadeu Mourão. Encruzilhadas da Cultura: Imagens de Exu e Pombagira. Aeroplano, 2012, pp. 110-2.

[63] Ibidem, pp. 119.




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