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POMBAGIRA & O RESGATE DO FEMININO ANCESTRAL

Da Série: Quimbanda é Goécia Brasileira – Nº 3

 

Por Táta Nganga Kamuxinzela 

@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago 

 

O segredo da Quimbanda está debaixo de minha saia. – Pombagira Cigana das 7 Saias 

 

O que me levou a produzir esse texto foi um artigo de Maja Meurling chamado Invoking the Goetic Feminine (que traduzo livremente como: Invoque o Espírito Feminino da Goécia) disponível na Hadean Press. A autora questiona a marginalização do feminino nas listas de espíritos dos grimórios, na proposta de desmantelar o que ela chama de projeções patriarcais estranhas e prejudiciais contidas nessas listas de espíritos. Como venho demonstrando, a goécia como estilo de vida daemônico está diretamente conectada a fórmula mágica do espírito tutelar na forma de uma alma que desceu aos Infernos (catábase) e ascendeu (anábase) glorificada das profundezas do Submundo, e que muitas vezes é representada miticamente por um herói, como São Cipriano, Salomão ou Fausto. Na grande maioria das vezes, os heróis da cultura necromântica da goécia são homens, e com os quais as mulheres têm pouca identificação. E como é necessário um intenso trabalho devocional na fórmula mágica do espírito tutelar que vivifica a goécia como estilo de vida daemônico, para a maiorias das ocultistas gringas existem poucas heroínas de referência capazes de causar inspirações profundas e intensas nas mulheres, como os heróis causam aos homens. 

Então a autora oferece uma alternativa: o estabelecimento de uma relação mágica com Medeia. Se São Cipriano é a figura mítica masculina par excellence da goécia como tradição viva, Medeia é, por outro lado, a figura mítica feminina par excellenece da feitiçaria greco-romana. A autora diz em seu artigo: 

No que diz respeito ao trabalho com os mortos, uma figura que merece mais atenção prática é a da heroína mágica. [...] Mesmo sem grimórios atribuídos a ela, a neta de Hélios, sacerdotisa (e, segundo uma fonte [mitológica], filha) de Hécate, [Medeia] é uma magista arquetípica tanto quanto Salomão ou Cipriano. Para os praticantes que desejam um contrapeso a tais figuras, a invocação e/ou identificação com Medeia (ou uma figura comparável) como uma heroína mágica é certamente uma opção digna de exploração (na minha própria prática isto tem sido conseguido até agora principalmente substituindo os salmos por uma fórmula de consagração associada ao [Grimorium] Verum com passagens adequadas da Argonáutica).

 

Como vimos em meu texto As Raízes Míticas da Goécia, a fonte mágica da goécia como tradição viva é a pluralidade das formas, o feminino ancestral representado pela Mãe-Terra. É a Mãe-Terra, na sua condição feminina de reprodutora dos ciclos existenciais fenomênicos através de uma miríade de agentes mágicos universais (para usar uma linguagem adequada a Quimbanda), a própria natureza intrínseca da goécia como arte necromântica ancestral. Para alinhar-se a fonte da goécia é necessário alinhar-se a pluralidade das formas em sua essência, por meio de toda sabedoria que vem das profundezas da terra (geo-sophia). O mecanismo pelo qual isso é feito, no entanto, chama-se feitiçaria, a essência do culto da Quimbanda. Então Medeia, como a figura mítica par excellenece da feitiçaria e dos segredos das profundezas abissais do Submundo, é de fato, uma heroína adequada ao resgate do espírito ancestral feminino da goécia. Como falei no meu artigo, é através das biqueiras de poder que se chega à fonte. Medeia é uma biqueira de poder adequada para receber o poder vivificante da fonte. As ideias da autora estão em congruência, assim, com os apontamentos de meu texto. 

A autora concorda que nas inúmeras listas de espíritos derivadas de sistemas de magia a partir dos grimórios ou de manuais demonológicos, que contêm ampla gama de espíritos masculinos, acertadamente como ela diz, estão repletas de espíritos femininos, apresentados como masculinos, mas que são femininos de qualquer modo, e sua atuação segue a natureza de seu gênero, como é o caso de klepoth no Grimorium Verum. 

Na Quimbanda essa diaba é associada a Pombagira, que miticamente é amante de Exu Lúcifer. Seu nome derivou do hebraico qlipoth, cuja tradução é prostituta. O termo, além de estar associado diretamente a história de vida de muitas Pombagiras da Quimbanda, foi utilizado no Antigo Testamento para caracterizar as relações estabelecidas com deuses estranhos, quer dizer, de outras nações. Sua descrição no Grimorium Verum, embora limitada, revela nuances interessantes da natureza de seu gênero feminino: 

Klepoth pode dar 1000 voltas ao dançar com seus companheiros e os fará ouvir uma linda música, que acreditará ser real. Se desejar, de passagem ela sussurrará em seu ouvido as cartas de quem está jogando com você. Segundo outros: faz você ter todos os tipos de sonhos e visões; e outros ainda: conhece todas as artes de divinação, especialmente por cristal, cartas, espelho e dados.

 

Para quem está familiarizado com mitologemas de antigas culturas da Europa, África, Mediterrâneo, Oriente Médio e outras do extremo Oriente, reconhecerá várias deusas que facilmente se encaixariam nessa descrição, ou cujas algumas recessões míticas se enquadrariam de algum modo: Circe, Medeia, Afrodite, Lilith, Asherah, Astarte (que foi demonizada como Ashtaroth), Hécate, Morgana Le Fay, a òrìṣà Oṣun etc. Justamente pela natureza de seu gênero e a herança mítica feminina que evoca, que Klepoth foi associada a Pombagira. A divinação como processo oracular, a produção de sonhos, visões e a recepção de profecias etc., são virtudes femininas. 

E é interessante que Medeia compartilhe com Pombagira inúmeros aspectos mitológicos. No segundo volume do Daemonium eu demonstro como a Pombagira da Quimbanda herdou inúmeros aspectos de divindades femininas antigas de muitas culturas, principalmente as deusas citadas no parágrafo anterior. Uma dúvida que sempre chega a mim é a seguinte, que constitui o núcleo central da abordagem de estudo aqui: como é o culto de Hécate na Quimbanda? Essa mesma indagação chega de formas diversas, trocando apenas o nome da divindade: Lilith, Afrodite etc. Minha resposta sempre é essa: não existe culto de Lilith, Hécate e outras deusas, fora Ashtaroth como Maioral no escopo do culto. Sabe por que? Porque a Quimbanda não precisa, pois já tem Pombagira, a divindade de maior força e poder dentro da Quimbanda, e acho que muita gente não sabe disso. 

Diferente do perrengue das ocultistas gringas para encontrarem uma figura mítica feminina com as quais se identifiquem para acessar a fonte primordial feminina da goécia, nós, na goécia brasileira, temos a Pombagira. Se o leitor tiver um pouco de brio nesse momento, assim que finalizar esse texto buscará por mitologemas (núcleos centrais de uma mitologia) sobre Medeia, mas também Astarte, Inanna, Asherah e Lilith. Então constatará que as virtudes mágicas carregadas por essas deusas estão inseridas nas diversas linhas de trabalho das Pombagiras da Quimbanda. 

Um relato vivo de uma mulher [Medeia] fortalecida por sua exclusão da sociedade, viva com paixão e sofrendo com amor ferido.

A imagem mais forte de Medeia no mundo antigo era, sem dúvida, a da bruxa, a feiticeira que usava ervas, encantamentos e poderes mágicos inatos para atingir seus objetivos. [...] As fontes mais antigas, literárias e artísticas, mostraram-na como uma figura mágica perigosa. Seus poderes não são triviais – ela pode controlar as forças naturais e até mesmo reverter a ordem da vida e da morte, rejuvenescendo o antigo.[1]

 

O leitor se lembrará de Pombagira na citação acima. David St. Clair, um jornalista americano que fez pesquisas etnográficas no Brasil por vota das décadas de 1960-70, e que apresentou ao mundo relatos jornalísticos da feitiçaria brasileira em primeira mão, começa seu livro Drum & Candle: First-Hand Experiences and Accounts of Brazilian Voodoo and Spiritism (1971), que é fenomenal a partir do espírito daquela época, assim: O Brasil é uma terra mística, do desconhecido, do improvável, do inacreditável. Eu vi isso assim que cheguei. É verdade! Porque o Brasil possui uma cultura mágico-religiosa que, derivada de uma intensa miscigenação pancultural, é distinta da maioria dos sistemas mágicos modernos da magia cerimonial. 

Os praticantes de magia cerimonial costumam ser preconceituosos com a cabalá crioula, i.e. a sabedoria mágica africana derivada da diáspora nas américas. Para esses ocultistas, tudo que deriva da cabalá crioula é preconceituosamente e pejorativamente taxado como baixa magia. Mas o que eu e muitos ocultistas como Jake Stratton-Kent, Frater Archer, Aaron Leitch e outros, conectados a nova síntese da magia, descobrimos é que a corrente mágica da goécia afro-diaspórica nas américas não é somente muito superior em resultado taumatúrgico do que os diversos sistemas de magia cerimonial que perderam sua seiva mágica viva na modernidade, mas que também é capaz de revitalizar todos esses sistemas caducados de magia cerimonial. É isso que consiste essa nova síntese da magia. 

Ao cultuar Pombagira, as kimbandas conectam-se e resgatam o feminino ancestral. Pombagira está diretamente conectada, na Quimbanda, aos mistérios do feminino ancestral. Cultuar Pombagira é cultuar Hécate, Astarte, Lilith e tantas outras deusas negras do Mundo Antigo, só que em uma divindade só. 

Falar isso para muitas ocultistas, possuídas em suas mentes por esse servidor preconceituoso acerca das tradições de cabalá crioula, não faz sentido algum. Bom, neste caso não podemos fazer nada realmente, além de lançar uma pulga atrás da orelha. E para as outras, aquelas interessadas nos círculos de feminino sagrado do movimento nova era, tão secos e sem seiva mágica viva como os sistemas modernos de magia cerimonial, a Quimbanda, por meio de Pombagira, oferece um verdadeiro e genuíno resgate do feminino ancestral visceral e diabólico: o poder da Terra e das profundezas do Submundo. 

Isso é goécia brasileira!



[1] Emma Griffiths. Citada por Humberto Maggi. Rainhas da Quimbanda. Via Sestra, 2020, pp. 18-9.




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