Da
Série: Quimbanda é Goécia Brasileira – Nº 2
Por Táta Nganga Kamuxinzela
@tatakamuxinzela
| @covadecipriano | @quimbandanago
Ela era a grande deusa, a
amante a quem os homens deviam obediência absoluta, uma senhora vingativa que
poderia destruir, e destruiu, aqueles que estavam no poder. [...] A noção de
uma divindade materna que era uma figura nutridora, reconfortante e gentil
parece distante da Deusa Mãe da antiga sociedade mediterrânea.[1]
Grande deusa, deusa Cibele, deusa e senhora de Dindymus, que toda a sua insanidade, Senhora, esteja longe de minha casa. Leve os outros ao frenesi, leve os outros à loucura.[2]
Para compreendermos o tema da Quimbanda como goécia brasileira, devemos nos debruçar sobre os primórdios da goēteia em um período onde a Mãe Terra era a genetrix do goēs. Como vimos neste capítulo, a primeira menção feita a goécia foi mítica, realizada por Apolônio de Rodes entre os Sécs. VII e V a.C. Nessa seção nós vamos retornar as entranhas desse mito para entendermos o trabalho primitivo do goēs, comparando ao trabalho moderno dos Gangas na Quimbanda. Para tal precisamos, primeiro, falar da Mãe Terra.
A goécia é um culto ctoniano. Essa palavra deriva do grego khthon, que significa terra. Adicionando o sufixo -ic, como em ctoniano, o termo significa qualquer coisa que está na terra ou que vem das entranhas da terra. Para os gregos antigos, portanto, o reino ctoniano estava conectado diretamente a terra e seus terríveis mistérios, fundamentalmente a experiência da vida e da morte. Os mistérios da terra, por outro lado, eram considerados femininos. O próprio entendimento do feminino encerrava mistérios complexos, no mínimo muito curiosos, porque a mulher, representante viva do feminino, era vista como estranha. O sangramento do catamênio por dias a fio e a capacidade de se multiplicar, de se dividir em dois trazendo uma alma de algum lugar desconhecido para dentro da legião dos vivos, era de uma estranheza mítica absurda, ao ponto de ser a mulher ou o feminino, objeto de culto, veneração e deificação. Por este motivo o reino ctoniano também era o reino do estranho, do desconhecido.
A emoção que se sente ao
ouvi-las [as palavras de um poema hindu] decorre sobretudo de que elas nos
revelam, com um frescor e uma espontaneidade incomparáveis, a imagem primordial
da Terra-Mãe. Encontra-se essa imagem em todas as partes do mundo, sob inúmeras
formas e variantes. É a Terra Mater ou a Tellus Mater, bem
conhecida das religiões mediterrâneas, que dá nascimento a todos os seres. É a
«terra que cantarei» que se lê no hino homérico À Terra, «mãe universal
de sólidas bases, avó venerável que nutre em seu solo tudo que existe... É a ti
que pertence o dar a vida aos mortais, bem como o toma-la de volta...» E nas Coéforas
Ésquilo glorifica a Terra, que «dá luz a todos os seres, nutre-os e depois
recebe deles de novo o germe fecundo».
[...] A
crença de que os homens foram paridos pela Terra espalhou-se universalmente. Em
várias línguas o homem é designado como aquele que «nasceu da terra». Crê-se
que as crianças «vêm» do fundo da terra, das cavernas, das grutas, das fendas,
mas também dos mares, das fontes, dos rios. Sob a forma de lenda, superstição
ou simplesmente metáfora, crenças similares sobrevivem na Europa.
[...] Essa
experiência fundamental – de que a mãe humana é apenas a representante da
Grande Mãe telúrica – deu lugar a inúmeros costumes. Lembremos, por exemplo, o
parto no chão (a bumi positio), ritual que se encontra, pelo menos em
parte, em todos os lados do mundo. [...] Certas estátuas das deusas do
nascimento (Eileithya, Damia, Auxeia) representam-nas de joelhos, exatamente na
mesma posição da mulher que dá à luz no solo. Em textos demóticos egípcios, a
expressão «sentar-se no chão» significava «parir». É fácil compreender o
sentido religioso desse costume: a geração e o parto são versões
microcósmicas de um ato exemplar realizado pela terra; a mãe humana não faz
mais que imitar e repetir esse ato primordial de aparição da vida no seio da
Terra. Por isso a mãe humana deve colocar-se em contato direto com a Grande
Mãe, a fim de se deixar guiar por ela na realização do grande mistério que é o
nascimento de uma vida, para receber dela as energias benéficas e encontrar aí
a proteção maternal.[3]
Do mito primitivo da Deusa Mãe nasceram inúmeros outros mitos de deusas que compartilham dos poderes da fonte, mas essencialmente não são a fonte. É preciso esclarecer isso porque Artêmis, Hécate, Perséfone etc. são divindades femininas que compartilham de características e virtudes da Mãe-Fonte, mas não devem ser confundidas com ela, como vemos autores fazendo nas recessões modernas e arquetípicas dos mitos. Para acessar o núcleo da goécia, é necessário acessar a fonte do poder da goécia, quem vem das entranhas ancestrais da terra, um poder essencialmente primitivo e atávico. No intricado panteão dos deuses gregos, a Deusa-Fonte de todos os deuses posteriores, incluindo os Titãs e o próprio Zeus, disfarçou-se de Gaia, a Mãe Terra.
Imagine dessa forma: a Deusa-Fonte é um grande manancial de poder, quase que inacessível as capacidades humanas. Dessa fonte começaram a nascer afluentes de força e esses, por sua vez, foram mais acessíveis as capacidades humanas. São as diversas divindades que nasceram da Deusa-Fonte. Esses afluentes são as biqueiras por onde o poder da fonte é administrado aos homens, em maior ou menor quantidade, dependendo da biqueira, i.e. da divindade reverenciada. Então quando reverenciamos a biqueira, os diversos deuses derivados da fonte, acessamos parte do poder da Deusa-Fonte, não sua força total. Mas goécia se trata de acessar a totalidade do poder da Deusa-Fonte e, para tal, o goēs precisa se tornar ele mesmo uma biqueira dessa fonte, através da deificação de sua alma. Ao invés de operar com as formas divinas derivadas da fonte, que mediam seu poder visceral atávico, o goēs se expõe a totalidade dessa força ele mesmo, como uma deidade ctoniana.
Para que o poder dessa Mãe-Fonte pudesse começar a ser inferido, mesmo que com lampejos apenas, Frater Archer propôs uma reflexão:
[...] Pense em uma
caverna. Desde tempos imemoriais, os animais vêm aqui para dar à luz. Assim como
morrer. A caverna faz parte de uma montanha. E uma montanha é uma coisa
misteriosa, pois não tem começo nem fim. Seu pico se estende acima da
superfície da terra e toca o céu; e ainda assim seu ventre invisível forma a
profundidade do reino ctônico e se estende até o submundo.
Quando
entramos em uma montanha, entramos em um mundo que não conhece mais o céu. Em
vez disso, a montanha lembra o mundo no seu estado infantil, muito antes da
separação do céu. Um mundo sem direção, sem alto ou baixo, embalsamado na
escuridão. Se ousarmos descer fundo o suficiente, é isso que ainda vivenciamos:
o reino ctônico nos rouba qualquer senso de direção. Na sua escuridão
claustrofóbica, qualquer sentido de direção, de dia ou de noite, de viver ou de
morrer, desaparece como um eco distante. Não há gravidade nem mesmo nos
profundos lagos salgados muito abaixo da superfície da Terra. Agora voltamos ao
ventre da mãe. Todas as direções convergem em uma, sem futuro nem passado, sem
avanço nem retrocesso. Chegamos ao centro de toda a vida, onde a morte e o
nascimento coincidem. Este é o coração do submundo.
[...] Pense
nesta profunda caverna subterrânea na montanha como um ser consciente. Um
espírito tão antigo e eterno que ainda lembra a origem da vida. A vida muito
antes da primeira garra deixar um rastro na areia fofa. Pense nesta caverna na
montanha como uma mulher. Uma mulher hipnotizante. Uma bruxa em um momento e
uma noiva no outro. O espalhar exuberantemente as sementes da vida em um
instante e envenená-las todas no próximo. Pense nesta mulher não como sendo
uma, mas como muitas; e ainda assim todos esses muitos são um só em seu próprio
útero negro novamente. Pense nesta mulher como a eterna contradição. E, no
entanto, o mais importante, acima de tudo, é algo que você nunca esquecerá:
pense nesta mãe como aquela a quem você nunca poderá se opor.[4]
As origens da goécia estão inexoravelmente conectadas ao mito da Grande Mãe Terra. Como vimos anteriormente, os primeiros goēs capturados pela literatura eram daimones, criaturas míticas híbridas (metade barro, metade seres divinos) que viviam dentro e eram servos do Grande Espírito da Montanha, Adrasteia, nome grego que se traduz como inescapável. Esse Grande Espírito da Montanha foi, em recessões míticas posteriores, comparado a uma ninfa da montanha, mas sua designação mais corrente era comparada a magna mater dos gregos, a deusa Reia, também chamada de mãe do monte Idaia. Lynn E. Roller[5] conseguiu estabelecer uma conexão íntima entre Adrasteia e a deusa frígia Matar, a mãe das montanhas e florestas, que mais tarde deu nascimento ao mito da deusa Cibele. E é interessante que o nome cibele originalmente não era um substantivo, mas um adjetivo que qualificava o espírito que morava na montanha.
Os primeiros goēs como apresentados por Apolônio de Rodes entre os Sécs. VII e V a.C., eram daimones machos nascidos no interior da Grande Montanha, filhos da Mãe Terra. Eles foram descritos como criaturas orgulhosas que trabalhavam em prol das realizações do reino ctoniano, personificados pela poderosa e inescapável Adrasteia. Como vimos, o poder da Grande Mãe Fonte é inacessível aos homens e por isso, dela derivaram biqueiras de poder, deuses que o administram aos mortais. É exatamente isso que os daimones filhos da Montanha Deusa faziam no mito: serviam como uma interface de comunicação entre os homens e o poder do reino ctoniano, o poder do mundo dos mortos.
Uma associação com os mortos também informa o
poder ritual dos daimones em magia e mistérios. Johnston observou que os
mistérios gregos dependiam caracteristicamente da negociação bem-sucedida da
fronteira entre os vivos e os mortos; o daimon, como o espírito
divinizado dos mortos, oferecia um mediador ideal.[6]
Parece que goōs
e a goēteia englobavam as mesmas qualidades parcialmente contraditórias, como psuchagōgia:
ambos assentavam e despertavam os mortos.[7]
Os goēs eram mantenedores da fronteira que dividia o reino dos mortos (ou mundo espiritual) do reino dos vivos e assim, eram as próprias forças através das quais os homens eram capazes de cruzar esse limiar para se comunicarem com os poderes do outro lado ou do desconhecido mundo dos mortos. Os primeiros goēs, os dáctilos,[8] não só representavam o portal de acesso, mas também a própria chave que abria o portal e eram guardiões do mundo ctônico.
Embora eles fossem
literalmente o ferro (Kelmis), a bigorna (Akmon) e o martelo (Damnameneus),
ainda eram as forças da grande mãe que dirigiam todos os aspectos do seu
trabalho. Foi a mãe quem os fez dançar para manter a terra fértil, a mãe que os
orientou a derrubar certas estruturas de criação e a mãe que os instruiu a
forjar novas formas de emergência.
A verdade é
tão simples quanto dura: quando confrontados com a grande mãe, todos os homens
se transformam em meninos, e todos os heróis, em filhos. [...] A grande mãe da
montanha é a inescapável. Na sua forma bruta e sem forma, ela é a
essência da destruição, bem como a força por trás de todas as formas de
criação. Os goêtes originais trabalharam seu ofício e feitiçaria através
de seu empoderamento, alavancando sua posição como moradores no limiar entre o
humano e o divino.[9]
Na cosmovisão da Quimbanda o mito da Mãe-Terra se repete, em nova roupagem cultural, adaptado ao culto do Chefe Império Maioral, o Diabo. Os goēs primordiais sendo daimones, almas divinizadas pelo poder do Submundo, da Mãe-Terra, não eram diferentes dos Gangas na Quimbanda, almas divinizadas no reinado do Chefe Império Maioral, o Diabo, que é o Espírito da Natureza, a própria Terra-Fonte que com seu poder dá nascimento aos Gangas. Há um ditado que diz: o Diabo dá e o Diabo toma, porque essa é a natureza cíclica de todas as coisas na Terra, que nascem e morrem. E essa é a própria natureza do mal em muitas culturas antigas, a mudança de um estado, a vida, para outro, a morte, e o sofrimento dela decorrente. Por isso se diz que a Quimbanda é da natureza do mal, porque está diretamente associada aos ciclos de mudança (morte) na Natureza, na Terra. A magia negra é assim chamada porque seu agente é a própria morte. Humberto Maggi diz: No entendimento de Fontenelle, entretanto, «fazer o mal» por si, a soldo ou movido por sentimentos como a inveja, cobiça, vingança etc. é o que caracteriza em essência a Quimbanda.[10] O mal na Quimbanda, como veremos na Parte II, trata-se do trabalho feito, o envio da demanda por qualquer motivo justificado pela natureza da pluralidade das formas (inveja, cobiça, ciúme etc.), porque um trabalho de separação amorosa irá matar a relação estabelecida pelo casal; de igual modo, um trabalho de amarração amorosa irá matar o livre arbítrio de uma ou mais pessoas em prol de uma união. Então os trabalhos de magia da Quimbanda são negros, no sentido que estão diretamente associados a formula mágico-ctoniana da morte, e são, portanto, da natureza do mal.
Em muitas culturas da Antiguidade, o Mundo, a Terra, foi considerada divina e criadora, daí o nascimento do mito da Grande Mãe-Terra, reverenciada como uma divindade que cria a partir de suas entranhas, fendas, cavernas ou túmulos. De igual modo, o Chefe Império Maioral, que é a Terra ou o Espírito da Natureza, é reverenciado como uma divindade criadora.[11] Maioral é o Deus da Quimbanda, no mesmo sentido em que no antigo mito da Deusa-Mãe a Terra é criadora.
Em algumas religiões
acredita-se que a Terra-Mãe é capaz de conceber sozinha, sem o auxílio de um
companheiro. Encontra-se ainda os traços dessas ideias nos mitos de partenogênese
das deusas mediterrâneas. [...] Outras deusas gregas também geraram sem a ajuda
dos deuses. É uma expressão mítica da auto-suficiência e da fecundidade da
Terra-Mãe. A tais concepções míticas correspondem as crenças relativas à
fecundidade espontânea da mulher e aos seus poderes mágico-religiosos ocultos.[12]
A Iniciação catabática na Quimbanda propõe que o kimbanda
consiga emergir do Submundo como um Ganga do culto, na intenção de se tornar
ele mesmo um dáctilo guardião e mantenedor do poder ctônico do Submundo,
um agente mágico universal no Corpo do Chefe Império Maioral, o Diabo.
[1] Lynn E. Roller. In
Search of God the Mother: The Cult of Anatolian Cybele. University of
California Press, 1999, pp. 1.
[2] Crátulo. Citado em Frater
Archer & José Gabriel Alegría Sabogal. Clavis Goêtica: Keys to Chthonic
Sorcery. Hadean Press, 2021, pp. 25.
[3] Mircea Eliade. O
Sagrado e o Profano: A essência das religiões. Martins Fontes, 2018, pp.
117-9.
[4] Frater Archer & José
Gabriel Alegría Sabogal. Clavis Goêtica: Keys to Chthonic Sorcery.
Hadean Press, 2021, pp. 27-8.
[5] Lynn E. Roller. In
Search of God the Mother: The Cult of Anatolian Cybele. University of
California Press, 1999.
[6] Blakely, citado em Frater
Archer & José Gabriel Alegría Sabogal. Clavis Goêtica: Keys to Chthonic
Sorcery. Hadean Press, 2021, pp. 30.
[7] Daniel Ogden, citado em
Frater Archer & José Gabriel Alegría Sabogal. Clavis Goêtica: Keys to
Chthonic Sorcery. Hadean Press, 2021, pp. 30.
[8] Os dáctilos idaianos
eram daimones, uma classe de espíritos míticos, bem como seres humanos
antigos que outrora se acreditava terem caminhado pela Terra. Se aplicado a uma
certa categoria de daimones, como os dáctilos idaianos, o termo descreve
ao mesmo tempo uma antiga tribo histórica e também uma classe de espíritos. O
termo daimon foi utilizado na literatura pela primeira vez para se
referir as almas dos mortos por Hesíodo, em seu poema O Trabalho e os Dias.
Nele Hesíodo conscientemente evita a associação entre o termo daimon e
os deuses, conectando-o diretamente a alma dos homens mortos da Idade do Ouro.
Mas a função do daimon como doador ou distribuidor de riquezas permanece.
Veja Humberto Maggi. Opus Diaboli. Clube de Autores, 2024, pp. 35.
[9] Frater Archer & José
Gabriel Alegría Sabogal. Clavis Goêtica: Keys to Chthonic Sorcery.
Hadean Press, 2021, pp. 34-5.
[10] Humberto Maggi. O Diabo.
Clube de Autores, 2022, pp. 196.
[11] O mito da Deusa-Terra criadora
constitui apenas uma parte do Mistério Sem Nome representado pelo Chefe
Império Maioral, o Diabo. Veja Parte II.
[12] Mircea Eliade. O
Sagrado e o Profano: A essência das religiões. Martins Fontes, 2018, pp. 121.