Da
Série: Quimbanda é Goécia Brasileira – Nº 1
Por Táta Nganga Kamuxinzela
@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago
No dia 2 de novembro de 2019 eu publiquei um artigo no antigo site Filosofia Oculta que se chamava Os Poderosos Mortos: Exus & Pombagiras nas Tradições Mágico-Espirituais do Mundo. No texto, pela primeira vez no Brasil, o Exu-Diabo da cultura da Macumba foi designado como alma deificada, i.e. glorificada, que conquistou sua apoteose no mundo dos mortos. Posteriormente esse artigo foi publicado na Revista Nganga e depois apareceu como um capítulo do segundo volume do Daemonium.
O texto em questão causou consternações, porque além de apresentar Exu como uma alma deificada, também lançou luz no caminho do kimbanda no pós-morte: tornar-se um Exu e conquistar seu Reinado no Inferno. Daí que grande parte dos templos de Quimbanda têm a designação técnica de reinado por causa dessa crença basilar, mas completamente desconhecida por grande parte dos sacerdotes e representantes de cultos afro-brasileiros. Até hoje esse texto causa reverberações indigestas nos leitores, que geralmente o leem com os olhos dos dogmas do espiritismo ou das invencionices nova era da Sociedade Teosófica. E nas manifestações desses leitores observei muitos candomblecistas, pasmem, levantando críticas com argumentações espíritas. É incrível como o espiritismo conseguiu apagar a cosmovisão tradicional de muitas casas de àṣẹ. Mas não da Quimbanda. E é para estes consternados que faço esses breves apontamentos.
No material que disponibilizamos na Revista Nganga No. 10, o leitor pode familiarizar-se com a ideia escatológica de jornada ao Submundo, a catábase. E quando falamos de catábase nos mitos do Mundo Antigo, falamos das raízes primordiais da goécia no xamanismo grego: um estado de emergência espiritual e conexão extática com os espíritos. Então antes de ser considerada uma prática-ritual, goécia representava um estilo de vida daemônico e conexão com o Sagrado. Era uma visão encantada de Mundo. Nesta mesma edição o leitor também teve a oportunidade de ser esclarecido sobre o tema da Quimbanda ser a goécia tradicional brasileira.
A partir daí, a Quimbanda como goécia, um genuíno culto ctônico vivo no Brasil, opera por meio de uma catábase, que ocorre no momento do pacto demoníaco com o Exu-Diabo. A iniciação na Quimbanda é a Entrada no Hades, a abertura dos Portões do Inferno para alma que se lança a jornada catabática nos Reinos da Quimbanda. Mas assim como no Mundo Antigo a Casa de Hades não estava aberta a qualquer alma, o Reinado do Chefe Império Maioral também não está. Passar pelos Portões do Inferno na iniciação não garante a anábase, a glorificação da alma no Hades, o tornar-se um Rei no Inferno. Quando Odisseu encontrou-se com a alma de Aquiles, ele lhe disse: Pois antigamente, quando você estava vivo, nós, argivos, o honramos mesmo como aos deuses, e agora que você está aqui, você governa poderosamente entre os mortos. (Homero. Odisseia, 11.470-5.)
Como vimos na Revista Nganga No. 10, no Mundo Antigo havia algo pelo qual o homem temia mais que a própria morte: não passar pelos ritos fúnebres que lhe conduziriam com segurança para dentro da Casa de Hades, porque a grande maioria das almas não conseguia acesso, acabando por se tornarem almas sem descanso. No período clássico e antes, o homem acreditava que caso não houvesse uma jazida e não fossem realizados os ritos adequados, a alma não seria admitida ao Hades, perambulando perdida numa área limiar entre o Hades e o mundo dos vivos. Essa, portanto, era uma preocupação escatológica fundamental. Mas no fim da Antiguidade as coisas pioraram, porque se já não bastasse a alma vagar perdida fora do Hades, agora ela podia ser convocada e escravizada pelo goēs.
De igual modo na Quimbanda, o ritual que coroa a glorificação da alma nos Reinos do Chefe Império Maioral, o Diabo, a anábase, é o aṣéṣé, i.e. o rito fúnebre realizado por um táta ou uma mameto de Quimbanda em prol do kimbanda falecido. O processo de deificação da alma na Quimbanda, portanto, começa na iniciação (catábase) e termina no rito fúnebre (anábase), quando a alma é Glorificada no Inferno. Na metalinguagem da cosmovisão banto, a iniciação representa o momento em que o kimbanda mergulha na kalunga adentrando em mpemba, e no seu aṣéṣé ele renasce (musoni) em mpemba.
Aqueles kimbandas que não completam o curso da iniciação catabática não são Glorificados no Inferno, tornando-se kiumbas. Eles são equivalentes aos mortos sem descanso dos gregos, mas com um agravante: têm conhecimento e poder de magia. É isso que os distingue de outro égún, seja na qualidade de morto sem descanso ou não. Desde os mitos pré-homéricos existe a preocupação escatólogica da manutenção das habilidades psíquicas no pós-vida. Na Ilíada e na Odisseia inúmeros mortos são apresentados sem habilidades psíquicas, como os inúmeros égún que se apresentam nas sessões espíritas ou nos toques de casas de àṣẹ sem memória ou cognição lógica. Porque os danos que a morte causa ao corpo físico são transferidos diretamente a alma do morto: na medida em que o corpo do morto se deteriora no tempo, de igual modo sua alma perde coesão e se desfragmenta, o que compromete suas funções.
As almas que conquistaram sua Glorificação no Inferno, por outro lado, estão livres desse mal, porque a sua deificação permite a manutenção de todas as partes da alma: emoções, memórias, cognição etc. É por isso que para a Quimbanda aquela ideia umbandista de exus-involuídos é completamente non sense. Trata-se de uma inversão escatológica baseada exclusivamente nas ideias evolucionistas/cientificistas que se espalharam como tiririca no fim do Séc. XIX. Na Odisseia, quando Circe instrui Odisseu na jornada catabática que terá de empreender, ela apresenta o defunto-vidente Tirésias como um dos poucos mortos com total capacidade cognitiva: Filho de Laertes, nascido de Zeus, Odisseu de muitos artifícios, não fique mais em minha casa contra a sua vontade; mas você deve primeiro completar outra jornada e chegar à casa de Hades e da terrível Perséfone, para buscar a divinação do espírito do tebano Tirésias, o vidente cego cuja mente permanece firme. Para ele, mesmo na morte, Perséfone concedeu razão, para que somente ele devesse ter entendimento, mas os outros esvoaçam como sombras. (Homero. Odisseia, 11.485-494.)
É somente as almas deificadas que mantêm a integridade total da consciência. É preciso desenhar porque sonâmbulos perguntarão: é só as almas deificadas, e as outras? As outras não. Um termo que tem sido utilizado para esses égún que se apresentam com falta de capacidade cognitiva é larva astral. O termo deriva da palavra latina larvae e designa criaturas espirituais denominadas lêmures, fantasmas de almas de mortos inquietos e malevolentes na Roma Imperial. Trata-se de uma herança etrusca do culto aos lares, espíritos protetores/tutelares ancestrais das famílias. Os lêmures eram vistos na Roma Imperial como os espíritos de homens perversos, que vagavam particularmente à noite, atormentando os vivos, assombrando casas e trazendo maus presságios e infortúnios. A palavra larvatus significou o indivíduo enfeitiçado por meio de magia maléfica empregando esse tipo de espírito, como uma assombração induzida.
A Quimbanda como venho demonstrando é goécia
brasileira. Um dos motivos pelos quais essa atribuição é feita, em
detrimento daqueles que esbocei na Revista Nganga No. 10, é que a
Quimbanda mantém as mesmas crenças escatológicas do homem do Mundo Antigo. É
por causa disso que, ao estudarmos a necromancia grega, inferimos muitos
paralelos com a necromancia tradicional brasileira.