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MAGIA VS MISTICISMO OU QUIMBANDA VS THELEMA

20 DE Março de 2024 – Temporada Thelêmica – Tav – O Universo 

 

Por Táta Nganga Kamuxinzela

@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago

 

Quando comecei a idealizar essa série de volumes, Daemonium, eu estava no meio de um projeto que se chamou Curso de Filosofia Oculta, um seminário on-line permanente sobre magia na Antiguidade, Idade Média e Modernidade, cujas pesquisas me levaram aos meandros profundos da gnōsis, do hermetismo alexandrino e do neoplatonismo teúrgico de Jâmblico (245-325 d.C.).[1] Todo o primeiro volume do Daemonium explora a magia por uma perspectiva inspirada no trabalho deste filósofo teúrgo. E minhas pesquisas anteriores acerca da gênese da ideia de Sagrado Anjo Guardião em thelema[2] me levaram a uma imersão na fórmula mágica universal do espírito tutelar e o seu papel como intermediário entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos (ou dos espíritos), bem como a sua função deífica na apoteose da alma, como menciona o Logos Teleios: 

Do mesmo modo que o Senhor e Pai (ou, para lhe dar o nome mais elevado, Deus) é o Criador dos deuses celestes, o ser humano é criador dos deuses que estão nos templos e que se alegram com a proximidade com os seres humanos. Não apenas a humanidade é glorificada, como também ela glorifica; não apenas avança em direção a Deus, como também fortalece os deuses.[3]

 

Como demonstrei no livro Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia, essa passagem trata dos deuses terrestres, quer dizer, os deuses assentados em zonas de poder especiais, como estatuetas, pedras ou vasos no hermetismo alexandrino. São terrestres porque possuem corpo material. O fundamento aqui, que é um dos fundamentos arcaicos e basilares da tradição da magia, é que para agir no mundo material, a deidade precisa ter corpo material. No livro eu faço uma comparação entre os métodos da Quimbanda para assentar os Gangas do culto em suas moradas de poder, os assentamentos, e os métodos teúrgicos[4] para construir as moradas de poder dos deuses terrestres no hermetismo alexandrino ou tradicional, demonstrando a universalidade das técnicas de feitiçaria: da mesma maneira que um daimon, morto ou encantado, assume morada em uma zona de poder consagrada a alguma deidade e que fora construída de forma a atraí-lo a fazer daquele local sua própria zona de poder, assumindo as características daquela deidade e agindo tal qual, de igual modo ocorre na Quimbanda, onde o espírito de um morto ou um encantado da Natureza assumirá o assentamento construído em nome de uma linha de trabalho dos Espíritos Gangas, atuando a partir daí como Exu ou Pombagira desta linha de trabalho. Então traduzindo a passagem acima do Logos Teleios para o contexto da Quimbanda, fica assim: àqueles que cultuam os deuses terrestres da Quimbanda têm o auxílio deles na deificação da alma; de igual modo, ao cultuarem os Gangas, estes são também glorificados e fortalecidos pelo culto dos kimbandas. Eu consegui rastrear a fórmula mágica do espírito tutelar desde os movimentos esotéricos da Antiguidade e Idade Média até a Quimbanda brasileira, quando escrevi o segundo volume do Daemonium. 

O Daemonium nasceu para celebrar, hora representar simbolicamente, a interface de conexão com o mundo dos espíritos, todos os espíritos, mortos, encantados ctônicos e telúricos, assim como deidades urânicas. O pivô motivacional para escrever esse terceiro volume permanece o mesmo: a necessidade do encantamento, i.e. a visão encantada ou daemônica do Cosmos, como premissa fundamental para realização da magia. 

O primeiro volume do Daemonium nasceu da contenda que se estabeleceu dentro de mim entre a visão animista e encantada do Cosmos (i.e. a visão mágica) e a visão místico-psicologizada da magia moderna (i.e. a visão psiúrgica-cientificista do Iluminismo Científico preconizada por Aleister Crowley). O que resultou dessa contenda foi uma mudança radical na minha carreira magística, onde mergulhei na ancestralidade mágica de nossa terra, a feitiçaria tradicional brasileira. Antes de colocar os pés na feitiçaria diabólica e nigromântica da Quimbanda, eu me arvorava conhecedor da goécia em sua forma salomônica de convocação e pactuação com uma miríade de diabos. Mas quando eu fui jogado no caldeirão sem fundo da Quimbanda, foi ali que de verdade me vi no meio dos diabos e, embora tivesse tomado um susto, estupefato como fiquei, me senti em casa, no meio do Inferno. 

Depois das mudanças que fiz em minha carreira magística, me retirando do trabalho externo da AA (Astrum Argentum) em 2017,[5] muitos leitores ainda continuam a me endereçar perguntas acerca de minha relação atual com thelema: eu estaria a aplicar alguma coisa de thelema na Quimbanda? Eu ainda praticaria os rituais thelêmicos da AA ou da O.T.O. (Ordo Templi Orientis)? Existe qualquer convergência entre thelema e Quimbanda? Vou responder essas indagações da forma mais didática possível, encerrando essa apresentação ao terceiro volume do Daemonium. 

Minha relação atual com thelema: estive envolvido diretamente com thelema por vinte e quatro anos. A filosofia de thelema moldou minha visão de mundo desde que eu tinha dezesseis anos. Instruções da AA como Liber AL vel Legis,[6] Liber Aleph, Os Livros Sagrados de Thelema, assim como o poderoso manifesto da O.T.O., o Liber Oz etc., foram a minha pedra de encosto por todas as noites durante todos esses anos envolvido diretamente com a AA. O sistema de magia sexual da O.T.O. foi o axis mundi de minha carreira magística, o eixo que orientou toda a minha jornada thelêmica; por conta da natureza de minha estrutura astrológica, a magia sexual, a cultura tântrica, a sexualidade sagrada etc., sempre foi o meio de realização mais adequado a minha alma. E por esse caminho segui por todo esse período. Será que é possível viver sem isso tudo? É simplesmente impossível tirar isso de mim! Costumo dizer que, metaforicamente, o Liber Aleph, a instrução da AA que mais me debrucei sobre, plantou a semente de thelema (vontade-botão) nas profundezas de minha alma para formulação da criança mágica no sacramento da missa. 

EIS aqui então o teu Programa para todas as Operações de Magia. Primeiro: tu descobrirás tua Verdadeira Vontade, como Eu já te ensinei, e aquele Botão dela que é o Propósito desta Operação.

Em seguida, formula esta Vontade-Botão como uma Pessoa, buscando-a ou construindo-a, e dando-lhe nome, de acordo com tua Santa Qabalah, e sua infalível Regra de Verdade.

Terceiro: purifica e consagra esta Pessoa, concentrando-te sobre ela, e contra tudo mais. Esta Preparação continuará em toda a tua Vida diária. Nota bem: apronta uma Nova Criança imediatamente após cada Nascimento.

Quarto: executa uma Invocação direta e especial em tua Missa, antes da Introdução, formulando uma Imagem visível desta Criança, e oferecendo o Direito de Encarnação.

Quinto: executa a Missa, sem omitir a Epiklesis, e que haja uma Aliança de Ouro nas Bodas de teu Leão com tua Águia.

Sexto: na Consumação da Eucaristia aceita esta Criança, dissolvendo nela tua Consciência, até que ela esteja bem assimilada dentro de ti.

Agora pois faze isto continuamente, pois através de Repetição vem tanto Força quanto Habilidade, e o Efeito é cumulativo, se tu não dás tempo para que ele se dissipe.[7]

 

Hoje thelema continua a orientar a minha vida, mas de uma maneira diferente, essencialmente filosófica, mística e comportamental, de forma a conduzir até mesmo à minha maneira de ensinar e transmitir a Quimbanda. 

No Orientador Geral da Cova de Cipriano Feiticeiro, temos uma regra que proíbe qualquer manifestação pública, em rede social ou por qualquer outro meio de comunicação, de críticas ou contendas com outras famílias de Quimbanda. Me recordo de uma carta de Soror Meral (Phyllis Evalina Seckler – 1917-2004) publicada em seu jornal In the Continuum, onde ela ensinava a seus discípulos o valor da disciplina da palavra: 

Entre os Thelemitas, deve-se entender que a crítica implica que o crítico deseja que a outra pessoa se comporte de acordo com o código do crítico. Em outras palavras, o crítico está obstruindo o livre fluxo da vontade do outro. Ele está construindo um padrão que é seu (o padrão crítico) e está aplicando-o a outra pessoa. Não nos diz o Liber AL vel Legis para que nada amarreis! Que não haja nenhuma diferença feita entre vós entre qualquer uma coisa & qualquer outra coisa; pois daí vem dor (Cap. I, v. 22).

Por favor, entenda que não estou de forma alguma me referindo ao que acontece entre o guru e o chela quando o guru pode ter que usar críticas construtivas em certos casos muito teimosos. Este tipo de trabalho – dificilmente crítica – é baseado no conhecimento que o guru pode ter dos vários fatores na natureza do chela que estão obstruindo o caminho deste último para o Conhecimento e Conversação com o Sagrado Anjo Guardião.

Não, estou falando da variedade cotidiana de críticas em que muitos aspirantes-a-thelemitas podem ser tentados a se entregar. Eu vi muito disso, e é especialmente frequente em ordens de vários tipos ou em certos tipos de grupos religiosos. Todos formulam sua própria ideia do ideal e, em seguida, passam a pedir que outra pessoa viva esse ideal. Você vê agora a razão para o controle da língua? Se você terá liberdade para fazer sua vontade, então você deve dar essa liberdade ao outro. Deixe-me citar Liber Aleph: [De Eadem Re Altera Verba]: Por esta Compreensão sejam refutados aqueles que fazem uma Crítica à nossa Arte, dizendo em sua Insolência que se nós temos todo Poder, porque então às Vezes estamos sob Pressão de Pobreza, e em Desprezo dos Homens, e em Dor de Doença, e assim por diante, zombando de nós, e considerando nossa Magia uma Ilusão. Mas eles não vêem a nossa Luz, como ela nos guia em nosso Caminho para um Alvo que não está na Compreensão deles; de forma que nós não cobiçamos aquilo que lhes parece a única Comida e Conforto na Vida. Também, isto que nós alcançamos, se bem que seja a Essência de Onisciência e Onipotência, impregna e move o Mundo Material (por assim chamá-lo) somente de acordo com a Natureza daquilo que ali está. Pois a Luz do Sol (pela própria Complecção d’Ele) mostra uma Rosa vermelha, mas uma Folha verde; e seu Calor reúne as Nuvens, e também as dispersa. Assim Eu então, se bem que Eu fosse perfeito em Magia, não poderia trabalhar em Metais como um Ferreiro, ou me tornar rico no Comércio como um Negociante; pois Eu não tenho em minha Natureza as Máquinas próprias a estas Capacidades, e portanto não é de minha Vontade buscar exercitá-las. Aqui então está o meu Caso: que Eu não posso porque Eu não quero; e haveria Conflito se Eu me dedicasse àquilo. Mas que cada Homem se torne perfeito em seu próprio Trabalho, sem ligar à Crítica de outro, que algum Caminho não o seu é mais Nobre, ou mais Lucrativo; mas persistindo em Tratar da sua própria Vida.[8]

 

Nesse texto Soror Meral coloca ênfase sobre a questão das projeções dos outros sobre nós e, de igual modo, as projeções que fazemos sobre outras pessoas. No contexto da Quimbanda é interessante ver isso nas projeções que outros tátas (e muitos supostos tátas) têm sobre o meu trabalho. De minha parte não acompanho nenhum deles, ou mesmo consumo qualquer material que venham a produzir, cuidando para que não haja qualquer projeção minha sobre o trabalho deles, porque que cada Homem se torne perfeito em seu próprio Trabalho, sem ligar à Crítica de outro tem sido o norte-thelêmico do trabalho público de Quimbanda da família Cova de Cipriano Feiticeiro. Outra característica thelêmica de nossa família: damos a liberdade para que todos os nossos iniciados possam ir e vir, porque só queremos conosco àqueles que querem estar entre nós. Existe uma prática nociva perpetuada pela grande maioria das casas de àṣẹ da cultura afro-brasileira: a perseguição mágica dos iniciados que por um motivo ou outro desejam seguir em outro lugar ou caminho. Nós abominamos esse tipo de abordagem escravocrata. Um kimbanda é livre para caminhar sobre suas próprias pernas, e a Cova de Cipriano Feiticeiro incentiva, como está em O Livro da Lei, a cada um de seus iniciados que busque vossa fartura de amor[9] onde desejarem, porque tu não tens direito a não ser fazer a tua vontade.[10] Além disso, com os fundamentos que transmitimos sobre a Arte da magia na Quimbanda, incentivamos a liberdade de ação magística para o aperfeiçoamento da Arte de fazer magia. A liberdade é um dos princípios fundamentais do estilo de vida de um kimbanda. 

Eu poderia dar inúmeros outros exemplos, mas estes são o suficiente para explicar meu ponto: thelema está entranhada na minha visão de mundo e na condução de minhas ações no mundo. Essa visão de mundo, em certa medida, trago à Quimbanda; muitas das ideias filosóficas de O Livro da Lei e demais publicações de Classe A e B da AA são inseridas no Estatuto da Cova de Cipriano Feiticeiro. 

Convergência entre thelema e Quimbanda: existe uma congruência filosófica entre thelema e a Quimbanda em muitos pontos; ambas compartilham de posicionamentos similares acerca do Cosmos. Exemplo: assim como em thelema, na Quimbanda impera a lei do forte. Em uma passagem de O Livro da Lei que fala acerca dos adeptos da Estrela & Serpente, i.e. os thelemitas que superaram a Natureza e deificaram a alma em puro êxtase para sempre na Cidade das Pirâmides, encontramos o olhar visceral da Quimbanda: 

Nós nada temos com o incapaz e o expulso: deixai-os morrer em sua miséria. Pois eles não sentem. Compaixão é o vício dos reis: calcai aos pés os desgraçados & os fracos: esta é a lei do forte: esta é nossa lei e a alegria do mundo. Não penses, ó rei, naquela mentira: Que Tu Deves Morrer: em verdade, tu não morrerás, mas viverás. Agora seja isto compreendido: Se o corpo do Rei se dissolve, ele permanecerá em puro êxtase para sempre. Nuit! Hadit! Ra-Hoor-Khuit! O Sol, Força & Visão, Luz; estes são para os servidores da Estrela & da Cobra.[11]

 

Essa passagem resume e transmite a fórmula mágica da deificação da alma não só na Quimbanda, mas em inúmeros cultos de guerra: a superação das vicissitudes da Natureza. Eu sou um deus de Guerra e Vingança,[12] diz Ra-Hoor-Khuit no terceiro capítulo de O Livro da Lei. De igual modo, a Quimbanda é um culto de guerra. No meu texto 11 Aforismos para Entender a Quimbanda, menciono: 

A natureza da Quimbanda é a guerra, o combate, o abate predatório, porque seu objetivo último é o domínio! Trata-se de um culto visceral de caça e expansão de território. Seus adeptos são considerados guerreiros que lutam para expandir o Reinado do Chefe Império Maioral, o Diabo.

[...] Quimbanda é um culto afro-brasileiro muito distinto dos outros cultos, por muitos motivos. Um deles é este: o kimbanda não é um ressentido, porque o ressentimento é um espírito que só forja laços e compromissos com indivíduos fracos, os pedantes de mentalidade escrava. Os escravos, quer dizer, os indivíduos que têm a mentalidade escrava, sempre serão dominados! Os escravos sempre irão servir! Essa é à vontade e o objetivo de vida deles. O kimbanda é um indivíduo liberto dessas correntes ressentidas de estagnação e pobreza espiritual que se costuma alimentar na grande maioria dos cultos afro-brasileiros. O kimbanda não se comporta como um pedante escravo ressentido; ele é um guerreiro visceral e seu impulso é a dominação, a caça predatória; o estilo de vida de um kimbanda, treinado na arte da guerra mágica, é olho por olho, dente por dente! Ele não se ressente com a injustiça; o que o kimbanda faz é restaurar o equilíbrio entre as partes através de sua Arte!

[...] Quimbanda se trata de realeza! Os Exus são Reis de seus domínios e sob o comando deles operam uma legião de espíritos-servidores e falangeiros. O termo «coroa mediúnica» se refere à coroa de todo um reinado, governo ou domínio. A coroa é usada por um Rei, o Exu, porque ele se ergueu da tumba do corpo físico com um corpo glorificado (deificado) através dos processos iniciáticos da Quimbanda. Isso implica em conquista, domínio e poder. Este poder não é simbólico! Sua natureza, embora transcendente, também é material. Essa é uma sabedoria perene da Realeza, e esteve presente em inúmeras civilizações e culturas. No antigo Egito o faraó era considerado imbuído de um poder que não era simbólico, mas transcendente, material e taumatúrgico, e dele dependia a ordem do cosmos e de toda a sociedade. O faraó encarnava o princípio solar-ígneo, o poder da glória e da vitória.

 

Assim, thelema e Quimbanda compartilham que apenas os mais fortes, i.e. àqueles que são capazes de se adaptar e superar as intempéries da Natureza, conseguem essa proeza, porque como diz Exu Pantera Negra: no fim do dia só restam os sobreviventes. Agora, magicamente a congruência para por aí, porque thelema elaborou uma visão mística (psiúrgica) e cientificista da magia, psicologizando e internalizando simbolicamente os processos mágicos. A Quimbanda vai em uma direção completamente oposta. Enquanto os métodos de thelema são essencialmente místicos, os métodos da Quimbanda são mágicos. Aqui passamos a última questão: 

A prática dos rituais thelêmicos: os rituais thelêmicos da AA e da O.T.O. são místicos e psiúrgicos, não mágicos. A definição clássica de Crowley sobre a magia é: a ciência e arte de causar Mudanças [na Natureza] de acordo com a Vontade.[13] Isso não é magia, e sim psicurgia, porque depende completamente e tão somente das capacidades inatas do operador, da amplitude de seus poderes ou forças anímicas. Além disso, Crowley postulou que a suprema operação de magia é o conhecimento & conversação com o Sagrado Anjo Guardião.[14] O problema aqui é que Crowley desenvolveu apenas instruções místicas e psiúrgicas para obtenção desta consecução espiritual, muito embora ela se baseie em um antigo arcano da tradição da magia no Ocidente, como demonstrei no primeiro volume do Daemonium: a fórmula mágica do espírito tutelar. 

De acordo com essa antiga fórmula mágica na tradição da magia no Ocidente, este é sim o arcano secreto que possibilita ao mago a realização da taumaturgia, i.e. o milagre da magia; porque diferente da definição de Crowley, as mudanças na Natureza não dependem exclusivamente da vontade do operador, mas fundamentalmente da agência de um espírito, tutelar ou servidor. No meu livro Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia, explico – nos termos da Quimbanda – que a vontade é importante para manutenção da tenção mágica, que será transportada ao ambiente mágico pelo espírito, que lá a manterá enquanto o mago manter a tensão. Se esse entendimento fosse transferido a thelema, então seus métodos deixariam de ser somente psiúrgicos e se tornariam mágicos também, porque não existe magia sem psicurgia, mas a modernidade fez existir psicurgia sem magia, o que se conveniou chamar de magia moderna. No entanto, a estrutura do Iluminismo Científico ou teurgia cética como apelidou Crowley, impossibilita essa convergência, porque se alinha completamente ao paradigma cientificista-positivista moderno, como veremos a seguir. 

Em 1909 Crowley lançou o The Equinox, a Revista do Iluminismo Científico. O lema da revista era: O Método da Ciência, o Objetivo da Religião. No editorial da primeira edição ele escreveu: 

Qualquer conhecimento que anteriormente tenha sido creditado aos homens sempre foi cercado por condições e restrições. Chegou a hora de falar claramente, e tanto quanto possível, na linguagem da multidão.

Desta forma, os Irmãos da AA se anunciam sem milagres ou mistérios. Para qualquer charlatão é fácil realizar prodígios, confundir e até mesmo enganar não somente os tolos, mas todas as pessoas, não importa o quão perspicazes, inexperientes em observação; nem os observadores experientes sempre conseguem detectar imediatamente uma fraude. Novamente, o que a AA propõe fazer é permitir que os homens capazes de avançar à uma interpretação superior da humanidade o façam; e a prova de sua capacidade está em seu sucesso, e não em qualquer outro fenômeno irrelevante. O argumento que surge de milagres é um non sequitur.

Nem há nada de misterioso na AA; não se deve confundir o que é misterioso com o que é desconhecido. Inicialmente, alguns dos conteúdos deste Periódico podem ser difíceis ou impossíveis de entender, mas somente no sentido de que Homero é ininteligível para uma pessoa que não sabe grego.

Mas os Irmãos da AA não fazem mistério; Eles não lhe fornecem somente o Texto, mas também o Comentário; não somente o Comentário, mas também o Dicionário, a Gramática e o Alfabeto. É necessário estar completamente familiarizado com o idioma antes que você possa apreciar as obras-primas do mesmo; e se enquanto for totalmente ignorante do idioma você desprezar a obra-prima, você desculpará os espectadores mais frívolos se a diversão deles corresponde à sua indignação.

Os Irmãos da AA se opõem contra todo charlatanismo, seja o da venda de milagres ou o do obscurantismo; e todas as pessoas que têm buscado a fama ou a riqueza através desses meios podem esperar cruel exposição, seja de sua vaidade ou de sua desonestidade; pois eles não podem ser ensinados por nenhum meio mais gentil.

Pelas mãos de seus representantes escolhidos, os Irmãos da AA recomendarão experimentos simples e os descreverão na linguagem mais simples disponível. Se você falhar em obter bons resultados, culpe a si mesmo ou ao método Deles, como você desejar; caso tenha sucesso, agradeça a si ou a Eles, como você desejar.[15]

 

Simplificando, o Iluminismo Científico é a tentativa de compreender a magia e o Ocultismo sem postular nada de sobrenatural ou mesmo fora das principais ciências sociais e naturais, como psicologia e neurologia. Busca eliminar crenças e práticas supersticiosas do exercício do Ocultismo, da magia cerimonial em particular, com um olhar crítico e pragmático. Há muita fantasia, fraude, superstição e charlatanismo no campo do Ocultismo. Para lidar com isso o Iluminismo Científico incentiva a pesquisa científica no estudo do ritual cerimonial e do Ocultismo em geral, sem tentar explicar o mistério (o Mundo e especialmente os resultados da magia) com mais mistério, ou seja, explica-los em termos de energias, cakras, planos, esferas, raios, planetas, trigramas, influência de espíritos etc. Ao invés disso, o Iluminismo Científico busca fundamentar o Ocultismo na ciência moderna, se livrando de toda e qualquer superstição. Crowley diz: 

Portanto, sua tarefa como Mestre de Magia é ser tão científico quanto possível, descartando de teu universo àquelas informações inválidas na construção de sua obra. Assim como é acima é abaixo, assim como é dentro, também é fora. Descubra isso para que possas compreender o verdadeiro mecanismo pelo qual a magia opera. Equilibra teu universo com cada símbolo e não pense, nem por um momento, que ele significará para o outro o mesmo que significa para você e não confunda os planos. Coloque tudo em seu devido lugar.[16]

Fé, Vida, Filosofia falharam. A Ciência já está estabelecida. O Misticismo, sendo baseado na experiência pura, é sempre uma força vital; mas devido à falta de observação treinada, sempre foi uma massa de erro. A Experiência Espiritual, interpretada em termos do Intelecto, é distorcida; assim como o nascer do sol mostra o verde da grama e o azul do mar. Ambos eram invisíveis até o amanhecer; ainda que a diversidade das cores não esteja no sol, mas nos objetos sobre os quais recai sua luz, e sua contradição não prova que o sol seja uma ilusão. Corrigiremos o Misticismo (ou Iluminismo) pela Ciência e explicaremos a Ciência pelo Iluminismo.[17]

 

O Iluminismo Científico terá, nos termos da ciência moderna, uma abordagem natural da magia. Natural no sentido em que as teorias, a conduta do operador e os resultados da magia serão compreendidos e explicados nos termos do mundo natural. Nenhuma entidade ou força sobrenatural será entretida, e serão desaprovadas também afirmações vagas ou ambíguas como falar de correntes astrais ou energias sutis, a menos que estas sejam explicadas nos termos psicológicos ou fisiológicos. Uma abordagem científica da magia significa que as teorias, a conduta do operador e os resultados da magia serão compreendidos e explicados com uma atitude científica. Essa atitude inclui ceticismo (não cinismo), foco em evidências empíricas (ou seja, diretamente observadas) e o desejo de alinhar as ciências ocultas dentro de uma visão de mundo racionalista, cientificista-positivista. O ceticismo nessa abordagem moderna da magia significa enfrentar explicações com dúvidas e suspender o julgamento sobre quaisquer reivindicações feitas por outros até que seja fornecida uma evidência. 

A magia moderna (thelema, caos, cabalá hermética, luciferianismo etc.), portanto, é a coroa do mundo desencantado contemporâneo, cartesiano, racional e científico, do qual trataremos na Parte III. A racionalidade neste mundo desencantado é a antítese da superstição, a crença na magia e na agência de espíritos por meio dessa arte, e faz de qualquer ciência oculta uma pseudociência. No mundo desencandado da magia moderna, absolutamente tudo deve ser explicado racionalmente, e essa é a sua principal diferença do mundo encantado onde os espíritos ancestrais protegem e amparam o homem do infortúnio, enquanto requerem sacrifícios e oferendas. 

No que tange a prática da magia, portanto, thelema e Quimbanda caminham em Cosmos diferentes. Então quando Crowley diz que assim como é acima é abaixo, assim como é dentro, também é fora [...] para que possas compreender o verdadeiro mecanismo pelo qual a magia opera, o que ele está fazendo é chamar misticismo e psicurgia de magia. O olhar para dentro, a descoberta e o domínio de si mesmo, sempre foram o campo do misticismo e da psicurgia, não da magia. No mundo encantado o operador não precisa conhecer a si mesmo, compreender os aspectos mais intrínsecos de sua alma ou os planos mais sutis de luz e perfeição para realizar o milagre da magia. Não é solicitado ao operador vencer seus vícios ou superar qualquer fraqueza para que, efetivamente, a magia possa operar e funcionar. Essas conquistas servem a alma e, como tais, são místico-psiúrgicas, mas não são essenciais a realização taumatúrgica da magia. Em sua empolgante coleção de artigos, Frater IAO131 explica a magia nos termos do misticismo: 

Magia é a ciência espiritual que tem o potencial de nos ajudar a conhecer a Verdadeira Vontade, e de causar Mudanças efetivas por meio da Verdadeira Vontade. [...] Magia é a mesma busca antiga do «Conhece a ti Mesmo» no Oráculo de Delfos. Também, como Buda disse, «é melhor conquistar a si mesmo do que conquistar 10.000 exércitos». Magia é, portanto, a busca pela conquista de si mesmo.

[... Magia] é o objetivo espiritual último, a conquista da Verdade de si mesmo, sua Divina Natureza. [...] A magia é dirigida por princípios, não por um conjunto de técnicas. Esses princípios são a permanente busca pela conquista de Conhecer, Aperfeiçoar e Conquistar o Ser, para então Fazer a sua Vontade em harmonia com sua livre vontade, cheio de consciência, equilíbrio e completude.[18]

 

A pergunta que um Chefe de Quimbanda faria para o autor é: você quer fazer magia ou yoga? Curiosamente o yoga é a fase preliminar de treinamento psiúrgico do sistema thelêmico, porque existe a necessidade de desenvolver capacidades psíquicas inatas ao bom desempenho da psicurgia em uma fase preliminar de treinamento «mágico». A Quimbanda é uma tradição mágica; thelema é uma tradição mística. No que tange ao esoterismo ocidental essa distinção da natureza das tradições é fundamental. Arthur Versluis diz: É possível distinguir entre tradições mágicas cujos objetivos são essencialmente cosmológicos em natureza – quer dizer, mais ou menos «terrenos» no sentido de buscarem riqueza e poder – e tradições místicas que rejeitam os objetivos terrenos [mundanos] em favor da iluminação espiritual. Essa distinção é fundamental no Ocidente.[19] Muito embora filosoficamente thelema não negue o Mundo e busque êxtase na corporificação, como os tāntrikas da Índia, magisticamente ela rejeita o Mundo em detrimento da iluminação, uma herança místico-cristã rasacruciana no sistema promulgado por Crowley. A exemplo disso como ilustração, na AA, cujo requerimento fundamental para o funcionamento é não cobrar nenhuma taxa para recepção, acompanhamento ou evolução dos adeptos sob a pena de expulsão sumária – porque como gostam de dizer os thelemitas brasileiros, espiritualidade não se compra –, essa discrepância e diferença entre magia e misticismo é nitidamente inferida nesses dois sistemas. Bom, isso de espiritualidade não se compra não é verdade nem na Igreja Católica, e na Quimbanda dizemos: Exu responde no caminho do dinheiro e o dinheiro responde no caminho de Exu. 

O místico busca a sabedoria divina, o mago busca o conhecimento cosmológico da Natureza para adquirir poder; a magia busca o poder sobre outros ou sobre a Natureza, o misticismo busca a transcendência do poder e a realização do Divino. São, portanto, correntes distintas, mas não excludentes, porque entre um extremo e outro no contexto do esoterismo ocidental, se encontram uma miríade de subcorrentes místico-mágicas, com mais ênfase em uma ou outra abordagem. Já no contexto das ciências da religião, thelema é um culto urânico (i.e. celestial) revelado; a Quimbanda é um culto ctônico (i.e. natural). A distinção entre essas duas abordagens religiosas ficará clara na Parte I que segue. 

Lage! Judica! Tace!


[1] Por conta do intenso trabalho sacerdotal com a Quimbanda, encerrei o Curso de Filosofia Oculta em janeiro de 2022.

[2] Veja Fernando Liguori. Corrente 93: A Corrente Solar do Novo Aeon. Clube de Autores, 2017.

[3] Hermes Trimegisto. Logos Teleios: O Asclépio ou o Discurso de Iniciação. Tradução de Vinicius Pimentel Ferreira, edição do tradutor.

[4] Uso o termo métodos teúrgicos como uma referência direta a Jâmblico, no sentido em que o exercício de teurgia proposto pelo filósofo teúrgo é retirado do Corpus Hermeticum. Jâmblico abre e fecha seu De Mysteriis elogiando e exaltando Hermes Trimegisto.

[5] No primeiro volume do Daemonium eu relato uma experiência magística que seria o pivô para que eu pudesse desacreditar completamente da magia thelêmica (magick) como fonte taumatúrgica verdadeira.

[6] O Livro da Lei ou Liber AL, a escritura sagrada de thelema.

[7] Aleister Crowley. Liber Aleph. Samuel Waiser, 1991, verso 86.

[8] Phyllis Seckler. The Kabbalah, Magick, and Thelema. Selected Writings, Vol. II. Temple of Silver Star, 2012, pp. 8-9. Citação de Aleister Crowley. Liber Aleph. Samuel Waiser, 1991, verso 189.

[9] Aleister Crowley. Liber AL vel Legis, I:12. Waiser Books, 1976. Reprodução da edição de 1938, Ordo Templi Orientis.

[10] Aleister Crowley. Liber AL vel Legis, I:42. Waiser Books, 1976. Reprodução da edição de 1938, Ordo Templi Orientis.

[11] Aleister Crowley. Liber AL vel Legis, II:21. Waiser Books, 1976. Reprodução da edição de 1938, Ordo Templi Orientis.

[12] Aleister Crowley. Liber AL vel Legis, III:3. Waiser Books, 1976. Reprodução da edição de 1938, Ordo Templi Orientis.

[13] Aleister Crowley. Liber ABA: Magia em Quatro Partes. Penumbra, 2020, pp. 188.

[14] Ibidem, pp. 203.

[15] Aleister Crowley. The Equinox, Vol. I, No. 1. 1909, Editorial.

[16] Aleister Crowley, citado no diário mágico de Frank Bennett.

[17] Aleister Crowley, The Equinox, Vol. I, No. 2.

[18] Frater IAO131. Fresh Fever from the Skies. Edição do Autor, 2014, pp. 231-3.

[19] Arthur Versluis. Magic and Mysticism: An Introduction to Western Esotericism. Rowman & Littlefield Publishers, 2007, pp. 2-3.

 

 




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